Para os meus alunos da graduação no segundo semestre de 2022
Nas primeiras décadas do século XXI, em um futuro não muito distante, Souza, um professor de história, residente na cidade de São Paulo, foi aposentado punitivamente da universidade. Personagem de Não verás país nenhum (1981), o segundo volume da trilogia que Ignácio de Loyola Brandão escreveu sobre o Brasil contemporâneo, o professor vivia em tempos sombrios quando a história era reescrita dia após dia – desde a ascensão súbita de um governante que primeiro degradou a democracia e depois a destruiu. Souza, contudo, insistia em desmontar na sala de aula os procedimentos e a técnica de poder utilizados pelo chefe de Estado para manipular e falsificar os fatos históricos e apregoá-los à população. Talvez um pouco culpado por não ter feito grande coisa contra a instalação do arbítrio, o professor se decidiu a agir do único modo que sabia e puxou a ponta do fio principal da trama do livro. Vai relatar aos outros os acontecimentos de um passado recente que mostram quando foi que o Brasil se tornou – ou se tornará – um país aviltado por uma forma moderna de tirania onde tudo se destrói em troca de nada.
“Tudo parecia tão promissor nos Abertos Oitenta”, relembrava o professor de história. E arrematava irônico, como quem deseja espantar a melancolia: “Quem diria que tudo ia acabar assim, num clima de ridícula e subdesenvolvida ficção científica?” O Brasil é o ponto de mirada de Loyola Brandão, e Não verás país nenhum borra a divisa entre a história e a ficção para assombrar a imaginação dos leitores porque há nele a imagem vívida de uma distopia: uma sociedade projetada no futuro e saturada de ingredientes do tempo presente que exibe, de maneira quase rigorosamente descritiva, o momento preciso em que o esforço civilizatório entre nós se interrompeu e se degradou.
A tarefa da distopia é acionar o sinal de alarme. Em 1868, o pensador inglês John Stuart Mill chamou de “distopia” a descrição ficcional de um governo esmagadoramente opressivo, projetado no futuro. Claro que não era uma previsão, mas uma advertência. “Contemplem nosso futuro, caso não sejam revistas as nossas ações”, ele argumentou em discurso ao Parlamento inglês. Mill recorreu à luz da distopia com o propósito de revelar os disfarces do poder arbitrário que a Grã-Bretanha utilizava para manter seu controle sobre a Irlanda. Sua intuição lhe dizia que as pessoas precisam enxergar concretamente o que é a tirania para conseguirem identificar os elementos que estão na raiz dos acontecimentos capazes de converter países inteiros em regimes de opressão. “Isto é uma distopia”, a forma distorcida – ou adoecida – de um lugar, definiu em seu discurso. E insistiu: “É o nosso horizonte, se não fizermos nada a respeito.”
A definição de Stuart Mill revela o pino que faz a distopia funcionar como uma espécie de dobradiça capaz de conectar ficção e história. Acionar a imaginação é essencial para despertar no leitor o senso de conclusão: isso poderia ter sido evitado. Não é que a ficção consiga ver mais do que a história – mas ela permite ver mais intensamente. Uma distopia põe no caminho do historiador os sinais daquilo que de algum modo já está acontecendo, ao nosso lado, e em algum ponto do horizonte distante – e seu tom característico de advertência premonitória oferece a oportunidade de refletir sobre o que estamos fazendo hoje.
O historiador, por seu lado, demonstra o que sabe sobre o passado. História não é destino, já explicou Evaldo Cabral de Mello: o acontecimento teve início, a conjuntura é imprecisa, o evento ainda não se definiu. Tudo pode ocorrer – ou pode ocorrer nada, como ele diz. E a escolha é nossa. Recorrer ao passado para pensar com ele permite avaliar padrões de ação e estruturas de poder, considerar soluções executáveis para problemas concretos do presente e perscrutar futuros alternativos. “Compreender um momento é ver a possibilidade de participar da criação de outro momento”, escreveu o historiador Timothy Snyder. Sem se resignar a certa nostalgia por outras épocas e sem se deixar dominar pela ilusão de que no tempo cronológico existe lugar para a repetição – o tempo não é retilíneo, e a história é ingovernável. O presente costuma ser o desencadeador eficaz desse impulso de se dirigir ao passado para compreender a nós mesmos. E retornar, em seguida, aos nossos assuntos contemporâneos com as classes de perguntas que precisam ser feitas, além do lastro de uma nova e decisiva compreensão acerca de problemas muito antigos.
