Os comentários sobre os bastidores da criação literária apresentam, em geral, duas fontes de origem principais: de um lado, ficcionistas que decidem relatar o processo de produção de suas obras (Filosofia da composição, de Edgar Allan Poe, é um bom exemplo, ou o Pós-escrito a O nome da rosa, de Umberto Eco); de outro lado, críticos que se debruçam de tal forma sobre certas obras que conseguem dissecar seus mínimos componentes (como faz Roland Barthes com Balzac em S/Z, ou Erich Auerbach em Dante como poeta do mundo terreno).
Independente de onde venham, trabalhos assim são sempre muito sedutores para os leitores que têm interesse na “cozinha da ficção”, aquela dimensão turva, opaca, onde reina o esboço, a incerteza, a multiplicidade de possibilidades. O exercício de explicação muitas vezes está aparentado com as ideias de “iluminação”, de abertura das “portas da percepção”. Trata-se, de certa forma, de um ponto suspenso no tempo (o evento criativo) que pode ser revisitado – pela imaginação – a partir de um gesto anacrônico: se a pessoa responsável pela ficção pudesse voltar no tempo, congelando o momento da escritura, como explicaria tais e tais movimentos? Como explicaria tais e tais palavras, mortes, decisões, lacunas, encruzilhadas?
Três livros dessa natureza foram lançados recentemente no Brasil: As margens e o ditado, de Elena Ferrante (Editora Intrínseca; tradução de Marcello Lino), O sentido de um fim, de Frank Kermode (Editora Todavia; tradução de Renato Prelorentzou), e Eros, o doce-amargo, de Anne Carson (Bazar do Tempo; tradução de Julia Raiz). Ferrante é uma romancista que, neste livro, fala das próprias obras e da “lógica interna” que percebe na passagem de um título a outro; Kermode, morto em 2010 aos 90 anos, foi um dos maiores críticos literários da segunda metade do século XX; Carson, por sua vez, atua nos dois campos, na criação e na crítica, mas transforma esse duplo pertencimento em matéria de ficção, de invenção e de comentário.
O leitor brasileiro já conhece Carson de livros como Falas curtas e Autobiografia do vermelho, exemplares da estratégia da autora de mescla dos gêneros e discursos. Eros, o doce-amargo é um livro de análise literária sobre a poesia de Safo, sobre o grego antigo e sobre as relações entre filologia, poesia e filosofia, entre outros campos. Contudo, é também – e sobretudo – um livro sobre as estruturas profundas da poesia, sobre a colocação de certas palavras muito específicas em posições-chave dentro de uma frase, visando o melhor efeito estético possível. “Há um dilema dentro de eros que tem sido considerado crucial por pensadores desde Safo até hoje”,[nota1] escreve Carson, mostrando que sua leitura diz respeito simultaneamente ao passado e ao presente.
Kermode identifica uma questão de fundo que, segundo sua hipótese, organiza boa parte dos textos ocidentais: o problema do fim, do encerramento, da dissolução e da destruição (algo que soa atual em tempos de “Antropoceno”, embora o livro tenha sido publicado em 1965). “Os livros que continuam a nos interessar avançam pelo tempo até um fim, um fim que devemos sentir mesmo que não possamos conhecer”, escreve Kermode, deslizando por textos diversos, passando pelos poemas de Wallace Stevens, os contos de Franz Kafka e as peças de Samuel Beckett. No caso deste último, Kermode identifica uma profunda descrença em todos os símbolos do porvir, da redenção e da esperança; esses dispositivos de consolo, todos “signos da ordem”, são, para Beckett, indignos de confiança, como “cheques sem fundo”.
O livro de Ferrante contém quatro textos, originalmente apresentações orais da autora em eventos na Itália. Ela entra em detalhes sobre certas escolhas feitas em seus primeiros romances, Um amor incômodo (1992), Dias de abandono (2002) e A filha perdida (2006), informando que seu norte – a preocupação com a forma – vem justamente de Beckett: “até Beckett”, escreve Ferrante, “dizia que a única coisa da qual não podemos prescindir, na literatura e em qualquer outro âmbito, é a forma”, razão pela qual ela se alinha “à tendência de usar estruturas tradicionalmente robustas, trabalhando-as com cuidado”. Essa é uma dinâmica recorrente na cozinha da ficção de Ferrante: ela apresenta certos detalhes de textos alheios que a levaram em certas direções dentro de seus próprios textos, às vezes de forma acidental, às vezes por meio de uma depuração que dura anos.
Depois de apontar, a partir de Beckett, a importância dessas “estruturas robustas”, Ferrante descreve como as utilizou nos seus três romances iniciais. Um amor incômodo se move dentro das “regras fixas” de uma pequena “história policial” (a morte da mãe da protagonista é o disparador); Dias de abandono acompanha Olga, “mulher culta, esposa e mãe”, dentro das regras fixas “de uma pequena história de crise conjugal”, dentro do gênero “cenas de um casamento” (Mario, o marido, sai de casa de forma inesperada); A filha perdida, por fim, é um romance restringido pelas regras fixas “de uma pequena história de terror”, até que tudo, inclusive “o próprio gênero”, começa a se “desagregar”. Ferrante especifica ainda que a voz não se altera; trata-se de “uma primeira pessoa feminina que é pura escrita”, comum aos três livros. O que muda – de forma deliberada, estudada – é aquilo que é escolhido no “armazém da expressão literária”: gêneros diferentes, técnicas diferentes, efeitos, “sem estabelecer fronteira entre alto e baixo”.
