Artigo Recueil Hana Luzia junho.22

 

Rio de Janeiro, junho de 1788. Não sabemos o dia exato em que os dois exemplares da Coletânea das Leis Constitucionais dos Estados Unidos da América desembarcaram clandestinos no porto da cidade. O livro, de tamanho pequeno, tinha formato um pouco maior do que uma caderneta de capa dura — fácil de fazer sumir nas barbas de uma autoridade xereta. Os volumes vinham embrulhados nas peças de roupa da bagagem de uma dupla de estudantes, José Álvares Maciel e José Pereira Ribeiro, recém-formados em Coimbra (Portugal), de retorno ao Brasil, cheios de ânimo político para encetar uma revolta e instalar uma República independente nas Minas. Publicado em francês, a língua internacional da época, a edição contou com o discretíssimo apoio do governo da França — interessado em enfraquecer a Grã-Bretanha com uma derrota na guerra de independência da América inglesa — e se intitulava, no idioma original de sua publicação, Recueil de Loix Constitutives des Colonies Anglaises Confédérées sous la dénomination d’États-Unis de l’Amérique-Septentrionale.

O Recueil, como a publicação ficou conhecida desde então, tinha o objetivo de promover a Revolução Americana (1775-1783) para além de suas fronteiras. Seu conteúdo era letal para o Antigo Regime, já que continha os documentos constitucionais fundadores da República nos Estados Unidos da América: a Declaração de Independência, os Artigos da Confederação, as Constituições de seis dos treze estados que formavam a República — Pensilvânia, Nova Jersey, Delaware, Maryland, Virgínia e Carolina do Sul —, além de alguns documentos avulsos, como o juramento da Baía de Massachusetts, a instrução ditada pela cidade de Boston ao Congresso Geral, o Ato de Navegação das Colônias Unidas, o Censo de 1775 das colônias inglesas. O livro lançava luz sobre uma visão de futuro: o que é uma República, o que ela deve ser, e o que é possível realizar. Além disso, trazia as ferramentas adequadas para quem pretendia implantar a República em um território potencialmente continental e com uma população numerosa. A proposta era grande demais para a imaginação política da época, que até então só considerava a viabilidade do experimento republicano em pequenos territórios.

Ainda no Rio de Janeiro, Álvares Maciel encontrou o alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes. Eles já se conheciam; Maciel tinha por cunhado o comandante de Tiradentes no Regimento Regular dos Dragões de Minas, coronel Francisco de Paula Freire de Andrade. A afinidade entre os dois era grande, havia interesses demais em comum, e Álvares Maciel não teve dúvida: emprestou seu exemplar para o amigo. Tiradentes tinha lábia, bons argumentos e uma causa republicana; regressou a Minas com o livro na algibeira e não o largou mais. Quase um ano depois, de volta ao Rio de Janeiro, em maio de 1789, dois dias antes de ser preso e certo de que estava sendo seguido a mando do vice-rei do Brasil, Luís de Vasconcelos e Souza, ele entregou o Recueil a um seu subordinado, Francisco Xavier Machado, com a recomendação que o levasse aos conjurados em Vila Rica e entregasse provavelmente a Cláudio Manuel da Costa ou a Tomás Antônio Gonzaga.

O exemplar nunca chegou ao destino. Acabou nas mãos do visconde de Barbacena, governador da capitania de Minas Gerais. Alarmado, Barbacena mandou abrir uma investigação urgente, sigilosa e separada da devassa principal contra os conjurados mineiros — a instauração de processo judicial que inclui investigação, obtenção de provas e inquirição de testemunhas. Afinal, havia ali um bocado de documentos revolucionários. O Recueil reunia tanto os escritos constitucionais sobre a maneira de se criar uma estrutura de governo para a República quanto o catálogo de direitos estabelecidos no preâmbulo da Declaração de Independência. O grande perigo era esse: como se não bastasse trazer para as Minas a nova linguagem do republicanismo que brotou no território da antiga América inglesa, o livro juntava essas ideias com a afirmativa de que os homens possuem direitos inatos e que esses direitos não são uma evidência natural nem dependem de um absoluto transcendental; ao contrário, constituem uma condição de proteção do indivíduo e representam uma conquista histórica e política. Pior: direitos dispõem de uma força intimidadora e têm efeito galvanizador. Uma vez enunciados, não somente fluem como cascata mas também incitam os detentores a falar por si mesmos e a exigir reconhecimento igual. Como é que uma publicação ilegal e potencialmente incendiária tinha conseguido abrir brechas em sua administração e estava circulando clandestinamente entre o Rio de Janeiro e as Minas? O visconde de Barbacena deve ter esbravejado pelos salões do Palácio dos Governadores, em Congonhas do Campo, brandindo o livro nas mãos.