É fácil entender as razões que levam governantes com vocação para autocratas a fraudar a história como técnica essencial de poder destinada a produzir uma realidade fictícia. A partir de 2018, o bolsonarismo – a linguagem ideológica de Bolsonaro – forneceu a uma fatia considerável da sociedade brasileira o sistema de explicação da realidade, organizou uma visão de mundo, disparou o chamado da mobilização. Também entendeu que certo passado bem falsificado e alinhavado ideologicamente poderia ser uma forte motivação política, mais poderosa até que uma guinada de futuro. O futuro está por nascer, é inexistente. O passado reescrito é irrefutável. Evidentemente, esse jogo retórico depende de falsificação histórica – ninguém restaura o passado, ainda menos aquele que nunca existiu. Mas o esforço sistemático de corromper a veracidade dos acontecimentos torna possível modelar certo passado e fazer dele o cartão-postal de uma visão de mundo reacionária.
Aliás, é pela reescrita fraudulenta da história, que o mecanismo de funcionamento de uma utopia regressiva pôde ser construído pelo bolsonarismo e assimilado pela massa de seguidores. O presente e o futuro são definidos em função do que se supõe ter sido. É pura negatividade, mas se materializa numa formulação utópica: o que já foi e deve ser, pode vir a ser. Portanto, é preciso partir rumo ao Brasil do passado, estrategicamente ancorado na idealização da ditadura militar. Uma utopia regressiva é uma espécie de assombração ideológica – uma mitificação histórica reacionária. O presente imediato é o tempo do desfazimento: tempo de decadência religiosa, corrupção em matéria de política, degradação no plano dos costumes, perda de privilégios, frustração de expectativas, insegurança social. Contém, a cada dia, muito ressentimento, mais passado e menos futuro. As manifestações do imaginário político que animam o espírito utópico são regressivas porque o lugar de sua realização já teria ocorrido. A esperança está posta para a sociedade, só que virada ao avesso. Agarrada ao passado, ela secreta as imagens do que seria uma espécie degenerada de utopia: não mais o melhor estado de uma República, como imaginou Thomas Morus; revela a Tirania, o reverso da República.
A história tem uma função estratégica para a democracia. Ela define um referencial concreto e rigoroso para averiguação dos acontecimentos que se relatam, indica qual a relevância das evidências que tornam verificável um evento ocorrido no passado, deixa claro que fato histórico não é invenção. Nas operações de método da história cabem diversas modalidades reconstitutivas do passado que são fabricadas a partir de um artesanato próprio: interpretações, argumentos, hipóteses. Se os fatos forem manipulados e a confiança na sua veracidade histórica for eliminada, as pessoas acreditam no que querem ouvir ou naquilo que lhes parece ser mais conveniente em determinada circunstância; tudo se resume a uma questão de opinião e à melhor versão em curso. As consequências são imediatas para o funcionamento da democracia: quando as linhas divisórias entre verdade e fraude ficam indistintas, deixa de existir uma base factual para se questionar o poder.
A mentira permite reescrever a história e a democracia pode cair por corrosão porque ninguém mais sabe ao certo quais são os limites – ela é livre de fidelidade em relação a todo o conteúdo apresentado. Não há contas a prestar, não existe contraditório ou a necessidade de debater posições divergentes. O historiador é um perigo para as tiranias, argumentava a pensadora política Hannah Arendt, porque seu trabalho se sustenta em uma única modalidade de verdade – a verdade factual. Significa fazer a ostentação pública de fatos que não podem ser modificados pela vontade de quem ocupa o poder, nem podem ser demovidos a não ser por força de mentiras cabais; por essa razão, seu contrário não é o erro, nem a ilusão, nem a opinião, e sim a falsidade deliberada, a mentira. Arendt explicava que eliminar a verdade factual faculta ao governante dar um passo no sentido do totalitarismo. A produção da verdade passa a ser função exclusiva do Estado – e aquilo que esclarece acontecimentos sociais, econômicos ou políticos está sempre oculto. Só pode ser revelado pelo líder, o único capaz de desvendar os segredos do poder e expô-los ao povo.
Os brasileiros sabem hoje como morre a democracia. Nos últimos anos, descobrimos chocados que a democracia nunca está garantida de uma vez por todas – se suas defesas forem baixadas, o caminho estará desimpedido para o retorno às formas políticas da tirania. E o futuro também depende das perguntas que se pode fazer à história. Conhecer onde estão fincadas em nosso passado as raízes da liberdade e da democracia é parte de um legado; atua contra a solidão e a indiferença e esboça para o presente algumas das maneiras como renasce a democracia. Vai dar trabalho, decerto. Mas é o começo de uma grande oportunidade. Então, é necessário agir. Afinal, nenhum de nós sabe por quanto tempo uma sociedade consegue sobreviver sem futuro.