Essa convivência entre alto e baixo é o que Kermode distingue como um dos elementos centrais do Ulysses, de James Joyce. Criticado por Wyndham Lewis por se ocupar da “barafunda”, das “desordens da percepção comum”, Joyce coloca em ação seu ouvido absoluto visando a exploração de uma estrutura robusta: “um Dia”, como escreve Kermode, com sua forma imutável de 24 horas em sucessão. A espinha dorsal do Ulysses é sua preocupação com um fim que é, ao mesmo tempo, recomeço; Joyce “estuda e desenvolve a tensão entre paradigma e realidade”, escreve Kermode, e para o crítico a ideia de “paradigma” é a ideia de um “vácuo irreal e atemporal”, sem conexão com o cotidiano. Como o dia “está cheio de aleatoriedade”, haverá sempre a resistência da “liberdade e do imprevisível do gesto humano ante o enredo”. Essa contradição inerente ao romance – a tensão entre regra fixa e aleatoriedade – é como uma fissão nuclear que gera energia hermenêutica de forma infinita, tornando Ulysses disponível e enigmático para as gerações vindouras (mais uma figura do futuro, do inesgotável, mais um sentido para “o fim”).
Pouco antes, Kermode comenta outro momento-chave da literatura que envolve o confronto entre alto e baixo: a cena das três bruxas em Macbeth, de Shakespeare. Esse momento é decisivo para a argumentação de Kermode porque as bruxas “fundem passado, presente e futuro”; elas são fantasias “que podem assumir forma objetiva”; com elas, o “alívio da sucessão do tempo” é suspenso. Depois de identificar essa sobreposição dos três tempos nas vozes das bruxas, Kermode aponta uma reiteração desse motivo em uma fala de Lady Macbeth. Ela estimula o marido a dar prosseguimento aos seus planos assassinos “em uma fala que traz os tempos verbais passado, presente e futuro para convergir na mesma junção”. É no discurso de Lady Macbeth que se cristaliza essa abstração da fusão dos três tempos: “Estava bêbada a esperança?”, “Temes ser o mesmo nos atos e no desejo?”, “Deixarás o ‘não me atrevo’ sobrevir ao ‘faria’?”.
Não seria o verbo o mecanismo da ficção por excelência, uma vez que coloca tudo em movimento? Boa parte da argumentação de Anne Carson segue esse percurso de atenção às funções de certos termos e suas idiossincrasias – começando pelo “doce-amargo”, bittersweet, sua tradução do glukupikron de Safo (“amor e ódio constroem entre si a maquinaria do contato humano”). Em determinado momento, Carson chama a atenção para um verso no qual uma maçã está suspensa na árvore; o verbo para a “suspensão” é epeteto, que vem de petomai, o verbo “voar”. Geralmente é usado “para criaturas com asas ou para emoções que atravessam o coração”, ligado à “emoção erótica”, usado por Safo no fragmento 31 para dizer que eros “dá asas ao meu coração” ou “faz meu coração voar”. No trecho analisado por Carson – do romancista Longo, autor de Dáfnis e Cloé, do século II d.C. –, o verbo está no imperfeito, ou seja, “paralisa a ação do verbo no tempo”, já que o imperfeito expressa continuidade, “para que, como a flecha no paradoxo de Zenão, a maçã voe enquanto permanece parada”.
A análise de Carson é impressionante não apenas por aquilo que diz sobre um trecho, um autor, um momento do texto (como faz com o Fedro de Platão, ou com Os amantes de Aquiles, de Sófocles); é digna de nota também porque reitera o procedimento que sustenta o livro como um todo: buscar momentos de indefinição e ambivalência cristalizados na língua, nos significantes, na cadência poética de textos arcaicos, uma vez que o cerne da literatura é precisamente sua polissemia (“Da mesma forma que todos os paradoxos são, em certa medida, paradoxos sobre o paradoxo, todo eros é, até certo ponto, desejo pelo desejo”, resume Carson).
Essa dimensão do paradoxo remete a uma ideia de literatura que não está fundada sobre posições fixas, mas sobre a manipulação criativa da dúvida, da instabilidade. Um arco que vai de Safo a Ferrante, especialmente quando ela escreve, no primeiro ensaio da coletânea, intitulado A caneta e a pena, que “o romance de amor começa a me satisfazer quando se transforma em romance de desamor”, ou ainda: “O romance de formação me parece estar no caminho certo quando fica claro que ninguém vai se formar” (é possível notar ecos daquela “aleatoriedade” que Kermode identifica em James Joyce). No que diz respeito à escrita, o planejamento é sempre bem-vindo, desde que calibrado por uma sutil abertura ao imponderável – aquilo que nem sempre se pode explicar, mas que se reconhece pelo sabor inconfundível.
[nota1] A palavra grega para amor e desejo, eros (de onde vem nossa palavra erótico, por exemplo), tem uma complexa história de ambiguidades.