Este texto trata da participação de mulheres mineiras nas mobilizações da Revolução de 1930. Ao fazê-lo, pergunta-se de que modo rupturas e transformações institucionais foram objeto de disputas, sonhos e aspirações de diferentes grupos sociais que, neste processo, se constituíram como sujeitos políticos.[nota 1] Pergunta-se, também, quantas revoluções podem existir numa revolução.
Ao recortar a participação de mulheres, o texto indica que gênero permeia um amplo domínio daquilo que, comumente, é tomado como uma narrativa universalizável sobre a política e suas lutas. Assim como se deu em diferentes partes do mundo, a participação das mulheres em revoluções, guerras ou rebeliões acabou por levantar questionamentos sobre o tipo de envolvimento que lhes caberia: combatentes nos fronts; ocupadas com as atividades de suporte à guerra dos homens produzindo armas, roupas ou alimentos; permaneceriam indefesas em suas casas; ou, finalmente, teriam um lugar próprio produzindo e colocando suas ideias em movimento.
Este texto observa gestos, atos e palavras de um conjunto de mulheres mineiras que, na virada dos anos 1930, lançaram-se em diferentes esforços para produzir e colocar suas ideias em movimento. São iniciativas como a organização do Batalhão Feminino João Pessoa, dedicado a apoiar e disputar os fronts da Revolução; a fundação da Associação Feminina João Pessoa (AFJP), da Legião Feminina Mineira e do Partido Liberal Feminino Mineiro, destinadas a organizar politicamente as mulheres do estado; e, por fim, a organização do I Congresso Feminino Mineiro, realizado em 1931.
Todos esses movimentos revelam um contexto marcado por fortes controvérsias sobre os alcances e limites da emancipação, da igualdade e da liberdade, refletindo sobre a construção de identidades dos sujeitos políticos, e, especialmente do modo pelo qual diferenças são mobilizadas para a construção de demandas e reivindicação de direitos.
A trajetória de uma dessas mulheres, Elvira Komel (1906-1932), pode ser tomada como guia a nos conduzir por tais controvérsias. Elvira nasceu em São João do Morro Grande, hoje município Barão de Cocais (MG), filha de Ernest Komel, um engenheiro austríaco, e de Marieta Correia Guedes, uma dona de casa mineira. Entre 1925 e 1929, viveu no Rio de Janeiro, onde se graduou em Ciências Jurídicas e Sociais na Faculdade Nacional de Direito.
Apontada como a “leader do movimento feminista” de Minas Gerais, foi a primeira mulher a advogar no Fórum de Belo Horizonte. Atuante nas lutas pela escolarização de meninas e mulheres e pelo voto feminino, publicou inúmeros manifestos e artigos em jornais, além de liderar diversos congressos e encontros tanto na então capital da República, como também em Belo Horizonte e outras cidades mineiras. Participou ativamente das mobilizações da Revolução de 1930, redigindo manifestos dirigidos às mulheres, organizando batalhões, ligas e associações de mulheres.
Tais movimentações foram registradas por alguns jornais da época. Em 4 de novembro de 1930, por exemplo, a edição de O Jornal trouxe reportagem intitulada O concurso da mulher mineira à causa da Revolução. O texto afirma que “a mulher mineira não podia faltar com o seu concurso à causa nacional da Revolução. E este efetivamente não faltou, existindo formas diversas de atividade útil e produtiva”. Entre tais atividades, estavam o alistamento na Cruz Vermelha para atuarem como socorristas, a formação de legiões de caridade “que prestavam aos nossos soldados os melhores e mais dedicados serviços” e a fundação do Batalhão João Pessoa.
Ao referir-se especificamente ao batalhão, a reportagem informa que ele havia sido “incorporado pela dra. Elvira Komel, advogada nos auditórios desta capital, com o concurso de senhoras e senhoritas dos nossos melhores meios sociais”. Também informa que o batalhão havia recebido “adesões de muitos pontos no interior do Estado, onde unidades como o mesmo objetivo patriótico foram também constituídas”.
Onze dias depois, uma pequena nota no mesmo O Jornal, informava que o batalhão estava em plena atividade, “confeccionando a bem da Revolução mais de quatro mil fardamentos para os soldados e servindo nos hospitais de sangue da Capital e dos municípios mineiros, além de terem como obrigatória a instrução militar feminina. Eram mulheres de todas as classes e profissões sociais, incluindo 300 enfermeiras práticas” (matéria A colaboração da mulher mineira no movimento revolucionário, de 15 de novembro de 1930).
Para além de funções de suporte aos soldados homens e a suas movimentações, o batalhão também se organizou para atuar em combate. Na mesma edição do dia 15 de novembro, O Jornal publica imagem das mulheres alistadas no batalhão, junto com o hino por elas criado:
I
De Norte a Sul – agita o Gigante!
