Castello Hana Luzia agosto2020

 

 

“Você pode dizer que não sou uruguaio nem ator, embora não tenha certeza de que existo”, disse Jorge Luis Borges ao jornal El País, em 1981. Na ocasião, o escritor portenho foi questionado sobre a nota publicada na revista argentina Cabildo, assinada por Dan Yellow, que dizia que Borges não existe, que era um personagem de Adolfo Bioy Casares, que contratou um ator uruguaio, chamado Aquiles Scatamacchia, para suas aparições públicas. A notícia foi difundida por periódicos como o Le Monde e a revista L’Express, virou radionovela e, posteriormente, uma novela escrita pelo alemão Gerhard Köpf, intitulada Borges não existe (Borges gibt es nicht). Héctor Babenco, encantado pela anedota, encomendou um argumento fílmico a Carlos Eduardo Lins da Silva, porém a história não chegou a ser filmada.

Podemos imaginar que esse simulacro rendeu tanto assunto justamente pela carga borgeana que carrega. É provável que Borges apreciaria ter sido o primeiro a publicar sobre sua própria inexistência, fazendo mais uma vez o texto prevalecer para além de sua identidade como autor. Apesar de já ter respondido em entrevista que não gostaria de ter sido um de seus personagens, sua vida e literatura expõem o contrário: mostram o escritor sendo uma persona criada por ele mesmo.

Para ser um homem do século XX, Borges falseava sua própria data de nascimento, originalmente calcada no último ano do século XIX. É sabido também que foi registrado com um nome, Jorge Francisco Isidoro Borges, em 1899, e batizado com outro, Jorge Francisco Isidoro Luis, em 1900. No âmbito familiar era chamado de Georgie, especialmente pela mãe, Leonor. Jogando com seus nomes e sobrenomes reais, assinou como Jorge Borges hijo, Jorge-Luis Borjes, Jorje Luis Borges, Luis Borges, Georg Lüdwig Borges e, o definitivo, Jorge Luis Borges.

O jogo de espelhos continua. Ao longo de sua carreira, o autor argentino adotou diferentes recursos para assinar seus textos – pseudônimos, alônimos (nomes diferentes do seu, porém de pessoas reais), inicialónimos (palavra em espanhol que nomeia o uso de iniciais do nome e sobrenome), assinaturas conjuntas com outros autores ou pseudônimos compartilhados. Há ainda os erros editoriais, como foi o caso da revista madrilenha Cosmópolis, n. 34, de 1921, que editou seus textos como Jorge Lus Biorges.

No livro Borges y sus firmas (Borges e suas assinaturas), publicado em 2018 pela Ediciones Urania, Mario Tesler apresenta 45 variações usadas por ele (sendo algumas atribuídas). Alex Ander, Benjamín Beltrán, F. Bustos, Nemo, Manuel Pinedo e Dagesmar são algumas delas. O trabalho de Tesler é fruto de sua destacada atuação como historiador e bibliotecário-documentalista na Biblioteca Nacional da Argentina, onde se aposentou em 2016.

Em entrevista ao Pernambuco, o autor relata que, várias décadas atrás, incorporou o estudo de pseudônimos entre seus temas de pesquisa, o que culminou na publicação de alguns livros. “Estando na Biblioteca Nacional do meu país, interessei-me pelos pseudônimos, apelidos e nomes autônimos daqueles que foram condutores desse organismo da cultura. Entre esses condutores está Jorge Luis Borges. Ao lado de Paul Groussac e Vicente Quesada, o autor de O aleph está entre os que usaram e, falando sem reprovação, também abusaram de pseudônimos. Em relação a Borges, pertencer à Biblioteca Nacional me permitiu dispor de fontes para o estudo do autor e suas assinaturas – dentre essas fontes estão seus manuscritos.”

No Brasil, um dos principais contatos que o leitor tem com essa forma de autoria é baseado na heteronímia de Fernando Pessoa, autor português contemporâneo de Borges, que criou seus heterônimos com biografias e estilos particulares. Ao ser questionado sobre o assunto, o bibliotecário argentino enfatiza: “Nenhum dos pseudônimos utilizados por Borges, individualmente ou em conjunto com outro, pode se enquadrar na categoria de heterônimo. Borges não usa nenhum deles para um desdobramento de personalidade. Muitos dos pseudônimos que usa estão relacionados a alguns de seus ancestrais familiares, os outros são meras ocorrências do momento. A estética nele passa por outro caminho”.

Apesar dessa ideia ser difundida pela maioria dos estudiosos, Rosa Pellicer argumenta sobre a autonomia dos autores criados por Borges e Bioy, dizendo que teriam pouco a ver com seus inventores – portanto, estão mais perto da ideia de heterônimo ou de autoria apócrifa do que da de pseudônimo. Argumento que encontra eco nas palavras de Bioy quando escreve que “é natural que a pessoa que inventa um nome queira também inventar um homem”.

O trabalho de lexicografia realizado por Mario Tesler é uma investigação em andamento, pois sempre há o que se acrescentar a esse dicionário. “Devo recolher mais informação sobre as assinaturas atribuídas para saber com fiabilidade se correspondem a ele ou não. Tenho novos pseudônimos para incorporar e informações complementares sobre todos”, situa.

Assim como a pesquisa de seus pseudônimos, a página de Borges nunca estava fechada. Pesquisadores demonstram em seus estudos como os contos do autor mudavam a cada edição. Há quem diga que Borges só aceitou reeditar algumas obras com a promessa de poder suprimir certas passagens. Sabe-se também que ele tinha o hábito de pegar seus livros na estante da casa de amigos e revisá-los ali mesmo, riscando o papel impresso e empreendendo modificações com lápis e caneta. Como o próprio dizia: “tudo está e nada é”.