Apenso aos Autos de Devassa da Inconfidência Mineira, por obra de Barbacena, o exemplar do Recueil sobreviveu. Foi enfiado, junto com os demais documentos da investigação judicial, dentro de um enorme saco de pano verde e quase todo mundo esqueceu o assunto por setenta anos nos arquivos da secretaria do Império, no Rio de Janeiro. Em 1860, o então diretor da Biblioteca Nacional, Alexandre de Mello Moraes, decidiu bisbilhotar o processo da Conjuração de Minas e topou com o Recueil. Ao que parece, ele resolveu fazer política paroquial com o patrimônio histórico: doou o exemplar à biblioteca pública da cidade de Desterro, hoje Florianópolis. “Quando tive notícia que a capital de Santa Catarina diligenciava livros para formar sua biblioteca lhe mandei de presente o exemplar das constituições, apenso ao processo original de Tiradentes”, ainda se deu ao trabalho de escrever no verso da capa do Recueil. Passado pouco mais de um século, e a certa altura do ano de 1984, o então governador de Minas Gerais, Tancredo Neves, soube da história de um pequeno tesouro perdido e não titubeou: mandou pedir ao estado de Santa Catarina o exemplar de volta. Depois de tantas peripécias, o Recueil é hoje o documento mais importante do acervo do Museu da Inconfidência, em Ouro Preto.

Mas o que aconteceu com o segundo exemplar? Conhecemos quase nada sobre ele: o Recueil chegou intacto a Vila Rica e José Pereira Ribeiro o entregou pessoalmente a um dos conjurados. Bacharel em Leis e proprietário de uma livraria invejável, não é difícil imaginar que Ribeiro o levou de presente ao amigo Cláudio Manuel da Costa, com quem habitualmente trocava livros; e que Cláudio Manuel emprestou o exemplar ao cônego Luís Vieira ou a Tomás Antônio Gonzaga. Os três liam francês, alinhavavam, em suas conversas, a criação de uma nova forma política para o governo das Minas e conferiram especial atenção
ao ineditismo das soluções republicanas que faziam parte dos referenciais mobilizados pela Revolução Americana. As pistas terminam aí, e é possível que o destino do livro seja idêntico ao dos demais papéis destruídos após circular, em Vila Rica, o aviso de que a Conjuração Mineira havia sido descoberta. Tudo quanto pudesse comprometer os conspiradores foi queimado: plataforma legislativa, planos de governo, esboço de Constituição.

Ou não. Quem sabe, a história não tenha se passado exatamente assim, outras providências para evitar acusações e suspeitas acabaram sendo tomadas e o segundo exemplar do Recueil foi entregue, talvez por Cláudio Manuel da Costa, para pessoas íntimas, sem visibilidade na conjura. Não sabemos. Mas alguma coisa diferente do que já conhecemos pode ter acontecido ao livro. Afinal, quase trinta anos após a derrota da Conjuração, um volume do Recueil, escrito em francês, com referências de publicação idênticas às da obra que José Pereira Ribeiro levou para Minas, apareceu no Recife e andou virando a cabeça dos membros do governo revolucionário provisório, durante o auge da Revolução de 1817.

Seria capaz de ter saído do bolso de qualquer um, é fato. O êxito da experiência republicana norte-americana oferecia sentido e forma política à vocação autonomista de Pernambuco, e transitou ativamente, em 1817, por dentro da estrutura social, capturando seus extratos intermediários e se repartindo entre as camadas populares. O exemplar do Recueil detalhava aos revolucionários o projeto constitucional e a estrutura de governo de uma República Confederada. A tese de que a soberania era principalmente legislativa, residia nas províncias e não podia ser compartilhada foi atraente demais para os pernambucanos naquele ano, como fora, em 1789, para os conjurados mineiros, e eles estavam prontos para ela. Isso explica o interesse dos revolucionários, no Recife, pelo livro, embora ninguém soubesse dizer exatamente como foi que o exemplar do Recueil apareceu por lá.

