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Uma vez em Portugal, Óbidos é parada obrigatória para os amantes da literatura. Não só pelo cenário digno dos romances históricos da fortaleza erguida em 733 pelos árabes que ocuparam a Península Ibérica, construída sobre antigas fortificações celtas, fenícias, romanas e visigodas, mas também porque a cidadela medieval converteu-se nos últimos anos numa vila literária, abrigando livrarias, festivais e outras atrações à volta da literatura.

Literalmente, e literariamente, uma muralha feita de livros.

Reconhecida pela Unesco como Cidade Literária em 2015, a vila com pouco mais de 14 hectares de área na região Oeste de Portugal, a 85 quilômetros de Lisboa, abriga três livrarias e anualmente recebe dois festivais de literatura, o Latitudes, dedicado à literatura de viagem, e o Folio, o Festival Internacional Literário de Óbidos, palco de best sellers e prêmios Nobel.

Óbidos também abre suas portas para acolher escritores numa residência literária e promove um concurso dedicado a novos talentos de Moçambique, o Prêmio Fernando Leite Couto, batizado em homenagem ao pai do escritor moçambicano Mia Couto, que uma vez por ano pode ser visto a caminhar tranquilamente pelas ruelas da vila medieval, enquanto espera pela cerimônia de premiação dos futuros autores.

Como se não bastasse, fora da vila, mas só a alguns passos da imensa muralha, fica o The Literary Man, um hotel com praticamente todas as paredes, incluindo as dos quartos, preenchidas por obras de edições em vários idiomas, à disposição dos hóspedes ou dos visitantes que passam por lá apenas para apreciar um café e uma selfie na impressionante decoração.

Uma experiência de turismo literário a apenas uma hora da capital portuguesa, com transporte regular e diário de ônibus, partindo da estação de metrô de Campo Grande. Uma viagem marcante a uma testemunha de pedra do poder da crença de pagãos e da fé de muçulmanos e cristãos, agora rendida a uma religião que reúne ainda mais fiéis pelo mundo, a literatura.

O nome da vila por si só tem lá seu quê literário. Óbidos deriva do latim opidos, a forma pela qual o imperador Júlio César designava as fortificações na Gália, como a defendida por Asterix e Obelix nos quadrinhos de Albert Uderzo e René Goscinny. A partir de então, os romanos passaram a chamar opidos as cidades muradas na Europa, muitas subjugadas e anexadas ao império, assim como Óbidos, então parte da Lusitânia Romana.

Para cruzar as muralhas da vila medieval hoje, porém, não é preciso uma legião romana. O portão principal, sob a torre de observação da fortaleza, cuja parede é adornada por um belíssimo mural de azulejos, está sempre aberto e convida a uma viagem no tempo. Antes de entrar, porém, vale a visita a primeira das três livrarias da cidade literária, a Artes e Letras.

A livraria fica num acolhedor complexo que inclui cafés e restaurantes, à sombra dos belíssimos arcos do aqueduto romano, vizinho à modesta estação rodoviária. Erguida numa antiga adega de vinhos, pertence a Luís um alfarrabista (como os portugueses chamam os “sebos”) lisboeta que, cansado da agitação da capital, mudou-se com o seu acervo de livros antigos e raros para a fortaleza.

Aproveite para folhear as raridades e trocar conversar com Luís e a sua esposa, Inês, uma artista gráfica cujos belíssimos trabalhos estão expostos na livraria. Se tiver sorte e paciência, quem sabe não será convidado a visitar a tipografia dela, a poucos metros dali, onde trabalha em prensas manuais, como faziam os primeiros tipógrafos de Óbidos.

Retomado o passeio, logo após cruzar o portão de entrada, a rua Direita apresenta-se como uma típica viela medieval. Resista à tentação de parar nas pastelarias para um pastel de nata ou um shot de ginja, o licor local, de sabor doce e de alto teor alcóolico, servido em pequenas taças de chocolate. É difícil, mas a literatura exige os seus sacrifícios.

Pois, a cem passos da entrada da vila, do lado direito, encontra-se a Livraria do Mercado. Como o nome remete, um espaço onde os livros dividem espaço com o mercado orgânico local, a sugestão de que o livro é também alimento. Passe o tempo a folhear os livros de segunda mão e os lançamentos nas estantes improvisadas em caixas de verduras e legumes.

Novamente, arrisque uma conversa com os simpáticos vendedores - em Portugal chamados de “livreiros”-, alguns deles a viverem na antiga fortaleza, habitada por cerca de meia centena moradores. Aproveite para saber se é ou não verdade o mito sobre quem se arrisca a viver em Óbidos ser atormentado por delírios provocados pelo misterioso “Efeito Muralha”.

O passeio segue pela movimentada rua Direita. Deixe para entrar nas lojas de artesanatos locais (e medievais) e souvenirs na volta, para manter as mãos sempre livres para os livros.

Antes de chegar à terceira livraria da vila, contemple o largo diante do antigo pelouro, onde durante duas semanas de outubro é erguido o pavilhão do festival literário Folio, um dos mais importantes de Portugal e, certamente, o mais charmoso. Por lá já passaram nomes de peso da literatura como o de Salman Rushdie, além de alguns prêmios Nobel, como o britânico V.S. Naipaul, a polonesa Olga Tokarczuk e o nigeriano Wole Soyinka.

A rua Direita termina ao pé do castelo, vizinho à igreja de São Tiago, que hoje abriga a Livraria de Santiago. Novamente, um espaço que alça a literatura a outro patamar, desta vez o de um objeto de culto. Percorra os corredores em forma de labirinto, sem esquecer de agradecer em suas preces por existirem sempre bons livros a serem lidos.

Na teoria, Óbidos pode ser visitada em um dia, mas na prática merece uma pernoite para se percorrer os encantos off literatura, como contornar as muralhas que cercam a cidadela ou aproveitar a gastronomia local, que conta com o restaurante de um pernambucano ilustre, o autor de várias novelas Aguinaldo Silva, que deu o nome de O Comendador ao local, em homenagem ao emblemático personagem da novela Império, de 2015.

Se decidir por ficar, a sugestão é justamente o The Literary Man, com suas centenas de milhares de livros forrando as paredes do lobby, restaurante, corredores e quartos. A hospedagem perfeita para uma noite de sonhos ao turista em viagem, mas que não tira nunca férias dos livros.