Artigo Anpocs Rafael Olinto março.22

 


Herdeiro do contexto de crise da modernidade, o pensamento social precursor da sociologia e das demais ciências sociais compartilha a sua veia crítica na busca de soluções. Conforme argumenta Florestan Fernandes (1920-1995) em A herança intelectual da Sociologia, esta disciplina foi, antes que se constituísse em ciência, uma “forma cultural de concepção de mundo”, uma “Filosofia da Ação Humana”, portadora do desejo de intervenção quer no sentido da mudança quer no sentido da manutenção da ordem social. Contudo, prossegue Florestan, a sociologia, em seu percurso disciplinar, acaba por voltar-se contra essa herança na medida das exigências da pesquisa empírico-sistemática, assim como do desenvolvimento de seu aparato conceitual e teórico. Teria então a sociologia abandonado em cerca de um século aquela perspectiva crítica de origem em troca da legitimidade que passaria a ser conferida às ciências que visam o estabelecimento de leis gerais, dentre as quais quis se incluir? Teria o modernismo prosseguido com aquela tradição crítica do século XVIII, tão bem- reconstituída em Crítica e crise, livro do historiador alemão Reinhart Koselleck (1923-2006)?

Sem qualquer intenção de esgotar tais questões, diria que sua importância para o que nos interessa no momento está em que tanto o abandono da ambição utópica de legislar sobre o “dever ser” por parte das ciências sociais quanto o vínculo do modernismo lato sensu com a tradição crítica servirão de balizas para o exame das relações entre modernismo e ciências sociais que pretendo apenas introduzir neste artigo, alertando desde já para os riscos e as dificuldades da empreitada. Bastará então mencionar o que será o ponto central deste debate: o de que essas relações podem ser apreciadas a partir da ideia de que movimentos no sentido da cooperação ou no sentido dos efeitos adversos possam ter operado de forma simultânea ou assíncrona ao longo dessa trajetória de aproximação na primeira metade do século XX. No primeiro caso, coloco a questão de até que ponto as ciências sociais puderam corrigir os excessos de voluntarismo da crítica modernista, apresentando um programa e um conjunto de questões a partir de uma “consciência realista” do social, ao passo que esta crítica, por sua vez, teria fornecido os horizontes normativos para aquelas ciências, evitando seus excessos “presentistas” e suas omissões acerca dos valores implícitos na explicação sociológica. Em sentido inverso, indago em que medida a associação aos vetores modernistas induziu a disciplina a uma espécie de descuido teórico-metodológico, reaproximando a sociologia da filosofia, enquanto expectativas de rigor sociológico, levadas para o campo da crítica, pode ter tido por resultado limitar a interpretação do trabalho artístico, subtraindo-lhe a autonomia. Espero demonstrar a pertinência dessas indagações, localizando-as em alguns dos trabalhos de crítica literária de Roger Bastide (1898-1974), o sociólogo francês que estabeleceu um profícuo diálogo com boa parte dos modernistas brasileiros.

Antes disso, em um rápido retrospecto e para ficar no âmbito das vanguardas modernistas europeias do início do século XX, confirma a associação indicada acima o diálogo intenso de várias de suas vertentes na literatura e nas artes plásticas com disciplinas das ciências humanas e sociais como a psicanálise, a sociologia e a antropologia. Conforme pode ser verificado na literatura a respeito do que está em jogo na relação daquelas ciências com as vanguardas artísticas, o fato de que a realidade passara a ser concebida não mais como dada, natural e familiar, colocava as condições para uma aproximação entre elas. Nesse sentido, a crítica modernista torna-se fundamental ao assumir um ponto de vista em que as ordens estáveis aparecem como construtos artificiais, ideológicos e repressivos; em suma, como uma realidade a ser subvertida, parodiada e transgredida.

Nesta mesma época, no Brasil, a preocupação com a constituição de uma ordem social moderna começa a se generalizar e ganha maior impulso, sobretudo a partir da década de 1920 com os autores do grupo modernista e com a denominada geração modernista. Em síntese, poderíamos dizer que estava em questão, tanto nas artes como nas ciências sociais e no ensaísmo nacional, pensar os elementos (anárquicos e caóticos, ou apenas retrógrados) de nossa tradição, presentes no nascimento dessa ordem moderna. Tais elementos deveriam ser ou expurgados do pensamento e da vida social, ou afirmados e transformados na fundação de uma ordem harmônica ou ainda, pelo contrário, ser equilibrados com outros elementos emergentes, em permanente antagonismo. Lidar com o modo como se daria a articulação entre o novo e o velho, entre a tradição e a invenção na construção do moderno era central para os nossos principais intérpretes e demonstra aquele primeiro vetor acima descrito, ou seja, quando a crítica teria fornecido os horizontes normativos para as nascentes ciências sociais brasileiras.