A história não termina por aqui, contudo. Circulando, no Recife, na mesma época, estava um sujeito vindo das Minas. Luiz Fortes de Bustamante tinha então cerca de 60 anos de idade, era natural de Vila Rica e, no disse me disse dos círculos revolucionários da cidade, corria a informação de ele ter andado pela orla da Conjuração Mineira. É bem possível. Bustamante foi contemporâneo de Álvares Maciel e de José Pereira Ribeiro, em Coimbra — e talvez tenha participado, em 1781, da cerimônia secreta ocorrida na universidade portuguesa em que estudantes do Rio de Janeiro e de Minas juraram dedicação à causa da independência na colônia. Seja como for, Bustamante abandonou Vila Rica logo após o início da repressão aos conjurados, em 1789, em algum momento entre a prisão de Tiradentes e a chegada às Minas das tropas enviadas do Rio de Janeiro pelo vice-rei, dom Luís de Vasconcelos — talvez intuindo que o fio do novelo desfiado por Barbacena poderia chegar nele.

Estabeleceu-se por pouco tempo no Rio de Janeiro, subiu para Pernambuco e arrumou uma maneira de submergir. Até que reapareceu, em 1817, animadíssimo e de bacamarte na mão. Participou dos combates que levaram à conquista do Forte do Brum, no Recife, foi um dos oito signatários da rendição do então governador Caetano Pinto de Miranda Montenegro (que estava refugiado no forte), participou do Conselho da República recém-criada e figurou com destaque entre os ativistas da Revolução de 1817. Quando sobreveio a derrota dos revolucionários seguida pelo acerto de contas da Coroa, Bustamante sabia que não iria escapar — seu nome foi incluído no rol dos proscritos e a prisão não tardaria. Antes que os soldados chegassem nele, porém, deu um jeito de escapulir, de novo, de uma região conflagrada pela sedição, e não olhar para trás — só que desta vez decidiu que o risco era grande demais e embarcou direto com os filhos para os Estados Unidos.

Tudo isso pode até ter sido coincidência, mas o duplo reaparecimento, do Recueil e de Bustamante, no Recife, em 1817, revela que as ideias de Independência e República se espalhavam internamente na colônia e cresciam à medida que se espalhavam, formando novas e inesperadas teias de conexões. A palavra independência significa soberania. Seu campo semântico supõe a criação de uma comunidade territorial com comando interno e autonomia em relação às potências estrangeiras, a fundação de um corpo político próprio — o Estado — e a capacidade
de criar, alterar e revogar suas leis.

Em 1817, Pernambuco abriu o ciclo revolucionário da Independência, convocando a população a aderir a um programa de emancipação libertário e radical: federalista e ancorado na figura de um personagem de forte inspiração republicana — o “cidadão patriota”. No dia 3 de março de 1817, a República foi implantada na cidade do Recife. Nos anos que se seguiram, os pernambucanos continuaram em pé de guerra. A província contestou o projeto de Império brasileiro encabeçado pela corte instalada no Rio de Janeiro, com uma longa sequência de eventos políticos de natureza mais ou menos local. Como se tudo isso não bastasse, em 1824, Pernambuco hasteou novamente sua bandeira cravejada com representações da República e conjurou nova revolução. A Confederação do Equador reafirmou a autonomia da província, reimplantou a República e convidou os vizinhos do então Norte a aderirem — Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Alagoas, Sergipe e Paraíba. O Recueil não inventou tudo isso, é claro. É só um livro que cruzou o Atlântico, passou a falar outra língua e, em algum meio de caminho, reuniu as pontas dessa história. Uma história que vale a pena recordar, hoje em dia, no Brasil.

 

Nota da autora: Devo à generosidade de Evaldo Cabral de Mello a hipótese e as informações sobre o possível reaparecimento do exemplar do Recueil, de José Pereira Ribeiro, no Recife.