Ensaio Iuri Guilherme de Lima novembro.21



Em uma anotação de fins de 1979 ou início de 1980, sem data precisa, Adolfo Bioy Casares (1914–1999) registra em seus cadernos a memória das suas idas a Mar del Plata, cidade litorânea que sempre recebeu os verões argentinos. Recorda os almoços e os jantares tardios, os encontros demorados com amantes e amigas, as caminhadas nas proximidades do mar, o conforto dos hotéis e da casa de verão, os clubes em que se reuniam os sobrenomes da sociedade portenha da primeira metade do século. “Em Mar del Plata fui feliz. Com fome se comia, com prazer se nadava e se tomava sol. Não sei por que sentia que lá fazíamos o amor prodigiosamente”, anota. São recordações da juventude e quem anota é agora um homem de sessenta e cinco anos: “Eu diria que diminuiu, ou quase desapareceu, o vento, que na minha primeira juventude era típico de Mar del Plata”.[nota 1] Também as viagens passaram a ser raras, naquele instante em que o século começava a declinar.

Os diários de Adolfo Bioy Casares se estendem por dezenas de cadernos e ao longo de cinquenta anos de escrita, dos anos 1940 a meados dos 1990, pouco antes da sua morte, e foram organizados em diferentes tomos, sempre por Daniel Martino, responsável pela edição da obra póstuma do autor. Os apontamentos sobre a convivência — durante muito tempo, quase diária — com o amigo e colega Jorge Luis Borges (1899–1986) foram reunidos no imenso Borges, de 2006, um calhamaço de mais de mil páginas que entrelaça a intimidade da vida com a da literatura. Já a condensação dos demais cadernos, os que abordavam temas diversos, testemunhavam a experiência dos dias e escapavam do magnetismo borgeano, apareceu em 2001 na Argentina, há exatos vinte anos, sob o título Descanso de caminantes — ainda sem tradução para a língua portuguesa, tal como o Borges. São pouco mais de quinhentas páginas, recorte possível das milhares que formam o grosso do material, parcialmente revisadas por Bioy e organizadas por Martino.

O pesquisador santafesino Alberto Giordano[nota 2] escreveu que, para o leitor ou estudioso de diários de escritores argentinos, o gênero apresentava um corpus estreito até pouco tempo: estavam à disposição os cadernos de Alejandra Pizarnik (1936–1972), os papéis incompletos de Rodolfo Walsh (1927–1977), as (vastas) entradas de Bioy Casares e pouco mais; é certo que a recente publicação, em três tomos, de Los diarios de Emilio Renzi, obra monumental de Ricardo Piglia (1941–2017), oferece farto e delicioso material para os que buscam a página íntima. Ao jogar com a confissão e a ficção, com o nome próprio e a construção de um personagem que se confunde com o eu, Piglia oferece novos modos de ler os cadernos pessoais. No Bioy de Descanso de caminantes, importam menos os pactos com a nomeação; estão ali, isso sim, a persistência na abordagem do presente e o romanesco esforço de agarrar o passado.

Algumas constantes atravessam os diários do autor de A invenção de Morel (1940), de Plano de fuga (1945), de O sonho dos heróis (1954): a transcrição de sonhos e o apontamento sobre questões relativas à língua, ao “idioma dos argentinos”, se assim se quer. A elaboração textual do sonho, para Bioy Casares, se dá, repetidas vezes, paralela ao deboche que dirige à psicanálise, campo que vê florescer em seu país com o avanço do século. No final de 1975, anota: “Acabo dormindo e sonho. Em seguida me desperto, penso no sonho, que me traz à memória, repleta de nostalgia, uma lembrança de algum momento da minha vida ou de uma leitura. Enquanto busco localizá-la, essa lembrança se dissolve no esquecimento. Procuro em vão e, pouco a pouco, entendo que minha lembrança não foi mais que outro sonho”. Há, entre os sonhos do escritor que foram lançados ao caderno, a presença reincidente da imagem da avó materna, de ruas de Buenos Aires que trocam de lugar ou de direção (como em um conto de A trama celeste, livro de 1948), e do pai, Adolfo Bioy Domecq: “Dezembro de 1980. Sonho. Sonhei com meu pai. Pela abertura de uma porta, vi-o em uma cadeira de vime, de balanço, rindo, no quarto ao lado. Tive então a má sorte de acordar”.

Quando se dispõe a examinar a língua, a deslocar a atenção para a linguagem oral que uma escuta caminhante capta nas ruas do Bairro Norte ou nas do Centro, anota uma frase ou palavra e logo o seu sentido, por vezes escapante ou desusado, em vias de perder-se na renovação espontânea do falar. Define, entre centenas de outras, o sentido das expressões aquí no pasó nadacualquier cosapara mal de mis pecados, es sí o sí, desmejorado, recorda o léxico que remonta aos anos 1920 e que nem sempre perseverou — e ancora essa atenção não só a um tempo, mas a um lugar. Em verdade, o idioma de Bioy talvez não seja o dos argentinos, mas o do habitante da cidade de Buenos Aires, e, ao longo das páginas dos cadernos, o escritor aponta que, em outra região ou cidade do país, determinada palavra pode querer dizer outra coisa.

