CapaLuisa Vasconcelos set19.1

 

A presença de cenas de violência é constante em diversos gêneros cinematográficos. Elas podem ser encontradas em filmes de ação, aventura, faroeste, horror, crimes e guerras, entre outros. Existem convenções que são reiteradas constantemente, de modo a corresponder a expectativas de segmentos de público. Por exemplo, em filmes de faroeste, são comuns cenas de tiroteio, brigas em bares ou duelos. Em diversos filmes de ação, heróis atiram em seus inimigos. Algumas empresas dedicadas a produzir entretenimento associam diretamente a expectativa de lucro à inserção de cenas violentas. Essas empresas contam com as reações de prazer, vindas do público, diante de reiterações de imagens do ato de matar.

Essa situação não é casual, nem incomum. De acordo com o pesquisador J. David Slocum, a violência fílmica acompanhou os passos da institucionalização da indústria cinematográfica. Cenas de tiros ou de lutas corporais foram consideradas fatores de motivação para o consumo. Às vezes, em um filme trivial de ação, com estrutura narrativa convencional, pode ser fácil para o espectador atribuir sentido para a violência. Por exemplo, ela pode aparecer com uma função libertária, ordenadora, ou ela pode representar uma causa de insegurança ou medo. Nesse caso, confiando no que vê na tela, o espectador pode acreditar que a violência não consiste em um fenômeno inquietante ou casual, mas ao contrário, em uma prática dotada de sentido. Em contextos sociais caracterizados por tensão, diante de uma realidade violenta difícil de compreender, o público cinematográfico buscou imagens nítidas de destruição. Em filmes triviais, os finais das narrativas, frequentemente, apresentam formas de harmonia, com um mundo reconstruído ou uma vida redefinida. Isso pode assumir uma função compensatória; para um espectador que se angustia por não conseguir lidar com a violência real, assistir a filmes pode trazer o conforto da ilusão de que (pelo menos na sala de cinema) a violência pode ser controlada e acabar. Em algumas das produções estreladas por Sylvester Stallone, Jason Statham ou Bruce Willis, por exemplo, um enquadramento moral pode estabelecer uma diferenciação entre violência legítima e ilegítima. Se um personagem mata por ganância ou terrorismo, ele pode ser visto como vilão; se outro personagem mata para libertar uma criança raptada ou evitar uma catástrofe, ele pode ser visto como herói.

Após décadas de investimentos, por parte da indústria cultural, em imagens de violência, o surgimento da internet constituiu uma escala sem precedentes de circulação de manifestações verbais e visuais, tornando a exposição a imagens de violência um fato corriqueiro. Na atualidade, convergem para o favorecimento dessa exposição, entre outros fatores: a facilidade com que crianças pequenas jogam video games nos quais o ponto de vista do jogador é o de um matador; o sucesso de programas de televisão sensacionalistas que mostram imagens de vítimas de violência e cenas de crimes; a proliferação, em televisão aberta e fechada, de espetáculos de lutas que deliberadamente manejam imagens de sangue e ossos quebrados; a produção em série de narrativas, no cinema e na televisão, centradas na visibilidade de corpos agredidos.

Essa escala de visibilidade da violência provoca questionamentos. Para a sociedade contemporânea, o que o ato de matar significa? Ele resulta de uma perda de consciência, ou faz parte do que socialmente é considerado normal? Na opinião de pessoas à nossa volta, todas as vidas são resguardadas por um direito sagrado, ou algumas vidas importam mais do que outras? É legítimo que alguém mate, descumprindo a lei, se tiver uma razão considerada aceitável? Quando um ser humano mata outro, ele está consciente da sua própria mortalidade? Filmes, músicas, obras de artes plásticas e textos literários, às vezes, podem suscitar o aparecimento dessas questões, ou de outras similares. É importante, mesmo que não seja alcançado um consenso, que perguntas sobre o ato de matar e o significado da morte possam ser formuladas, a cada leitura de Rubem Fonseca, a cada página de Alberto Guzik, diante de cada filme de ação, ou de cada cena de uma tragédia de Shakespeare. São perguntas que aperfeiçoam as capacidades de relacionamento humano, por darem visibilidade a preocupações e dificuldades vivenciadas, às vezes silenciosamente, por quem está próximo.

