Entre o final do século XVIII e a primeira metade do século XIX, os panfletos foram uma das principais formas de agitação política e mobilização das massas — função que, hoje, parece ser exercida por correntes no WhatsApp (verdadeiras ou, em sua maioria, não) e em outros aplicativos de comunicação e redes sociais. Espalhados pelas ainda tímidas cidades do Brasil Colônia e lidos em voz alta para uma população em sua maioria não letrada, esses textos buscavam levar para a praça pública discussões sobre temas ligados ao poder e à sociedade. Tentavam não só romper o rígido controle do governo, como também ampliar os espaços de discussão para além das salas das elites e gabinetes oficiais e tiveram um papel importante no processo de emancipação do território em relação à coroa portuguesa.
Alguns desses documentos foram reunidos no recém-lançado Vozes do Brasil: A linguagem política na Independência, publicado pelas Edições do Senado Federal como parte das comemorações do Bicentenário da Independência. Organizado pelas historiadoras Heloisa Murgel Starling e Marcela Telles Elian de Lima, o livro é o primeiro resultado de uma série de ações idealizadas pela Comissão Especial Curadora do Bicentenário, iniciativa proposta em 2019 pelo senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) para celebrar a efeméride até o dia 7 de setembro de 2022. No livro estão reunidos 21 panfletos políticos publicados entre 1821 e 1824, no Brasil e em Portugal, que ampliam a narrativa oficial relacionada à independência do Brasil e evidenciam as várias tensões que permearam o processo emancipatório em diferentes partes do território.
Os textos presentes em Vozes do Brasil não foram reproduzidos desde que circularam, em seu tempo, no Rio de Janeiro, Pernambuco, Bahia, Maranhão e Grão-Pará, e agora voltam acompanhados de contextualizações sobre o momento histórico. Interessadas e interessados podem baixar a obra ou adquirir um exemplar impresso clicando aqui (para o download, clicar na aba "Especificação").
O material faz parte do robusto acervo da Biblioteca Oliveira Lima (do diplomata e historiador pernambucano Manuel de Oliveira Lima, falecido em 1928), localizada na Universidade Católica da América em Washington (EUA), que reúne mais de 100 desses panfletos. No século XIX eles eram chamados de “papelinhos”, folhas volantes ou papéis incendiários. Pensados para capturar o calor do momento e provocar insurgências, esses textos têm, por essência, uma natureza efêmera e, por isso, muitos acabaram se perdendo ao longo do tempo. O processo de resgate e reunião dos panfletos ajuda a elucidar o complexo quadro do período pré e pós-Proclamação da Independência, ressignificando a narrativa oficial que coloca o grito de Dom Pedro I como ponto de virada na história nacional.
Ao contrário da imagem pintada (e fantasiada) por Pedro Américo no quadro Independência ou Morte, de 1888, a separação de Brasil e Portugal foi um processo construído ao longo dos anos e resultado de várias lutas — como a Revolução Pernambucana de 1817, que chegou a proclamar uma república inspirada nos ideais do Iluminismo. Como aponta o livro, as insatisfações crescentes com a coroa e a inquietação em torno da construção de uma soberania e independência nacional iam muito além de questões econômicas e passavam, também, pela tentativa de construção de uma identidade própria.
“Esta é a nossa certidão de nascimento enquanto nação. Ela mostra que o Brasil não foi um resultado de uma simples herança do trono português, de um simples translado do trono português, para a constituição do Império do Brasil. Tem um mérito dos portugueses, que está em ter construído uma unidade nacional — era mais provável que a nossa independência fosse pulverizada, como foi o da América Espanhola, e acontece com o translado da família real para o Brasil em 1808. O Brasil que existia tinha pouca idéia de unidade. A independência foi cunhada, também, com luta, com sangue e, inclusive, com oposições. No caso do Grão-Pará, havia uma tendência de não se emancipar e se tornar Reino Unido de Portugal e Algarve. Outros lugares, como a Bahia, com [a combatente] Maria Quitéria, e Pernambuco se levantaram pela independência. O Vozes do Brasil retrata bem essa diversidade e conta não uma independência, mas as independências que formaram o que hoje é a quinta geografia da Terra”, pontuou o senador Randolfe Rodrigues em entrevista ao Pernambuco durante sua passagem pela XIII Bienal do Livro de Pernambuco, no último domingo (10).