É a marcha augusta de um Porvir triunfante!
A Pátria sofre! Sus! Brasileiro!
É João Pessoa o nosso pioneiro!
Na terra altiva dos Inconfidentes,
Ergueu-se a estirpe audaz dos Tiradentes!
Jamais um bravo a injustiça escuta
Irmãos, às armas! Vencei na luta!
II
Junto a Marilia e Heliodora,
Elvira Komel é ação!
Mulher-soldado – não chora!
Mulher-alma – é proteção.
Preparamos vossa farda
Não podendo combater!
Mas ficamos na vanguarda
Do civismo e do dever!
III
Arautos da Nova Aurora,
Bravos soldados marchai!
Ouvindo as vozes de outrora!
De Minas, do Paraguai!
Gravai na vossa bandeira
Ó Batalhão João Pessoa
– Minas é livre e altaneira!
E o Brasil não se agrilhoa!
Até o momento não foi possível encontrar indícios da participação direta do batalhão em conflitos armados. De todo modo, ele teve duração curta e já no início de dezembro de 1930 reorientou suas ações para dar origem, também sob direção de Elvira Komel, à Associação Feminina João Pessoa, que funcionou por meio de centros municipais em pelo menos 52 cidades mineiras e em filiais montadas em diversos bairros de Belo Horizonte.
A rápida reconversão do batalhão em AFJP pode indicar tanto a pouca resistência propriamente militar enfrentada pelos revolucionários, como também que o ativismo daquelas mulheres tenha se concentrado prioritariamente na luta institucional. Outro indício dessa estratégia foi a fusão entre a AFJP e a Legião Feminina Mineira, ocorrida em 1931, e dando origem ao Partido Liberal Feminino Mineiro: “uma única corporação com finalidades amplas: sociais, humanitárias, cívicas e políticas. O nosso programa visa proteger a mulher, trabalhar pela sociedade e pela pátria, colaborando, também, na realização do programa revolucionário, para que a República Nova se torne realidade” (Correio da Manhã, 24 de setembro de 1931).
O ano de 1931 foi marcado por inúmeras ações e iniciativas de mulheres mineiras em termos de ativismo político e institucional, visando garantir espaços para suas pautas e demandas na República nova. Em junho daquele ano, um importante evento marcou esse esforço: a realização do I Congresso Feminino Mineiro, com conferências diurnas no Teatro Municipal de Belo Horizonte e chás dançantes durante as noites no Automóvel Club, também na capital mineira.
Tanto no congresso, mas também nas pautas do antigo batalhão, da AFJP e do Partido Liberal Feminino Mineiro, os debates sobre a emancipação feminina estiveram concentrados na diferença entre os sexos no acesso aos direitos sociais e políticos que estavam, então, sendo discutidos no governo provisório.
Na pauta do congresso estiveram presentes prioritariamente três demandas: 1) mulheres deveriam conquistar o direito ao voto e à participação política; 2) ampliação do acesso de mulheres à educação em todos os níveis de ensino; 3) ampliação do acesso de mulheres à capacitação profissional e equiparação da remuneração em relação aos homens.
Para as congressistas, se os papéis sociais das mulheres e os lugares – materiais e simbólicos – ocupados por elas não fossem transformados, e com eles toda a sociedade, seria inútil esperar qualquer mudança significativa que favorecesse o bem-estar geral.
Ainda que, em certo nível de abstração, seja possível afirmar que mulheres possam ter alguns interesses comuns, não existe explicação causal universalmente aplicável que nos permita uma descrição geral de quais seriam esses interesses. Isso ocorre tanto porque a subordinação das mulheres tem origem multicausal, como também porque é mediada por uma variedade de estruturas e mecanismos que variam consideravelmente no espaço e no tempo, e sob a qual incidem posicionalidades de raça, etnia, classe e nacionalidade.
A Revolução de 1930 representou uma aliança de forças diversas em oposição ao poder oligárquico, procurando reformar as bases sociais e institucionais do Estado brasileiro. Retomando a questão inicial sobre quantas revoluções podem existir em uma mesma revolução, observar a participação das mulheres faz emergir um conflito entre público e privado no qual estão em questão também os limites à igualdade postos pelos lares patriarcais.
Ao tomarem parte nas fileiras da disputa política e da luta militar que levaram à ascensão de Getúlio Vargas, muitas mulheres viram no esforço revolucionário uma oportunidade – histórica e política – de promover também uma revolução social com impacto direto em seus cotidianos. Os registros encontrados em jornais são indícios de que a participação das mulheres no movimento revolucionário foi vista e destacada em seu contexto, em que pese ter sido progressivamente apagada, deixando de compor a memória sobre os acontecimentos acerca da Revolução de 1930.
NOTAS
[nota 1]. Este texto integra a pesquisa conduzida pela autora no projeto MinasMundo: O cosmopolitismo na cultura brasileira.