Cabe perguntar por que representações da violência física (e, mais especificamente, do ato de matar) são absorvidas, consumidas e multiplicadas na escala atual. Existe, para diversos segmentos de público, prazer na contemplação da destruição de corpos, em variadas formas e intensidades. É possível observar, em diversos casos, cruzamentos entre o interesse por violência e o consumo de pornografia. Para além disso, essa dúvida motiva uma reflexão sobre ética. Se vídeos sobre violência podem ser postados diariamente, em redes sociais, isso tem ou não implicações na sociedade? É plausível assumir que as pessoas, em geral, independentemente de idade ou formação, estejam preparadas para reagir a imagens violentas?

Uma preocupação com a ética leva a considerar as diferenças entre as posições de agente e vítima de violência. Em filmes de ação, por exemplo, é comum que tanto o protagonista como o antagonista pratiquem atos violentos. A diferença consiste na razão para praticá-la. O que os distingue é quem eles representam, isto é, em defesa de quais valores seus atos violentos são praticados.

É inteiramente diferente uma situação em que um filme prioriza a atenção a vítimas de violência. Nesses casos, importa, para o público, a apresentação dos efeitos dessa prática. Muito mais do que a ação ou a aventura, o drama é adequado para configurar imagens desses efeitos. A escolha de Sofia, de Alan J. Pakula, e Hiroshima, mon amour, de Alain Resnais, são exemplos de obras dramáticas que conferem visibilidade à danificação da vida pela guerra. O segundo filme traz um roteiro extraordinário, elaborado por uma escritora capaz de confrontar corajosamente temas complexos, Marguerite Duras. Assim como em obras cinematográficas, a violência é um elemento presente em textos literários. Ela pode ser encontrada em variadas épocas, em obras de diferentes idiomas.

A literatura é um campo no qual a tensão entre ética e violência se expressa de variados modos. Entre Shakespeare e Dostoiévski, Primo Levi e Roberto Bolaño, Graciliano Ramos e Guimarães Rosa, são encontradas imagens de efeitos de práticas violentas, que motivam questionamentos. Dentro das variações históricas das relações entre a literatura e o ato de matar, algumas perguntas podem ser importantes. Entre elas, cabe formular uma incerteza primária: por que alguém mata uma pessoa? E a partir desta, outras dúvidas podem ser enumeradas. Que desejo é esse, que torna um ser humano alvo de eliminação? Existe algo específico, na constituição de seres humanos que, por alguma razão, em algum momento, admitiram a ideia de matar outros?

Para formular a primeira pergunta é necessário um ajuste da percepção. O ato de matar teria de deixar de ser observado como um fenômeno comum, e passar a ser percebido como estranho. Seria necessário, após assistir a uma cena de violência em um noticiário, percebê-la como um enigma que resiste à compreensão, e não como parte de uma rotina habitual.

Essas perguntas poderiam ser tratadas como inconvenientes, por diversas razões. No senso comum, circula a premissa de que, se alguém é violento, está desequilibrado, descontrolado ou, numa palavra, louco. Essa premissa supõe que a civilização seria pacífica, e que o ato de matar irromperia como exceção. Nessa perspectiva, se alguém deseja a morte de outro, deve ser removido da vida em sociedade. Uma pessoa violenta, de acordo com essa linha de pensamento, deveria ser presa, ou internada em uma instituição, para que sua violência não atinja os que são considerados civilizados.

Um olhar atento encontra à nossa volta, sem dificuldade, um outro horizonte de produção da violência, que é a prática em acordo com as leis. Se um soldado está em um campo de guerra, sua violência é funcional, servindo a um propósito de Estado. Para essa hipótese de compreensão, é esperado que a violência seja um monopólio do Estado. A legislação deve definir as condições de exercício válido da violência (por segurança nacional ou por proteção da soberania, por exemplo), para fazer cumprir as leis. Nesse horizonte, um representante da lei tem autorização para empregar recursos violentos; a violência então corresponde a um padrão de normalidade, ou mais do que isso, de normatização.

