Augusto Monterroso arte.sobre.foto.de.Paulina.Lavista maio.23

 

 

Em meio à sua biografia de Descartes, o crítico literário Adrien Baillet conta-nos que um dos primeiros escritos do filósofo teria sido um suposto tratado sobre a arte da esgrima, atividade física – e pragmática para seu tempo – na qual o pensador seria muito versado. Esse tratado está perdido e, por essa razão, não temos acesso às importantes considerações que teceu Descartes sobre a arte da esgrima. Contudo, poderíamos imaginar que esse tratado foi trazido por um colega jesuíta de Descartes dos tempos de colégio em sua missão para a América Latina. Então poderíamos conjecturar como esse texto, de pouca importância filosófica na Europa, teria deixado uma forte marca em certos círculos iniciados em um culto que lia naquelas descrições de movimentos de esgrima um manual revolucionário anticolonial que, em verdade, serviria para sabotar, por seu próprio conteúdo colonizador, toda forma de movimento efetivamente revolucionário.

Se nossas imaginações não trilham espontaneamente esses caminhos, Augusto Monterroso pode ser o escritor que preenche essas lacunas em nossa mente, de tal modo que as cabeças encolhidas – chamadas tsantsas – por certos povos ameríndios rapidamente se tornam commodities de luxo em um mercado aquecido pela especulação fetichista impulsionada pelo empreendedorismo de um gringo que logo se torna alvo de sua própria ganância, ou então os papéis faltantes da “sinfonia perdida” de Schubert são encontrados por um velhinho organista na Guatemala que rapidamente se dá conta que aquele encerramento mítico, embora possa trazer uma grande fama para seu país, não produzirá nenhuma vantagem para o trabalho do compositor austríaco, devendo então ser descartados. Esses temas mirabolantes são costurados de tal maneira que a realidade de suas narrativas parece tão verídica quanto a interposição de seus opostos, ou seja, os contos de Monterroso são tão verdadeiros quanto as ficções que os compõem, deixando-os suspensos em uma constante fragmentariedade que intensifica seus efeitos através de uma certa dubiedade. Não estamos aqui no âmbito do fantástico e do real, em uma simplificação comumente atribuída à literatura latino-americana, mas estamos entre dois reinos que são, eles mesmos, simultaneamente reais e fantásticos, imaginários e concretos, críveis e dubitáveis.

Augusto Monterroso foi um autor de certa forma dividido. Em seu escrito autobiográfico, Os buscadores de ouro (1993), aborda uma inconveniência geográfica que o marcou desde seu nascimento. Muito embora afirme: “sou, me sinto e sempre fui guatemalteco”, também é forçado a reconhecer que seu nascimento “ocorreu em Tegucigalpa, a capital de Honduras, em 21 de dezembro de 1921”. Seu pai era guatemalteco, sua mãe hondurenha. Crescendo em um trânsito contínuo entre os dois países, Monterroso pode escolher sua nacionalidade ao atingir certa idade em função de um acordo político entre os países da América Central, e o faz em favor da Guatemala. Transitar por imagens, memórias e culturas parece ser uma questão contínua em sua obra e em sua formação. Uma formação latino-americana que possui, ao mesmo tempo, as estruturas formais das influências ibéricas e as potentes presenças das muitas culturas ameríndias, sendo essa mais uma das interposições de diferentes planos na vida e na obra do autor. Ao reformular sua gênese – talvez ficcionalizando-a, ou quem sabe conferindo verdade ao ficcional –, o escritor remonta a um tal “licenciado Gabriel Monterroso, autor de uma popular Prática civil e criminal e instrução para escrivães”, um livro de 1571 no qual seu ancestral apresentaria “instruções precisas e detalhadas sobre a maneira exata de aplicar os mais diversos tormentos aos delinquentes”.

Nessa gênese, que também encontra algum laço com um personagem italiano, com grupos mais ou menos intelectualizados, chegando a dizer-se “neto de um general e de um advogado bem estabelecido”, Monterroso evidencia o que talvez seja um dos pontos fulcrais de sua literatura: quem seriam aqueles delinquentes atormentados pelas instruções de seu antepassado espanhol? Porque ele, instruído em um ambiente leitor que valorizava a intelectualidade europeia, filho de um pai “fundador de revistas e de jornais”, um pai conhecedor de Unamuno, Valle-Inclán, Gógol e Dostoiévski, um pai amigo de escritores, ele, Augusto Monterroso, sabe-se profundamente latino-americano e, portanto, sabe-se como um potencial delinquente perante aquela mesma colonização europeia. Os dois âmbitos sobre os quais oscilava estão presentes em sua própria vida e sua expressão literária refletirá sempre essa condição de um expatriado, posição essencial que levará para seu exílio no México e que, posteriormente, converterá em uma arma narrativa poderosa.

