Gótico nordestino foi causado por um incêndio.
Em 2018, eu vivia uma crise profunda, tanto por causa da política, quanto por problemas pessoais. Foi então que me recordei, sem que eu consiga explicar o porquê, da visão da queima dos canaviais na beira das estradas paraibanas e pernambucanas, que tanto percorri durante os anos em que morei no Nordeste. É inesquecível a fúria do fogo; são inesquecíveis as espirais espessas, quentes, subindo aos céus – a queimada da cana é nosso apocalipse de estimação. Imaginei um futuro próximo, distópico, no qual o Brasil é assolado por inexplicáveis temporadas de combustão espontânea. E se estes incêndios quase sobrenaturais fossem naturalizados por nós? E se virassem um motivo de fruição, um hobby, uma idolatria? Se de dia enxergamos mais a fumaça dos canaviais, à noite é o contrário: na escuridão, só existe a cega visibilidade do fogo consumindo a cana. O conto, logo percebi, deveria se passar à noite, na beira de uma estrada na Paraíba. Acabava de nascer Firestarter (o título é uma homenagem à banda eletrônica Prodigy), que viria a ser um dos contos de Gótico nordestino (Alfaguara). Este conto me mostrou duas coisas: eu precisava assumir de vez minha vocação para a ficção especulativa e fantástica; eu precisava assumir, na minha escrita, a noite.
Em 2020, veio sobre nós a pandemia, com toda a ansiedade, risco, paranoia, crise social e política que continuamos, em 2022, a compartilhar. Eu tive o privilégio de manter meu emprego e de conseguir trabalhar em casa. Isolado e em silêncio, eu comecei a rascunhar ideias de histórias que resgatassem para mim o gosto de narrar. Estava convicto de que deveria voltar a escrever sobre o Nordeste, sobre o Brasil contemporâneo, sobre as minhas angústias e sobre a pandemia. Faltava, contudo, uma chave estética, uma linguagem a partir da qual eu poderia criar. Rascunhei ideias de enredos no meu caderninho. Vieram-me caminhadas noturnas, aparições fantasmagóricas, mortos-vivos, metamorfoses, ameaças. Logo percebi que as histórias que eu queria escrever atravessavam os caminhos do gótico e do terror, universos que desde a infância me fascinavam. Decidi assumir esta influência e segui adiante, lembrando aquele Cristhiano adolescente que, na escola, escrevia histórias de terror para se divertir.
O que me interessa no horror não é tanto o medo, mas a sua natureza visionária. O horror é uma poderosa ferramenta para questionarmos fronteiras. Quais delas? As fronteiras do corpo, da moral, dos consensos sobre a realidade. Tensionando os limites, o horror funda uma tradição de imagens e sensações das quais não conseguimos nos livrar tão facilmente, imagens que são um misto de ameaças e extravagâncias. O horror pode ser pensado em uma dicotomia, também. Refiro-me à tensão entre expansão x concisão. Por expansão, tento traduzir a ideia de que o horror sempre nos promete algo além do que é conhecido/percebido. O que dorme debaixo daquele lago opaco? O que se movimenta na beira daquele descampado? Alguém está ali, nas sombras? Há Outros que não são como nós? Quem somos quando dizemos “nós”? Há uma dobra na realidade, um mais-além? A expansão da realidade, no horror, me parece uma consequência do desconforto cotidiano com o desconhecido. Olhe ao seu redor: você consegue apreender toda a realidade à sua volta? Consegue, ao mesmo tempo, enxergar todos os ângulos de um objeto diante de você, ou ter sob controle tudo o que acontece, nos mínimos detalhes, no seu próprio corpo? Neste sentido, o horror é a pedagogia das nossas limitações. Por concisão, quero dizer que o horror possui um especial talento para sintetizar nossas ansiedades individuais e sociais. Em uma só imagem ou personagem, um complexo tecido de angústias, temores e constrangimentos se faz carne. Com frequência, isto se traduz na ideia do monstro. O vampiro, o morto-vivo, o licantropo, o fantasma. Eles condensam em si os impasses do humano.
Gótico nordestino é um comentário sobre pessoas, sobre família, sobre política, sobre o Brasil, sobre meus sentimentos. É uma forma de processar o luto pela perda de um amigo querido, bem como de dar conta do longo processo de luta pela vida do meu avô, que veio a falecer agora em 2022. É minha forma de intervenção política, mas também é meu convite para que vocês possam, durante algum tempo, esquecer um pouco da vida diária e mergulhar num mundo estranho e catártico. Seus nove contos são, como toda obra literária, resultado de diálogos com múltiplas referências culturais. Há, porém, uma unidade, que é a atmosfera, nos meus contos, criada pela influência do horror. Para mim, o horror é um dos principais temperos do livro, embora fique em aberto se todos, ou mesmo algum dos contos pode ser considerado como de fato “horror”. A resposta a esta indagação não me cabe, mas, sim, a vocês.
Ao me ensinar a expandir a realidade brincando com o desconhecido, ao me ensinar a condensar meus medos criando fantasmagorias, Gótico nordestino me deu a chave para que eu esteja, ao mesmo tempo, próximo e distante das minhas circunstâncias. Quem topar viajar comigo nestas histórias vai encontrar uma jornada pessoal por nossos tempos sombrios, mas também, quem sabe, uma discreta luz tremulando na penumbra.
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