Essas duas maneiras de formular o problema estão diretamente ligadas a convenções da narrativa de ação. Trata-se de distinguir qual violência é legítima, e serve a valores aceitos. Se ela é legítima, como no caso de um soldado em campo de guerra, o ato de matar pode ser reconhecido como heroico. Para aquela que é ilegítima, como no caso de um ato criminoso, a sociedade estabelece regras de punição. Noutras palavras, a sociedade pode distinguir os atos de violência entre válidos e inválidos, e utilizar essa diferença para atribuir significado a esses atos.

Forças históricas se transformam, valores morais se reordenam, de modo que um ato violento que, 50 anos atrás, era considerado legítimo e legal, hoje pode ser considerado um ato criminoso. Com o crescimento, em muitos países, das políticas públicas de defesa de direitos humanos, têm ocorrido profundas mudanças nas maneiras como sociedades lidam com o ato de matar. No caso do Brasil, com uma história marcada por vivências de autoritarismo, movimentos sociais de reivindicação de direitos civis, em diversos casos, contrariam tendências autoritárias que, ao longo da história, defendem exclusão ou aniquilação de grupos. Uma reflexão ética a respeito da reivindicação de direitos pode incluir a afirmação do respeito social pelo valor de cada vida individual.

Se cada vida humana é única e merece ser respeitada, então cada pessoa merece que seja garantido o seu direito a viver. Quando a legislação de um país desequilibra as chances de sobrevivência, através de desigualdade econômica, são estabelecidas diferenças entre grupos sociais. Fatores como o acesso à saúde pública, à educação e aos direitos trabalhistas podem definir, para cada indivíduo, o alcance de suas capacidades de preservação da própria vida. A legislação pode, através de desequilíbrios, permitir ou legitimar que alguns grupos sociais estejam em grau de vulnerabilidade muito maior do que outros. Em termos concretos, esses desequilíbrios levam a definir, por exemplo, quem tem, quando atingido por uma doença grave, cujo tratamento exige medicamentos caros, as condições para que o tratamento tenha êxito. Esse é apenas um exemplo, entre muitos outros possíveis, de uma situação em que a possibilidade de morrer é condicionada por injustiças sociais. Deixar grupos sociais em situações de extrema vulnerabilidade, por doenças, fome ou falta de habitação, significa tornar a probabilidade de morrer, dentro desses grupos, uma responsabilidade da sociedade e do Estado. Por essa linha de reflexão, isso significa que os grupos sociais que têm maiores recursos econômicos determinam a intensidade de níveis de mortalidade entre os menos favorecidos. A sustentação de desigualdade econômica é um fator de ampla mortalidade. Uma reflexão ética apontaria que, se todos os indivíduos merecem que suas vidas sejam respeitadas, a possibilidade de morrer não deveria variar dessa maneira. Nenhum indivíduo deveria ser considerado descartável para a sociedade. E nenhum preconceito deveria ser usado como argumento para exclusão. A possibilidade de construção e consolidação de relações sociais pacíficas, em termos éticos, está diretamente ligada com o respeito às vidas individuais.

CapaLuisa Vasconcelos set19.2

O conto Justiça, de Rubem Fonseca, publicado no livro Histórias curtas, de 2015, tem como protagonista um policial. A obra é polissêmica, e pode despertar interpretações variadas. O texto inclui elementos que são comuns a narrativas sobre crimes – um assassinato, uma cena de crime, uma delegacia, referências a investigações. No entanto, a composição não segue os padrões de ordenação tradicionalmente esperados para esse gênero. Dois aspectos são importantes para compreender a especificidade desse conto. O primeiro consiste no fato de que o policial é, ele próprio, um assassino, que mata à revelia da lei. O segundo aspecto é a perspectiva através da qual o leitor toma conhecimento da estória. O protagonista é também o narrador. Esses dois aspectos condicionam a apresentação dos episódios narrados.

Os três primeiros parágrafos de Justiça expõem opiniões do narrador a respeito do abuso de mulheres por parte de homens. Inicialmente, o texto aborda a figura do “cafetão”, que explora prostitutas. Em seguida, esse tema se estende a situações diversas, incluindo funcionárias de lojas, empregadas domésticas e professoras. No parágrafo posterior, o discurso retoma a figura do cafetão, para caracterizá-lo como sádico. De acordo com o texto, um cafetão tem prazer em assistir ao sofrimento de uma mulher e em praticar o mal.