Seria grosseiro, contudo, se assumíssemos a produção literária de Monterroso sob a marca de uma simples expressão política. O elemento político está presente, sem dúvidas, mas é outra a característica marcante de sua obra, formada sobretudo por contos, textos curtos, fragmentos e um romance, uma exceção, composto à maneira de um conjunto de gêneros breves. A fama do autor foi formada com base em sua capacidade de concisão e, sobretudo, por sua habilidade magistral de conjugar gêneros clássicos – contos, fábulas, aforismos, fragmentos – na criação de narrativas humoristicamente carregadas. Sua fama, como não poderia deixar de ser, é dupla, habita dois âmbitos que parecem, à primeira vista, ocuparem um mesmo lugar, mas cujo olhar atento pode vê-las movimentando-se perpetuamente em uma ilusão de ótica artisticamente engendrada. A brevidade, a concisão, por um lado; o humor, a sátira, a ironia, por outro.

Mesmo aqueles que pouco conhecem Monterroso têm como um farol aquele conto intitulado O dinossauro, curto a ponto de ser aqui inteiramente transcrito: “Quando despertou, o dinossauro ainda estava ali”. Alguns leitores mais assíduos podem rememorar o conto A vaca, composto de um único e curto parágrafo, ou então podem trazer à mente algumas das fábulas de poucas páginas, como O macaco que quis ser escritor satírico e O espelho que não podia dormir. O escritor guatemalteco é um exímio fabricador de narrativas breves, isso é evidente, mas essa capacidade só é efetivamente celebrada porque esses contos, fábulas e relatos têm uma potência, na sua brevidade, que explode em mil sentidos, em mil possibilidades e, portanto, revelam o que pode toda narrativa: dizer além do indizível. Ser sucinto pode ser uma arma, satírica, mas também política. Esta pode ser a maneira de dizer que o rei está nu, não tanto pela elaboração de um tratado, ou pela explicação detalhada de razões, mas por fazer com que se desvele todas as hipocrisias e presunções. Bem sabe o frei Bartolomé Arrazola, personagem de O eclipse, conto de duas páginas, que acreditou poder impressionar os ameríndios com seus conhecimentos astronômicos sem saber que aquelas pessoas tinham previsões tão ou mais seguras que aquelas produzidas pelos europeus. O relato é curto, enxuto. Porque, como uma piada, muito é dito sobre a arrogância dos colonizadores em um texto que não participa da arrogância da verborragia autocongratulatória. Monterroso seria um adepto de Wittgenstein, caso suas próprias Investigações filosóficas não fossem apenas uma página em branco.

O humor é essa fuga, essa resistência, empregado não como uma mera evasão, mas como um chamariz que seduz os incautos para aquilo que está sempre escondido nas entrelinhas. O título de seu primeiro livro já deveria nos dar uma dica: publicado em 1959, Obras completas (e outros contos) é uma armadilha, pois as tais Obras completas são apenas o título do último conto da coleção, um relato sóbrio sobre a trajetória de um jovem poeta promissor que vai sendo enfraquecido e domesticado por um certo dono da cena cultural de sua cidade, um escritor frustrado que domestica todo talento para não se ver ameaçado em seu posto. É risível, como também é ridícula a Primeira-dama do conto homônimo, insuflada de vontades culturais e jamais confrontada pela posição que ocupa, uma posição mais trágica que cômica quando lembramos que Senhores Presidentes latino-americanos – como retratou Miguel Ángel Asturias – têm uma larga tradição ditatorial. O humor de Monterroso é irônico, mas sua ironia não é um mero truque, é antes a forma certeira de tratar complexidades com falsas simplicidades para que, então, possamos apanhar as falsas complexidades com simplicidade.

A obra de Monterroso não é vasta. Seu único romance, O resto é silêncio, retrata a vida de um Eduardo Torres, contada por seus amigos e parentes, na primeira parte, e evidenciada por seus parcos escritos na segunda. É um personagem que se pretende erudito, até certo grau, mas que é constantemente trazido à banalidade da vida comum, seja por seus amigos, seja por suas próprias ambições. Os contos se misturam com fábulas e relatos, e esses todos apontam para aqueles textos supostamente inclassificáveis reunidos em Movimento perpétuo (1972) e A letra e: Fragmentos de um diário (1987). O gracejo de Monterroso não deixa de estar em sua escrita assumida como fácil. Rebaixar-se, ironicamente, para que o leitor não se sinta ameaçado. A dica é do próprio guatemalteco, no décimo mandamento do seu Decálogo do escritor: “Trate de dizer as coisas de maneira que o leitor sempre sinta que no fundo é tanto ou mais inteligente que você. De vez em quando, procure que o seja efetivamente; mas para alcançar isso terá que ser mais inteligente que ele”.

Pode estar nesse conselho a arte da escrita de Monterroso, cuja morte completou vinte anos em 7 de fevereiro. Não tanto na brevidade, tão evidente, ou na ironia, vendida a preço de banana em qualquer mercado. Sua maestria parece estar em ser um mestre em estocadas, um esgrimista sagaz que sabe, com um gesto certeiro, acertar o ponto frágil e desprotegido. Talvez tenha sido Augusto Monterroso quem encontrou o escrito perdido de Descartes. Um grande achado para toda literatura, pois agora podemos nos afastar de varetas metálicas para aprendermos como manusear a precisão como um artifício narrativo.