Ilustração de Janio Santos

 

Sugiro ao editor do Pernambuco um ensaio sobre a forma como fator determinante ao conteúdo de alguns livros, como Ribamar, de José Castello, e Desmundo, de Ana Miranda. Ele gosta da ideia, e pergunta: “Você acha que rende dez mil caracteres com espaço?”. Ri. Todo jornalista está acostumado a condicionar seu texto a um espaço pré ou pós-determinado. Mesmo a contragosto, a meta em número de linhas ou centímetros por coluna é um fato inescapável e pode até trazer certo conforto — sabe-se exatamente em que medida as palavras devem ser domadas para que tragam o máximo de informação possível dentro da moldura diagramada. Quase sempre, no entanto, é preciso lidar com a angústia do espaço insuficiente. Ou pior, o trauma de cortes bruscos.

 

Para jornalistas, não há muito a fazer a não ser se conformar com essa sina — a minha tem, agora, a medida exata de dez mil caracteres. O que provocou o riso foi lembrar-me da minha própria surpresa ao descobrir, durante as conferências do Festival da Mantiqueira, que autores de romances de ficção, em tese libertos do problema do espaço restrito, pudessem eles próprios estabelecer fronteiras físicas ao seu trabalho. Muitos vêm do jornalismo, ou dialogam com a profissão, como é o caso de Miranda e Castello. O que os levaria, então, a escolher a limitação de espaço?

 

José Castello levou ao extremo a interferência da forma em seu livro Ribamar, vencedor do Prêmio Jabuti de 2011. O dolorido romance acompanha a busca de um homem que tenta entender as bases de sua relação distante com o próprio pai, já morto. Esta busca leva o personagem-narrador a relembrar episódios de sua infância e a viajar para a cidade de origem do pai. A tentativa de aproximação tardia com a pessoa que, em vida, nunca conheceu de verdade, também envolve a obsessão do personagem pelo livro Carta ao pai, de Franz Kafka, que serve como gatilho à história.

 

Ribamar é o nome do pai de José Castello. Não é de se admirar que o romance seja altamente inspirado na experiência pessoal do escritor, na maior parte do tempo de maneira subjetiva mas, às vezes, de maneira muito direta. É o que acontece, por exemplo, com o episódio relacionado ao livro de Kafka.

 

Castello presenteou Ribamar com uma edição de Carta ao pai no Dia dos Pais de 1976; escreveu uma dedicatória curta na folha de rosto, assinando apenas José. Quase trinta anos depois, numa enorme coincidência, o amigo e também escritor Rubens Figueiredo liga para Castello de um sebo. Tinha nas mãos justamente aquele livro e, folheando-o, reconheceu na hora a caligrafia do colega. Assim, três décadas depois, voltou para o escritor a Carta ao pai que havia dado de presente a Ribamar na esperança de que Kafka expressasse o que não tinha coragem de dizer. A partir do episódio, Castello decidiu que seria a hora de escrever sua própria missiva.

 

O livro consumiu o escritor até quase enlouquecê-lo. Enquanto tomava notas e rascunhava o que um dia seria o romance Ribamar, Castello seguia simultaneamente em várias direções. O futuro livro crescia sem controle até que um acontecimento singelo levou-o a encontrar um norte para terminá-lo. Um dia, sentado ao lado de sua mãe, Castello ouvi-a cantarolar uma canção de ninar. Ela sofria de Mal de Alzheimer e o fato de que pudesse se lembrar de uma música inteira chamou a atenção do escritor. “Esta era a música que seu pai cantava para você dormir; que o pai do seu pai cantava para ele também”, disse a mãe. Uma canção de ninar que ligava todos os homens da família. Com a ajuda do irmão, Castello pôs a música numa partitura. E decidiu que aquela seria também a partitura de seu romance.

 

Para isso, o escritor atribuiu um tema a cada nota padrão da escala musical– “Infância” para o Fá; “Família” para o Ré; “Angústia” para o Lá, e assim por diante – além de um tamanho de texto determinado para corresponder ao tempo de duração de cada nota: seis mil toques para as notas de dois tempos, três mil toques para as notas de um tempo, e mil e quinhentos para as notas de meio tempo. Assim, um capítulo que corresponda a uma nota Sol de dois tempos falará da cidade de Parnaíba e terá seis mil toques; uma nota Mi de meio tempo terá Kafka como tema central e se resolverá em mil e quinhentos toques. São 98 capítulos no total, correspondendo exatamente à sucessão das 98 notas da canção. A partitura está na capa do livro e sua relação com a construção do livro também é referenciada no texto.

 

Castello jogou muita coisa fora para fazer com que o romance coubesse nessa partitura. Um capítulo que originalmente tinha mais de 10 mil toques se viu reduzido a apenas mil e quinhentos – praticamente uma autoflagelação. A fórmula da partitura é na verdade extremamente aleatória – por que cada tempo tem três mil caracteres e não quatro ou cinco mil? Por que “Parnaíba” para o Sol, e não outro tema?