Ao ler os cinco parágrafos seguintes, o leitor toma conhecimento do ambiente de trabalho e da delegada. Diante da inquietação exposta pelo protagonista a respeito de que criminosos tenham sido absolvidos, a delegada apresenta informações sobre o Código Penal. Nesse trecho, está apresentada a frustração do policial com relação à legislação. Essa frustração fundamenta, como se fosse uma justificativa que o leitor pudesse considerar plausível, o interesse do personagem em matar.

O policial afirma que “as mulheres estão conseguindo posições de mando e de poder” e que considera isso “bom”. Essa opinião está associada ao fato de que ele trabalha em um ambiente coordenado por uma mulher. Enquanto ele não se conforma com absolvições de criminosos, a delegada constitui uma voz que respeita o Código Penal. Nesse conto, o único nome próprio indicado é o da delegada, Mirtes. Em uma leitura apressada, isso poderia deixar a impressão de uma superioridade ou uma autoridade. No entanto, o policial é irônico ao afirmar que Mirtes “não é um bom nome” para essa profissão. Esse comentário expressa uma inquietação, que abre margem para a indiferença e a desobediência. Contrariamente à postura da delegada, que sustenta sua posição no texto da legislação, o protagonista decide agir por iniciativa própria. É relevante que o protagonista e o cafetão não tenham nomes próprios. Nesse aspecto, eles são semelhantes entre si. Ambos fazem parte, ao menos no interior dessa narrativa, de um universo de anônimos.

A violência aparece, explicitamente, na cena em que o policial procura um homem, descrito como “cafetão sádico”, e o encontra na casa dele, com três mulheres. Esse homem pede para o protagonista sair, ameaçando de registrar uma queixa, e afirmando que “violência policial é crime”. O policial encosta sua arma na cabeça do homem, e em seguida atira; primeiro, nos genitais, e depois, na cabeça. Depois, ameaça as mulheres, determinando que elas deixem a prostituição, pois, caso contrário, ele vai praticar a mesma violência com elas.

A conversa com a delegada assinala que o policial faz parte de um sistema com regras, ainda que essas regras possam resultar na absolvição de criminosos. Para os leitores habituados a situar a polícia ao lado do bem, e os criminosos ao lado do mal, Rubem Fonseca propõe um desafio, que consiste em refletir sobre um dualismo moral. As regras garantiram ao cafetão uma absolvição; para o policial, essa absolvição foi um erro; a punição, para ele, seria uma correção desse erro. Portanto, ele estaria acima da lei, ocupando uma função que a lei, na opinião dele, não teria conseguido cumprir. O assassinato do cafetão, para o policial, é uma ação que compensaria a lei, isto é, se as regras não levaram à punição do criminoso, o protagonista entende que suas ações individuais podem estabelecer essa punição. Nesse sentido, o título do conto aponta para uma compreensão da justiça que, ultrapassando os limites da legislação, é feita com as próprias mãos. Ao realizar esse ato, o policial está efetivamente agindo como um criminoso. O protagonista constitui uma ambivalência: ele próprio age como um criminoso, ao matar fora dos parâmetros da legislação, embora sua ação esteja alinhada com o que ele acredita ser uma forma de justiça para as mulheres exploradas. Em razão da polissemia da obra, podem ser despertadas nos leitores reações muito variadas. Duas questões por exemplo, podem surgir: (a) o assassinato do cafetão é, segundo algum critério, uma ação válida que expressa um senso legítimo de justiça? (b) o respeito ao valor da vida do cafetão, vida simplesmente considerada como uma vida de um ser humano, deveria ter sido preservado pelo policial, como uma razão para não realizar o assassinato? Como o narrador é o próprio protagonista, tudo o que o leitor sabe sobre os acontecimentos é mediado pelo seu ponto de vista particular. É preciso compreender esse ponto de vista.

O que prevalece no conto é uma percepção positiva do assassinato, em razão de que o matador é o próprio narrador, que delimita, descreve e avalia o que acontece na estória. Poderíamos pensar que Rubem Fonseca pretendeu explorar uma ironia, ao caracterizar um policial como um assassino, e escolher o mesmo como narrador. Essa construção permite perceber, digamos, por dentro, como a mente do assassino opera. Um leitor que, eventualmente, se identificasse com o personagem, estaria talvez caindo numa armadilha, pois admitiria um espelhamento com um assassino.