A disputa de narrativas presente no livro se conecta com as tensões dos nossos tempos. O último 7 de Setembro foi emblemático diante das tentativas do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) de mobilizar sua base contra as instituições democráticas. Além das falas inflamadas e violentas, os movimentos golpistas do presidente buscaram emular imagens consolidadas no imaginário popular, como a pintada por Pedro Américo 133 anos antes. Uma semana antes do feriado de Proclamação da Independência, o chefe do executivo andou a cavalo empunhando uma bandeira do Brasil, em meio aos seus apoiadores, em Uberlândia (MG). Para Randolfe, apesar de se apoiar em símbolos nacionais, como a bandeira, e ter um discurso dito patriótico, Bolsonaro e seu governo não se articularam para as comemorações do Bicentenário da Independência, e, por isso, o Senado Federal instituiu a Comissão Curadora.
Além do lançamento Vozes do Brasil, estão programadas outras iniciativas para celebrar a efeméride, entre elas uma cooperação com a Universidade de Coimbra para a publicações de textos luso-brasileiros, e um projeto com a Folha de S.Paulo no qual serão pontuados 200 momentos que contam o bicentenário do Brasil enquanto nação. Para Randolfe Rodrigues, as ações da Comissão surgem da necessidade de comemorar e refletir sobre a data, que sempre marcou momentos importantes para a política e a cultura nacional.
“Acho que teve uma praga jogada contra o Brasil para nós termos a celebração do Bicentenário da Independência sob a égide do governo Bolsonaro porque ele é um anticlímax de celebração. Lembremos: o Brasil teve, inclusive nesses primeiros anos como nação independente, governantes iluministas, que apoiaram as artes e as culturas. Pedro II é um exemplo disso. Embora com concepções elitistas, o apoio às artes, às culturas, à educação, esteve presente na mensagem de Pedro I à Assembleia Geral do Império, em 1826. E nós temos um presidente voltado e vocacionado ao obscurantismo no tempo atual. Acho que o ponto alto [desse comportamento] foi exatamente o que aconteceu no último 7 de Setembro. Ora, o Brasil, ao longo de sua história, sua formação enquanto nação independência, teve vários processos de independências: o advento da República, mesmo que vindo de um golpe de Estado; o fim da escravidão, os direitos sociais nos anos 1930. Tudo isso foi construindo a identidade brasileira. A história tem idas e vindas: a ascensão de um regime autoritário, mas depois a superação; O texto constitucional de 1988, o mais avançado de nossa história, a Constituição de uma república federativa, com separação dos poderes claramente definida, [com] os direitos sociais, a saúde, educação, direitos dos povos indígenas não existentes nas constituições anteriores, [com atenção ao] meio ambiente. Tudo que foi conquista civilizatória do Brasil enquanto formação de nação, foi ofendido no 7 de Setembro deste ano. Pela primeira vez, não tem como separar a política, inclusive a política eleitoral, do contexto histórico, do Brasil enquanto civilização, porque a circunstância atual impõe isso. A melhor forma de celebrar sobre nossa independência no 7 de Setembro próximo, de 2022, seria o governo Bolsonaro estar derrotado, ou pelo impeachment, pelas mobilizações popular, ou pelo processo eleitoral, que acontecerá menos de um mês depois da data, em 2 de outubro”, enfatizou o político.
Além do Bicentenário da Independência, o ano de 2022 também marca um século desde a realização da Semana de Arte Moderna, em São Paulo. Assim como havia acontecido após o processo emancipatório, quando o Romantismo buscou símbolos que tentavam criar alguma ideia de nação e identidade, ainda que sob uma perspectiva idealizada e ainda apegada a modelos europeus, o modernismo buscou radicalizar a consolidação do que é ser brasileiro em todas as esferas.
“1922 é uma efeméride muito rica para a cultura nacional: o bicentenário do Brasil enquanto nação independente, o centenário da Semana de Arte de 1922 e da atual versão do hino nacional. É, per si, uma efeméride que pede celebrações. Ao longo da história posterior aos ciclos pandêmicos — foi assim há 100 anos, com a epidemia de influenza —, a sociedade tem uma espécie de efervescimento. Há uma espécie de busca na humanidade, uma euforia quando se supera momentos tão dramáticos quanto este. Então acho que existe um ambiente, muita disposição da humanidade para isso [para criar, superar]. Cabe a nós incentivarmos isso”, reforçou o senador.