Artigo Anpocs Reproducao set.21

 

PRIMEIRO ATO

Em 17 de março de 2021, um ano depois de Henrique Mandetta, então ministro da Saúde, declarar estado de transmissão comunitária da covid-19 em todo o Brasil, os jornais cariocas noticiavam um fato inusitado. Além de contabilizar o número de mortos, que naquele dia passava dos 285 mil, e de noticiar os últimos acordos para distribuição vacinal que ainda se iniciava, os periódicos locais informavam que, na Praça XV, no centro do Rio de Janeiro, um homem escalara o monumento de Rodolfo Bernardelli e, completamente nu, montara o cavalo do general Osório, gritando em um megafone frases que foram interpretadas como um protesto solitário. O homem, diziam os jornais, argumentava que só sairia dali vacinado. O gesto foi registrado nos celulares dos transeuntes que passavam pelo centro em pleno horário de almoço e teve ampla repercussão nas redes sociais. Ao jornal Extra, a assessoria de imprensa da operação de segurança Centro Presente “informou que o autor se recusou a descer da estátua e precisou ser retirado”, tendo sido, em seguida, “conduzido, por ato obsceno, para a 5ª DP”. Alguns dias depois, o caso ainda despertava interesse e os jornais vieram a público esclarecer que o gesto de protesto havia sido produzido como trabalho artístico por Chico Fernandes: performer, professor, doutorando em Processos Artísticos pela UERJ e duas vezes indicado ao prêmio PIPA.

Desde 2017 trabalhando sobre o tema da nudez em espaço público, Chico Fernandes já havia realizado performances similares em outros momentos: mergulhara completamente despido no esgoto de Inhaúma, bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro, banhara-se nu no mar de Copacabana em plena noite de Réveillon e, também nu, replicara o trabalho do artista Aimberê César andando de bicicleta no Largo da Carioca e mais tarde dirigindo uma motocicleta na Freeway, rodovia que liga Porto Alegre (RS) ao litoral. Embora há alguns anos o desejo de interpelação do olhar do outro e de afetação do público a partir do corpo fosse uma constante em seu trabalho, foi a primeira vez que a performance, de fato, ganhou a grande imprensa, se expandindo para além do público de exposições ou daqueles presentes no aqui e agora de sua realização. Encenada no palco de tradicionais manifestações políticas e mobilizando um megafone, a obra teve sua recepção modelada pelo caráter de urgência do grave momento político vivido no país.

SEGUNDO ATO

Não foi a primeira vez que, durante a pandemia, arte e manifestações políticas pareciam se confundir. Sete meses antes, em agosto de 2020, circulara nas redes sociais uma série de vídeos mostrando uma carreata percorrendo a Avenida Paulista em marcha à ré. O cortejo era organizado por pessoas que, com gestos de manobristas, trajavam macacões brancos como de apicultores, face shields e máscaras de paramentação médica. Ao fundo, ouvia-se um contínuo ruído perturbador: o som dos respiradores utilizados nas unidades de tratamento intensivo da covid-19. Situado na Avenida Paulista, também palco das manifestações políticas de 2013 e 2016, o trajeto fazia referência crítica às carreatas de protesto contra o isolamento social que ocuparam a mesma via em abril de 2020. Num primeiro momento, as reações nas redes sociais faziam crer se tratar de um novo protesto. O ato, no entanto, ganhou a imprensa e a crítica especializada e logo se pôde saber tratar-se de performance fílmica realizada pela companhia Teatro da Vertigem e idealizada em parceria com o artista Nuno Ramos. Filmado por Eryk Rocha, o trabalho foi comissionado pela Bienal de Berlim e originalmente previa “uma procissão antifascista, pela liberdade de expressão e o livre pensamento, que percorreria uma avenida da cidade e terminaria em uma praça”, conforme depoimento de Antônio Araújo, diretor do Teatro da Vertigem, publicado no site da Escola de Comunicação e Arte da USP. Impedido o deslocamento pelo fechamento das fronteiras, a procissão antifascista se transformou, no Brasil, na anticarreata que rumava pela Avenida Paulista em direção a seu clímax. Depois de passar pela frente de símbolos políticos da cidade, como o vão livre do Masp e o prédio da Fiesp, a carreata terminaria diante do Cemitério da Consolação. Ali, emoldurada pelas colunas do pórtico de entrada, era hasteada uma reprodução monumental de um dos desenhos da Série Trágica, de Flávio de Carvalho (1899–1973). A retomada da imagem de 1947, sob luz dramática e ao som do hino nacional tocado ao inverso, colocava ali, na entrada do cemitério, a morte da mãe agonizante: clara referência ao grupo etário mais atingido pela covid-19, mas também referência à dor de vínculos familiares perdidos.

Em longa entrevista concedida ao portal jornalístico Tutameia, em 14 de agosto de 2020 e ainda no calor dos acontecimentos, Nuno Ramos diria, claramente, que a performance pretendia, como marcha fúnebre, se conectar com a questão do luto, não só em relação à pandemia, mas aos efeitos perversos de um governo que, “em queda sem fim” vinha empurrando “o país para trás”. Ainda que reconhecesse não ser “tarefa da arte expressar necessariamente o drama político imediato”, seu empenho em ocupar o espaço público num momento de isolamento social era um esforço de dar “forma simbólica” à urgência do momento.