Ao enunciar que “as mulheres estão conseguindo posições de mando e de poder”, o policial se aproxima de formas discursivas conhecidas, em alta circulação nas mídias, referentes a transformações nas relações entre gêneros. Seria um engano, no entanto, acreditar que o enunciado seria uma representação consistente de uma posição favorável a mudanças sociais, ou supor que uma posição feminista faça parte das convicções do personagem. A inconformidade com os cafetões na parte inicial do conto, que supostamente serviria como motivação para decidir matá-los, sugeriria que o incômodo é apenas com os homens e que, para ele, as mulheres ligadas a cafetões são sempre vítimas. A cena final, em que o policial ameaça de morte as mulheres, desfaz as premissas lançadas inicialmente. O protagonista, sem vacilar, expõe que agiria com violência atacando os corpos femininos. Ao fazer isso, em uma inversão discursiva, ele se apresenta, pelo menos em hipótese, como um entre os homens agressivos que aniquilam vidas de mulheres. Portanto, ao menos como uma possibilidade, e ao menos em parte, ele poderia agir como um dos abusadores que ele deseja destruir.

Uma aproximação entre Fonseca e alguns filmes de Stallone permitiria reconhecer que o ato de matar pode ser considerado legítimo, dependendo dos valores que ele representar. Para esse ponto de vista, matar um homem que abusa de mulheres poderia ser considerado um ato libertário, por tirar as prostitutas da situação de exploração. Entender o conto dessa maneira é possível, e isso corresponderia a uma avaliação social e politicamente conservadora. Essa leitura admite o ato de matar como válido, mesmo quando ele é praticado fora do espectro da lei, e conta com a impunidade. Em síntese, essa maneira de ler o conto admite a existência de corrupção no sistema de proteção por parte do Estado, com a existência de práticas violentas estranhas aos limites da legislação. Se um leitor torce, digamos, a favor do policial, esse leitor estaria admitindo, pelo menos nesse caso específico, que o valor do ato de matar é maior do que o valor do respeito à legislação. Em uma abordagem que indagasse a respeito do valor da vida individual, caberia uma preocupação com a vida do cafetão. Se a investigação sobre o criminoso tivesse levado à condenação, seria esperado que ele fosse aprisionado, por um tempo determinado pela legislação. No país, não existe pena de morte, portanto, não seria esperado que ele morresse por ser responsabilizado pelos seus crimes. De acordo com a delegada, o problema em discussão está em como condenar um criminoso, de acordo com a lei, e não em decidir se ele deve continuar vivo. O ato de matar à revelia da legislação aproxima o protagonista de fenômenos como os linchamentos, as ações de milícias ou os assassinatos planejados por vingança.

É possível ter uma outra compreensão do conto, que não envolve ironia. O texto poderia ser lido como uma expressão cuidadosa de um cinismo. Nessa perspectiva, o ato de matar à revelia da lei, sendo mantida a imagem de um policial em busca de justiça, demonstraria hipocrisia com relação aos valores defendidos pela delegada Mirtes. Um prazer em ler Justiça poderia resultar, talvez, para uma parte do público, de um reconhecimento da força do cinismo. É como se o conto pudesse ser tomado como metonímia de um país caracterizado pela violência, atravessado pela hipocrisia e pela desconsideração de vidas de seres humanos individuais.

Essa hipótese de leitura do conto como um discurso malicioso e cínico, que reforça os estímulos para que o leitor sinta prazer em confirmar uma visão genérica e negativa do país, isto é, que o país não tem saída, é formalmente sustentada, pelo fato de que o protagonista é também o narrador. Rubem Fonseca construiu uma situação na qual o mundo está delimitado pela mente de um homem individualista, cínico e violento. Mergulhar nesse mundo significa estar confinado dentro dele, pois não há nenhuma abertura para a mudança de ponto de vista. A vida social, tal como reduzida em miniatura no universo de Justiça, é infernal, pois potencialmente qualquer um poderia ser alvo de uma visita do policial. A única voz que poderia ser tomada como contraposição no texto seria a da delegada, em defesa do Código Penal. Fica claro, porém, que o protagonista não está nada preocupado em seguir a orientação dessa autoridade ou respeitar o sistema formal de justiça. Não há dialética no conto de Fonseca, e a disposição para a violência é constitutiva da sociedade ali desenhada.