ERA UM E FOI UMA LEGIÃO

Foi sonhando, tanto em sentido real quanto figurado, que Borges deu forma a boa parte de sua obra, pois acreditava que cada sonho é equivalente à eternidade – que conteria todos os sonhos e cada sonhador. Sua escritura reivindicou a imaginação literária para impô-la à realidade. Essa também era uma de suas estratégias para colocar-se perante o cânone europeu que, já naquela época, possuía gerações de genealogias, museus e bibliotecas. Vindo do sul global, ele fantasiou suas próprias fontes, enciclopédias, arquivologias e assinaturas. Assim, Borges conferiu diferentes nuances a Buenos Aires, à literatura latino-americana do século XX e à sua própria persona literária.

Suas primeiras variações de assinatura acontecem ainda no início de sua carreira. A revista argentina Martin Fierro (1924-1927) apresentou um campo fértil para suas performances autorais, com cerca de oito variantes, entre elas: Ortelli y Gasset (compartilhado com Carlos Mastronardi); M. B. V. G. (com Leopoldo Marechal, Vicente Vallejo e Oliverio Girondo); Mar-Bor-Vall-Men (com Marechal, Vallejo e Evar Méndez – este, por sua vez, era pseudônimo de Evaristo González Mendéz); Ber.-Bor.-Guillj.-Mar-Per-Vall (Francisco Luis Bernárdez, Guillermo Juan Borges, Marechal, Ildefonso Pereda Valdés e Vallejo); B.M. (não está confirmado se com Marechal ou Evar Mendéz); e J.L. y G. J. B. (com seu primo Guillermo Juan Borges).

Cerca de um quarto das nomenclaturas confirmadas (e algumas atribuídas), logo a maior parte do todo, encontram-se na Revista multicolor de los sábados, um suplemento cultural do jornal Crítica, que circulou entre 1933 e 1934, contando com 61 números. A Multicolor foi dirigida por Jorge Luis Borges e Ulyses Petit de Murat e trabalhava com técnicas literárias de vanguarda, apesar de estar vinculada a um diário massivo e militante – sobre o qual o próprio Borges tecia comentários mordazes.

Ali, dentre outros, Borges foi creditado como Bernardo Haedo e Pascual Güida. O conto La última bala foi escrito pelo autor de A biblioteca de Babel e ilustrado e assinado por Güida, o que gerou controvérsia entre alguns biógrafos. Porém, o livro Borges (Destino, 2006), de Adolfo Bioy Casares, confirmou a autoria de seu amigo íntimo.

De sua parceria com Bioy Casares nasceu o santafesino Honorio Bustos Domecq, assinatura compartilhada pelos dois. “Esse terceiro homem”, como descreveu Borges, a princípio foi creditado como H. Bustos Domecq e, em edições posteriores, apenas como Bustos Domecq. Passados alguns anos, novas séries e traduções chegaram a colocar os nomes de Borges e Bioy nas capas – provavelmente por questões de visibilidade e vendas.

Os parceiros também assinaram como Lynch Davis e B. Suárez Lynch. Segundo Borges, em sua autobiografia, “batizamos B. Suárez Lynch o autor desse livro. Creio que o ‘B’ correspondeu a Bioy e Borges, Suárez foi outro bisavô meu e Lynch outro bisavô de Bioy”.

As pesquisas em andamento se orientam na busca de confirmações para alguns pseudônimos atribuídos a Borges, como: Alba Roja, Suárez Miranda, Carlos Moritán, Herbert Ashe, Julio Platero Haedo, Andrés Corthis, Gaspar Camerarius, Victoria Precana, Isidoro Trejo, Sauli Lostal, José Tuntar e Fra Diavolo. Tais estudos mostram como uma assinatura às margens da página pode ampliar tantas leituras já feitas sobre um dos maiores cânones literários do século XX.

Para entender a dimensão dessas diferentes firmas, há que se ter em vista todo um universo editorial, que navega por traduções, poemas, resenhas, manifestos, notas de falecimento, ensaios, respostas a enquetes, antologias, prólogos, notas editoriais, paródias, prosas humorísticas, conferências, biografias sintéticas, bem como suas principais obras de contos.

Cada gênero, suporte e editora possuem modos de produção específicos, capazes de potencializar ou restringir a obra de um mesmo escritor. Diferentes grafias podem denotar variados gestos: despreocupação com tais recursos estilísticos por parte de quem diagrama e/ou edita o livro, desatenção de seu autor, ou, ainda, um recurso estético adotado por este último a fim de determinar rupturas e nuances em seu fazer literário. Para Jorge Schwartz, em Borges babilônico: Uma enciclopédia, “será tarefa do leitor, do editor, do crítico e do pesquisador, registrar a série de um Borges cujas assinaturas e apodos configuram o corpo de um estilo literário tão incômodo quanto imprescindível”.

Em sua última vinda ao Brasil, em agosto de 1984, em evento produzido pela Folha de S.Paulo, que aconteceu no estacionamento da empresa – que não esperava o grande público que compareceu para ouvi-lo, Borges disse que “a memória é a busca da identidade, podendo-se nela remodelar tanto os fatos vividos do passado como os fatos do futuro. Só o presente é rígido, inflexível”. Diante de indícios como esse, notamos como, para o autor, a ideia de uma identidade pessoal poderia ser moldada pela memória e por outros artifícios, vislumbrando novos futuros para o presente, que é regido pela crueza do real.