 

O escritor atribuiu a algo externo ao texto o poder de guiá-lo. É como se tivesse criado um problema pragmático — e por isso, solúvel — para resolver outro, subjetivo e quase impossível de confrontar: quando seria a hora de parar de escrever um livro como esse, tão pessoal? Mesmo tendo de enfrentar os cortes traumáticos, o escritor encontrou nesse sistema rígido e autoimposto uma saída para um dilema maior, traduzido na necessidade de, em algum ponto, dar fim ao percurso, concluir o romance e assim terminar a travessia do personagem-narrador que, em muitos aspectos, era também a sua. “Depois de Ribamar, eu não posso mais voltar a escrever do jeito que eu escrevia”, afirma.

 

Gestalt

Ana Miranda exerceu a autoimposição de fronteiras ao tamanho do texto em alguns de seus livros, entre eles Desmundo, de 1996. Cada capítulo deste romance tem no máximo, e rigorosamente, uma página. Durante a preparação do livro para impressão, a escritora – como Castello – teve até que cortar pedaços do texto original para manter-se fiel à proposta.

 

Neste caso, o limite tinha uma explicação: Ana queria que o livro replicasse o feitio dos relatos dos colonizadores do século 16 sobre suas experiências no Brasil ainda selvagem. Eram cartas simples, de uma só folha em texto corrido, em frases longas e fluídas. Foi esta a forma que ela tomou emprestada para abordar os sentimentos de sete órfãs trazidas de Portugal para fazer companhia aos homens que desbravavam as terras desconhecidas do além-mar, para procriar crianças brancas e assim afastá-los do pecado que era buscar satisfação com as índias.

 

Desmundo, portanto, poderia ser visto como uma sucessão de cartas escritas pela personagem Oribela sobre sua vivência no Brasil recém-nascido, começando pela euforia de pisar em terra firme depois da travessia do Atlântico, superada muito rapidamente pelo medo apavorante de casar por sobrevivência com um desconhecido. O diário dessa personagem em desespero se equivale em forma aos relatos que os administradores e religiosos da colônia então mandavam para Portugal – os destes, sobre um mundo externo ainda em intensa exploração, o de Oribela, sem outro destinatário que não ela própria, sobre a descoberta de seus sentimentos e medos.

 

O limite de uma página por capítulo em Desmundo tinha então um sentido pragmático baseado nas fontes históricas que inspiraram o texto. Não há nenhuma explicação sobre isso no livro e a questão provavelmente passa despercebida para a maior parte dos leitores. Mas a escritora adotou o mesmo padrão no seu livro seguinte Amrik, sobre a imigração libanesa para a São Paulo dos fins do século 19. Dessa vez, diz ela própria, sem nenhuma razão temática, histórica ou pragmática que justificasse o enclausuramento dos capítulos a apenas uma página.

 

Em Deus-dará, de 2003, a motivação para a forma vinha de um fato externo: sendo um livro de crônicas originalmente publicadas na revista Caros Amigos, os textos reproduziam naturalmente o espaço determinado para coluna mensal da escritora. Mas Noturnos (1999), seu primeiro livro de contos, tem textos misteriosamente compostos no mesmo tamanho, quase que exatamente com o mesmo número de linhas.

 

Com ou sem motivação subjacente, estes livros, em especial Desmundo e Amrik, lançam mão de um atributo sobretudo visual, pois apenas existente para o leitor que segura o volume nas mãos e o lê com os próprios olhos. Para quem porventura escutar o texto lido por um terceiro, o formato deixará de existir — sem prejuízo à compreensão. Na palestra Escrever para ler e para ver (que bem poderia ser um conto, mas ainda não publicado como tal), Ana se imagina cega e lembra o infortúnio de Jorge Luiz Borges que, vivendo a um só tempo entre “os livros e a escuridão”, não deixou de criar. Borges escrevia para pensar no mundo, não para vê-lo, nem como resultado do que (não) enxergava.

 

Se para o argentino a forma visual era irrelevante, não o era para o poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto, para quem escrever era, além de um exercício intelectual, o ato físico de deitar a palavra sobre papel. João Cabral também foi acometido pela cegueira nos últimos anos de sua vida mas, diferente de Borges, deixou de criar quando não podia mais enxergar. Dizia que sentia muito mais falta de ler do que de continuar escrevendo, mas nunca suportou que outros lessem para ele. Para João Cabral, cuja aversão pela música era antológica e foi, paradoxalmente, registrada em canção, o som não significava nada.

 

Ana Miranda não é tão radical e imagina que seguiria lendo e escrevendo mesmo que perdesse a visão, como Borges. Continuaria enxergando com a imaginação, vendo o mundo de outro modo, a partir dos seus devaneios. Escreveria talvez de maneira inteiramente nova, sem que seu processo de criação precisasse passar pelo manuseio direto dos símbolos visuais e tão abstratos que são as letras.

 

Esse pensamento condiz com o proclamado amor da escritora pela liberdade completa. Curioso para quem diz, ao mesmo tempo, ter uma preocupação gestálticacom a forma. Ao estabelecer limites formais ao seu próprio texto, no entanto, ela parece fazê-lo simplesmente porque é livre para tal.