Para além da transcrição do registro onírico e da indagação sobre o idioma, a mais poderosa constante de Descanso de caminantes parece ser a disposição a narrar. Há momentos em que o escritor se afasta da brevidade que caracteriza, em regra, o gênero do diário íntimo, para se aproximar da narração e do ritmo que muitas vezes empregou nas melhores passagens da sua literatura, e o fez em episódios significativos. No inverno de 1976, Bioy narra os acontecimentos de um final da tarde em Buenos Aires, o ocaso do dia 21 de maio daquele ano. Havia ido ao cinema, passado em casa e retornado à rua antes do crepúsculo. Estacionava o carro numa rua cêntrica quando notou os ruídos de uma furiosa perseguição policial, ou militar: motocicletas com sirenes ligadas, homens com armas longas, mesmo um jipe com uma espécie de canhão trafegava pelas ruas do Centro.

“Na frente ia um indivíduo com um traje folgado, de roupa marrom, talvez parda; esse homem havia dobrado a esquina pela rua e, a uns cinco ou seis passos de onde eu estava, ao subir na calçada, tropeçou e caiu. Um dos perseguidores (todos vestidos de civil) lhe acertou um tremendo chute e gritou: filho da puta. Outro mirou de cima, com o revólver de cano mais grosso e longo que já vi, e começou a disparar as balas, que em um primeiro momento me pareceram pedrinhas. As balas caíam ao meu redor”, anota. Bioy diz que pôde escapar da calçada e correr em outra direção; mais tarde, ao retornar ao ponto em que havia deixado o carro, percebe que há um corpo caído e entende que — poucas semanas depois do golpe de Estado de março de 1976 — há pouco havia presenciado um fuzilamento.

A ditadura militar argentina é uma ausência nos diários publicados, mas não uma ausência completa. Os cadernos permitem que se leia entre brechas — ali aparece o empobrecimento econômico do país, visível mesmo para as famílias tradicionais, as que por décadas enriqueceram desde as estâncias (como era o caso dos Bioy) — e anotações à margem estabelecem um juízo quando se escreve sobre outro tema, numa espécie de leitura desviada da realidade nacional. Quando da morte de Julio Cortázar (1914–1984), lemos nos cadernos um texto quem sabe surpreendentemente emotivo, em que Bioy Casares escreve: “Como explicar, sem exageros, sem desvirtuar as coisas, a afinidade que sinto em relação a ele se na política estivemos muitas vezes em posições opostas? Ele é comunista, eu sou liberal; ele apoiou a guerrilha, eu a rechaço, mesmo que as ações da repressão no nosso país tenham me horrorizado”.

Não só Cortázar é evocado nos diários do escritor; há ali todo um desfile de ideias e vereditos, raras vezes conciliadores, sobre os seus contemporâneos: Ernesto Sabato (1911–2011) é representado repetidas vezes como homem medíocre e pretensioso, ávido pelo reconhecimento público; Martínez Estrada (1895–1964), o autor do hoje célebre ensaio Radiografía de la pampa (1933), é descrito como dono de uma “sabedoria feita de ignorância e maus sentimentos”, enquanto a cunhada Victoria Ocampo (1890–1979), escritora protagonista da revista e editora Sur, surge nos cadernos como uma presença diminuída, talvez desimportante. Quanto à ausência da vida e da obra de Silvina Ocampo (1913–1993) nos diários de Bioy Casares, outro ensaio poderia ser escrito.

Se as menções a Jorge Luis Borges foram mais do que numerosas ao longo de toda a escrita dos cadernos, quase todas elas, no entanto, foram destinadas ao livro que reúne as entradas relativas ao convívio com o escritor; para a condensação presente em Descanso de caminantes, resta ao menos uma e relevante exceção que toca o autor de Ficções (1944).

Em meados de 1985, um episódio cotidiano ilumina o vazio deixado por Borges, já afastado dos amigos de todos os dias e em seus últimos meses de vida. Escreve Adolfo Bioy Casares: “A propósito da inundação de Buenos Aires de 30 de março, queria averiguar quando foi a [inundação] que é descrita no Libro extraño, do doutor Sicardi. Com Borges ausente, não tenho a quem recorrer; fora ele e eu, quem se lembra do Libro extraño?”. Coautor de contos policiais, colega na composição de antologias e presença ineludível de conversações e jantares, Borges é também o amigo a quem recorrer, o dos gostos, convicções e posturas em comum. O aliado e o confidente, mesmo quando não há guerra ou segredo.

Borges morreria no inverno do ano seguinte, um sábado, o 14 de junho: Bioy saberia por acaso, ao passar por uma banca de revistas do bairro da Recoleta no começo da tarde e ouvir a informação da boca de um desconhecido. Bioy, de certa forma, sobreviveria a toda uma geração e aos seus familiares. Morto aos 84 anos, às margens da virada do século, Bioy Casares deixou em seus diários, prática da escritura que levou adiante até quase o final, o testemunho de um país que atravessou mudanças bruscas, ditaduras, recomeços democráticos, modificações de costumes, modas, vanguardas, saídas para a literatura. Nas páginas dos cadernos que alcançaram a posteridade, vê-se a figura luminosa, nostálgica sem recorrer ao lamento, de uma Argentina irremediavelmente perdida.


NOTAS


[nota 1] Os trechos de Descanso de caminantes aqui citados foram traduzidos pelo autor do texto.

[nota 2] Em La contraseña de los solitarios: Diarios de escritores (Rosario: Beatriz Viterbo Editora, 2012).