Também imbuído desse propósito, o artista inauguraria exposição no Sesc Avenida Paulista, A extinção é para sempre, em maio de 2021. O projeto, reunindo um conjunto de experimentações envolvendo cinema, performance, literatura, teatro, artes visuais, dança e música, é alinhavado pela obra CHAMA: um isqueiro permanentemente aceso, filmado e transmitido em tempo real durante um ano, como uma chama que nunca se apaga, em nome dos mortos no país. Se, na entrevista mencionada, Nuno Ramos argumentava que o atual estado de coisas parecia derivar da banalização da violência num país em que “a morte alheia não parece ser o inominável”, em que a morte é apenas dado estatístico, a exposição retomava em outras performances sobre a naturalização da morte. As obras retomavam Os desastres da guerra, de Francisco de Goya (1746–1828), ou faziam ressoar os sons de ladrilhos quebrados como metáforas dos tiros que ceifam diariamente a vida de milhares de jovens negros brasileiros na violência urbana. A violência — que, para Nuno Ramos, é o elemento presente e recalcado na história democrática do país e que se tornaria incluído e explícito no atual projeto de Brasil — ordenava muitos dos discursos presentes na exposição. No entanto, “a culpa não é do povo”, frase de Terra em transe repetida ad infinitum como mantra na obra Chão-Pão, deixava claro que Nuno Ramos recusava interpretações que viam no atual governo um destino necessário que expressa verdades recalcadas de uma essência do país. A verdade do país, dizia ele na entrevista de 2020, “é o que a gente fizer”.

TERCEIRO ATO

Em 24 de julho de 2021, após protestos contra o atual governo que ocorreram em todo o país, manifestantes encenaram um outro tipo de performance e outras chamas foram acesas. Em São Paulo, no início da tarde daquele sábado, quando o número de mortos já se aproximava dos 550 mil, ardeu em fogo outro monumento. Tratava-se da estátua de Borba Gato, no distrito Santo Amaro, escultura de Júlio Guerra (1912–2001) cuja inauguração, em 1963, remetia à celebração do quarto centenário da região. Como outros símbolos da cidade, a escultura fazia ecoar a história narrada na efeméride homóloga da capital, apresentando bandeirantes como mito de origem da fundação da cidade, como tão bem descreveu a socióloga Maria Arminda Arruda. Símbolo de disputas pela narrativa histórica, o incêndio despia de heroísmo o mito fundador e buscava reparação para negros e indígenas na história nacional, em consonância com movimentos Black Lives Matter mundo afora. A estátua estava nua. A ação polêmica não tardou a ser assumida pelo grupo Revolução Periférica, com vídeo em preto e branco, divulgado no Twitter, marcado com a tag @revolucaoperiferica e antecedido pela frase “O dia em que o morro descer e não for Carnaval”. A ação fora precedida por outro vídeo divulgado no Instagram em que integrantes do movimento percorriam a cidade colando cartazes com os dizeres: “Você sabe quem foi Borba Gato?” e “Atenção! Poema em processo”. Paulo Galo, líder dos Entregadores Antifascistas de São Paulo, foi imediatamente preso e um empresário anônimo se ofereceu para custear a restauração da obra. Ainda que a Cinemateca de São Paulo tenha ardido em fogo dias depois, numa tragédia anunciada, sem que culpados tenham sido apontados, o monumento a Borba Gato permanece de pé.

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Embora não queira fazer equivalências entre os três episódios aqui narrados, fato é que a arte tem se posto no centro da disputa simbólica no país. Seja para reescrever a história, seja para construí-la, artistas e movimentos artivistas parecem retomar com veemência o caráter político da linguagem poética. Notem-se novamente os cartazes do grupo Revolução Periférica: “Poema em processo”. Se, desde 2013, tenho argumentado que, numa via de mão dupla, movimentos sociais e grupos organizados da sociedade civil têm buscado na arte elementos para dar visibilidade a discursos de contestação, a pandemia de covid-19 coloca a saturação da vida digital em novo patamar. De um lado, quando o sucesso se mede pela circulação de imagens, a arte permite destaque na multidão. De outro, o uso expressivo da linguagem parece dar voz a insatisfações ainda não discursivamente formuladas. Com efeito, ao abrir espaço para discursos políticos, a esfera artística tem também aberto espaço para uma “artificação” da esfera pública, para usar a expressão do antropólogo Manuel Delgado. Se nos últimos anos, a cultura ganhou proeminência na explicação sociológica das relações sociais correspondendo a seu crescente peso na sociedade contemporânea, como propõe Arturo Morató, e ganhou também espaço cada vez maior na formulação de políticas para a cidade, como percebeu Saskia Sassen, talvez seja natural que ela também se dissemine, ganhando proeminência na formulação de contradiscursos e contrapoder.