O conto Adonias, de Alberto Guzik, foi publicado no livro O que é ser rio e correr?, de 2002. Vale a pena fazer uma aproximação entre esse conto e o texto de Fonseca, em razão de que podem ser encontradas semelhanças entre eles; nos dois casos, o protagonista realiza um assassinato. Por outro lado, saltam aos olhos muitas diferenças entre os textos. Na obra de Guzik, o discurso do narrador está em terceira pessoa, de modo que não é pelo ponto de vista do protagonista que os episódios chegam ao conhecimento do leitor. O personagem-título, Adonias, não tem uma profissão ligada ao cumprimento da lei, o que o distingue do policial construído por Fonseca. A leitura da narrativa de Guzik evoca uma questão formulada anteriormente: por que alguém mata uma pessoa?

A violência emerge pela inserção do protagonista em um grupo social que valoriza a destruição de seres humanos. Adonias integra um conjunto de rapazes que forma uma espécie de gangue. Quando está acompanhando esse grupo, Adonias entra em acordo com os valores defendidos por seus companheiros. De acordo com o texto, o líder do grupo defende o seguinte: “que é preciso limpar os lixo: as bicha, os preto, os judeu, os comunas, e só então as coisas vão entrar no eixo, e daí gente como nós, eu e você e os mano, nós vamos poder ter a vida que nós merece”. A expressão “limpar os lixo” remete a um princípio de pureza, de acordo com o qual os que forem considerados inferiores devem ser excluídos. A posição defendida tem afinidades com elementos do nazismo e do fascismo. A enumeração apresenta grupos que historicamente foram alvos de perseguição e destruição em regimes autoritários. Discursos e práticas de homofobia e de racismo são reiterados constantemente no país, na atualidade. A perseguição a comunistas remete, por exemplo, a ideias defendidas pelo regime militar, no Brasil, durante a ditadura. A frase pode ser associada também ao período da Segunda Guerra Mundial, no qual o regime nazista na Alemanha perseguiu e matou milhões de judeus. O escritor Alberto Guzik consegue, ao formular essa sentença, constituir no personagem que a enuncia uma espécie de síntese de forças destruidoras do passado e do presente. Ao se integrar ao grupo, Adonias adere a esse pensamento excludente.

Em frente a esse grupo, na rua, passa um garoto, que é empurrado por um dos rapazes. Adonias grita para o garoto, descrito como “magro e fraco”: “Que foi, bicha, tá querendo briga?”. O narrador, nos detalhes, configura a desproporção entre os agentes de violência e a vítima, incapaz de reagir a eles. A cena apresenta as agressões físicas impetradas pelos rapazes, entremeadas com manifestações de dor e sofrimento do garoto. O seu lamento (“Pelo amor de... Nossa Senhora...”) estabelece contraste com o registro de que Adonias “chuta e bate mais que os outros, com feroz alegria”. A escuta de um som de sirene faz com que o grupo disperse, e Adonias fuja sozinho da cena, enquanto gritos são enunciados, anunciando a morte da vítima: “assassinos”.

Por que matar? Nesse caso específico, poderia ser sustentado que Adonias é incentivado pelos princípios fascistas da gangue. Trata-se de um grupo que sai a andar na cidade para “assustar umas bichas”. Importa, nesse sentido, chamar a atenção para o fato de que o garoto não era conhecido, e a atenção se voltou para ele de modo imediato e irrefletido. Isto é, não existia nenhuma indicação de que a vítima fosse de fato um homossexual. Essa ausência de referências concretas sobre a vida do garoto expressa que a violência foi praticada independentemente de que a vítima fosse gay ou não. O prazer na violência independe de uma justificativa racionalizada, independe mesmo dos preconceitos e do discurso excludente. É como se a homofobia representasse um pretexto momentâneo para exercer a violência física, mas esta dispensasse qualquer justificativa. No caso de Adonias, o ato de matar é movido por uma vontade de agredir, de dar socos e pontapés e, ao final da cena, a escolha do alvo parece ter sido arbitrária, inteiramente casual, pela coincidência de que naquele momento um garoto com aparência vulnerável apareceu sozinho, na rua, na frente do grupo.
O conto de Alberto Guzik é mais longo do que o texto de Rubem Fonseca. A construção do protagonista é detalhada, e o ato de matar tem antecedentes e desdobramentos, configurando um personagem mais complexo do que o policial de Justiça. O leitor pode observar que Adonias é um homem muito atento a comportamentos que podem expressar, direta ou indiretamente, desejos sexuais. Ele trabalha como ator de filmes pornográficos. Suas memórias de infância estão marcadas por elementos sexuais. As tensões referentes ao sexo estão articuladas com a maneira como agride sua vítima na rua. No entanto, em sua segunda metade, o conto elabora uma perspectiva que subverte o ritmo da narrativa e desloca a atenção do leitor para outro ambiente.