Seguiremos daqui por diante com Roger Bastide, passando em primeiro lugar por seu Poetas do Brasil, livro publicado em 1946, no qual o trabalho de crítica e de análise sociológica se aliam na interpretação da poesia africana, dos poetas modernistas e da presença do Brasil na poesia francesa. Destacarei aqui apenas seus dois primeiros capítulos. No primeiro, A incorporação da poesia africana à poesia brasileira, Bastide conclui que, após um longo período de contato, a transfusão “do sangue do homem de cor” nas veias da poesia do Brasil já havia ocorrido e era evidente no “abrandamento das formas gramaticais, da eliminação das letras duras e rudes e do uso de uma série de termos ainda virgens, poeticamente falando, certas sílabas em ‘gom’ e, em ‘ga’, ou em ‘om’ e em ‘am’, sílabas noturnas, ruídos surdos do sangue nas artérias, que emprestam ao poema sua linha de encanto mágico”. Contudo, todo esse movimento de fusão dos elementos africanos e brasileiros fora precedido pelo estudo do folclore e pela etnografia e que seguiram sendo, junto à sociologia e à psicanálise, instrumentos analíticos do capítulo seguinte, Bouquet de poetas, no qual Bastide analisa a poesia dos principais modernistas brasileiros de seu tempo. Assim, sua interpretação da poesia de Manuel Bandeira utiliza inferências biográficas, sugerindo que sua forma de apreensão do mundo, que se faz “pelo lado mais subjetivo que se possa encontrar”, se deve à educação do poeta, “uma educação principalmente maternal”, pois “herdou da mãe, de sua mãe que tinha medo de relâmpagos, de telegramas, do escuro, uma estranha angústia diante da vida, e por isso tem um coração contraditório”. Nesse sentido, para Bastide, a forma estética funciona na poesia de Manuel Bandeira como uma forma de lidar com um caos interior, e, se prosseguirmos nessa direção, talvez seja possível ver sua poesia como uma espécie de metonímia do Brasil, apontando para os elementos positivos da contenção da desordem subjetiva ou da desordem social. (Manuel Bandeira) aceitará a desordem interior para dela tirar uma ordem nova.” Difícil deixar de ver, portanto, no contexto do ensaísmo da época, as implicações sociológicas desta interpretação, em que as experimentações no campo da estética transbordavam para o campo do social.

Com Oswald de Andrade, ao prosseguir no seu intento de pensar as modulações realizadas pela subjetividade dos poetas na incorporação do mundo, a associação entre crítica e sociologia se torna ainda mais explícita. Oswald seria quem melhor descreveria o Brasil, “país jovem, que nasce para a vida e se rejubila de sentir os músculos se desenvolverem, sua carne se fortalecer ao sol”, tomando-o “na sua alegria infantil”; contudo, ele teria pecado pelo ressentimento e amargura dos seus últimos anos, pelo seu voluntarismo contrariado: “Sua paixão permanece intacta, mas se transforma em ódio (…) contra aqueles que considera, certo ou erradamente, responsáveis pelas metamorfoses de seu país”.

Em relação a Mário de Andrade, as discordâncias a respeito do tema das relações entre o erudito e o popular, que motivaram a polêmica entre ambos, travada em 1941, parecem ter se dissipado. Ou, como já assinalei, a preocupação de Bastide em Bouquet de poetas era outra: consistia em mostrar como no caso de Mário a subjetividade, explicitamente, e um certo conhecimento etnográfico e sociológico, implícito na sua poesia, absorviam de forma peculiar o mundo, a cidade de São Paulo e o Brasil. “Nada de uma poesia construída, uma poesia de gabinete, porque Mário de Andrade é povo, caboclo, luso-ítalo-indiano-brasílico-paulista, e o que, no início, era talvez conhecimento, se transformou, em seu coração, numa fonte que brota de si mesmo.”

Também peculiares, como o leitor ou a leitora já pode supor a esta altura, são os outros poetas do bouquet, Guilherme de Almeida, Sérgio Milliet e Carlos Drummond de Andrade, que permitem a Bastide estabelecer as relações de seus poemas com autores, gêneros literários e concepções tanto de mundo quanto da sociedade brasileira. Resta, à guisa de conclusão e para retomar o último par enunciado ao início deste artigo, o das relações conflituosas entre modernismo e ciências sociais, comentar a importante carta de Roger Bastide a Sérgio Milliet, publicada anos antes, na edição de 25 de novembro de 1944 em O Estado de S. Paulo. O ponto central é o das limitações da crítica sociológica. Primeiro, coloca-se enfaticamente contrário à pseudossociologia e aos simplismos dos críticos, pois para ele “o mundo social se caracteriza por sua extrema complexidade e tudo o que em sociologia não é complexo, é falso.” Contra Milliet, enuncia sua concepção de crítica que se separa radicalmente da análise sociológica. “A Sociologia é uma explicação e não uma norma. Criticar quer dizer julgar, expender julgamentos de valor. A Sociologia só expende julgamentos de realidade.” Tanto a crítica de arte como a análise sociológica visariam transcender o “subjetivo coletivo”, os valores coletivos, para alcançar a objetividade.

Como diz, “a questão é saber se o crítico deve tentar julgar o mais possível a obra de arte através de seu momento e de seu meio”, arriscando-se a cair na repudiada crítica sociológica, ou se, ao contrário, “deve tentar, ele também planar livremente”. A resposta de Bastide é previsível e anuncia a aposta na invenção e na imaginação sociológica, das quais é resultado Brasil, terra de contrastes, seu penúltimo livro sobre o país, de 1957: “O sociólogo que quiser compreender o Brasil, não raro precisa transformar-se em poeta”.