Adonias surge no interior do apartamento, no 18° andar de um prédio danificado, onde mora com sua mãe doente. Esta dorme em um “sofá arrebentado”, enquanto ele come sem satisfação uma refeição guardada. Adonias, enquanto ouve a mãe resmungar, tem de lidar com uma ordem de despejo. A dificuldade de lidar com a sua situação o motiva a planejar repetir práticas habituais, incluindo ir a uma academia de ginástica e lá passar horas, e depois frequentar bares.

É no espaço de intimidade, nesse apartamento, que se desenvolve uma vívida aflição no interior de Adonias. O narrador expõe uma mistura de traços da memória do personagem, inquietações com o presente, e dúvidas sobre como ele poderia mudar as coisas. Nesse movimento dissociativo, o protagonista confronta, por um momento, o assassinato que cometeu. Em um ponto, aparece o seguinte trecho: “Ele poderia ser a bicha que matou esta noite, levar os socos e pontapés em vez de receber”. Essa hipótese é formulada subitamente, e em seguida Adonias desvia o foco para pensar em um trabalho em um filme pornográfico. É como se o personagem refletisse por alguns segundos sobre o crime cometido e, em seguida, tivesse de deslocar a atenção.

A hipótese de reciprocidade é extremamente importante no texto de Guzik. Ainda que de modo rápido, Adonias tem uma percepção ocupada com o outro. Naquela fração de tempo, ele admite que as posições poderiam ser trocadas, e que o valor da sua própria vida poderia corresponder ao valor da vida do garoto assassinado. Adonias está disposto, aqui, a fazer um movimento que o policial criado por Rubem Fonseca não faz: pensar no outro em uma perspectiva inclusiva. Ao contrário da premissa da gangue, de que um homem mereceria morrer por ser gay, nesse ponto Adonias se posiciona em outro ângulo, para o qual a escolha da vítima foi arbitrária. Sendo arbitrária, nada impediria que ele próprio fosse vítima de uma violência equivalente à que praticou. Esse outro ângulo de compreensão permite apreender a semelhança entre eles (ambos são seres humanos), e tratar a similaridade como mais importante do que a diferença (Adonias se considera heterossexual, e o pretexto para o assassinato foi a homofobia). Porém, assim como não foi definido, na rua, que o garoto era de fato homossexual, o próprio Adonias, perto de sua mãe, confronta a sua virilidade. Ele se debate com uma decisão profissional: participar ou não de um filme pornográfico com cenas de sexo entre homens. Imagens de Laurence Olivier no filme Hamlet contribuem para lançar Adonias em indeterminações sobre o seu desejo.

O texto de Alberto Guzik suscita reflexões éticas, pois a construção do personagem Adonias admite a autocrítica, a desilusão, e o reconhecimento de que as percepções podem mudar com o tempo. É uma narrativa em que a passagem do tempo oferece condições para rever ações do passado, como se a consciência percebesse os seus próprios limites. A imagem da reciprocidade, no extremo, tem uma camada suicida: Adonias seria capaz de matar alguém exatamente como ele próprio; ele poderia ser aquele que recebe os socos e pontapés. Essa conexão entre destruição e autodestruição permite questionar o ato de matar em si mesmo. O texto alcança um patamar de reflexão que não aparece em Fonseca: a compreensão de que, se o ato de matar for considerado válido por setores da sociedade, à revelia da lei, nada impede que ele se espalhe indiscriminadamente e atinja, como vítimas, as mesmas pessoas que o validam.

 

CapaLuisa Vasconcelos set19.3

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