Segundo texto da matéria de Inéditos: Carta ao pai
Íncubos 1
Eu não acredito.
...
...
(Ela se vira.)
...
...
(Suspira.)
...
Puta que pariu.
E o pior é ainda não poder nem fazer barulho. Saco. Mas foi-se. Foi-se. Adeus, soninho.
E justo hoje. Justo hoje.
Puta dia comprido.
Tudo bem que o dele deve ter sido também. Pelo que ele falou, pelo menos... E, meu deusinho do céu, mas como falou, meu. Pelo amor. Nunca vi uma coisa dessas. Já chegou solando. Parecia que tinha tomado alguma coisa. Será que ele tomou alguma coisa?
Mas que coisa, Maria Cristina, mas que coisa.... Que coisa. Onde já se viu. Não dava nem tempo. Ele chegou na hora de sempre, do jeito de sempre, só que a mil. A mil e um. Falando pelos quatro cotovelos. Um sorriso enorme.
Dá uma tristeza, isso dá.
Deixa pelo menos ver se eu consigo puxar essa coberta aqui sem acordar ele. Prendeu embaixo do braço. Mas tudo bem, do jeito que ele está hoje eu podia puxar isso aqui até fazer ele sair rodopiando. Dar um trancão assim. Sair que nem pião. E aposto que caia dormindo do lado da cama. Pelo menos um puxãozinho mais.
Engraçado que parece essas horas que são essas coisas. Que é totalmente impossível. Que a única razão de você não conseguir dormir é essa coberta embolada aqui, ou curta ali, ou a coceira do elástico da calcinha. Ai, meu Deus. Será que dá pra coçar com a mão esquerda...
Mas dá uma tristeza mesmo, isso. Dá.
De por que é que você olha o teu marido chegar em casa todo feliz, quase saltitante mesmo, uma puta cara radiante, e você não consegue ficar feliz.
Eu até meio que me diverti na hora. Pensei, eh! Qual que é, Amadeu? Acho que até falei isso. Devo ter falado.
Mas no fundo eu estava era rodando aqui umas coisas tipo o que que ele me aprontou? Ou nem isso. Que eu sabia que ele não tinha aprontado nada. Conheço o seu Amadeu. Deve ser só culpa.
Ou nem isso. No fundo mesmo eu estava era pensando tipo qual que é, mané, de onde essa cara? Taí se abrindo que nem guarda-chuva por quê.
Eu devo até ter falado isso. Acho que falei.
E ele nem tchuns.
Só o sorriso.
Tudo bem que fazia meses mesmo que eles estavam torcendo pra aquele pessoal de Minas fechar com eles. E que diz que todo mundo ficou super feliz lá na agência, que nem foi só ele. Diz que até mandaram o guri descer comprar umas cocas e umas coxinhas.
Procê ver...
Isso com aquele zumbi do André de chefe. Nossa, deve ter sido a maior festança.
Hffff...
Sacanagem.
De novo. Só maldade, no fim. É só maldade.
Deve ser culpa.
Os caras estavam felizes. Que comam coxinha! Pois que comedes coxinha e vos fartades! E infartardes!
(Ela sorri. Pisca cada vez mais lentamente.)
(Suspira.)
Deve ser culpa.
Aí ele me chega com aquela carantonha de satisfeito. Sastisfeito.
Trouxe um presente? Nem.
Trouxe coxinha? Té parece...
Só o falatório. E me contando tudo de novo pela trocentésima vez. Como se eu já não soubesse a porra da história do “pessoal lá de Minas”. Ladiminns. Ele simplesmente não consegue não dizer. Capaz de apostar que ele fala até pros caras ladiminns. Desse jeito. Imagina. Sabe Deus como foi que eles conseguiram “fechar” com esse povo.
Nunca devem ter visto nem a fuça do Amadeu.
Maior surpresa, que vai ser.
Sacanagem. Só porque não me trouxe coxinha...
(Ela sorri. Olhos bem abertos.)
Deve ser. Só pode ser.
Se bem que eu duvido. Não tem a menor noção. Nem de nada.
Só quer saber é do contrato com os mineiros e de zumbir na minha orelha na janta. Me chamou pra ir comer fora? Já que era comemoração? Nada. Só quer saber é do tal do contrato.
Engraçado que eu já tinha até esquecido essa estória. Ele até parecia também, que tinha. Esquecido. Aí tudo de novo.
Aquele monte de número, aquele “monditrem” que precisou pra fechar com os caras. A estória toda de novo. Que o André que conseguiu, que tudo bem que ele nunca foi muito com a cara do André, mas que foi ele que fechou.
Será que ele disse isso mesmo?
Que nunca foi com a cara do André?
Se-rá?
Não sei não. Eles sempre se deram bem. Direitinho, pelo menos. E o André também me disse a mesma coisa. Sempre.
Mas hoje tudo lindo. Purcausdumonditrem que deu certo. Que tudo deu certo. Que maravilha. Só coxinha. Mondicoxinha.
E ele estava feliz. Estava mesmo. E eu achei ruim. Pensei qual que é, mané.
Puta sacanagem. Sacaneando com ele e achando ruim ele estar com cara boa. O cara estava animado, ora. Ara.
Ora-ora. Arara.
Tinha era que trocar essa cortina. Fica uma luz. E tem hora que parece que só isso que é a coisa. A coisa da cortina embolada embaixo do braço.
Que não vai dar pra você dormir por causa disso.
Do braço dele aqui embolado em mim todo feliz na coberta. Da cortina da luz.
Deve ser culpa.
Mas aposto que ele nem imagina de mim e do André.
Íncubos 2
Este está dormindo.
Caiu no sono assim que encostou a orelha no travesseiro. Estava cansado. Ele está cansado.
Deitado de lado, um braço sobre o corpo da mulher, ele no entanto não tem a aparência que aparentemente deveria aparentar. Se tudo está tão bem, se o dia foi tão bom, se ele está tão cansado e tão realizado que caiu imediatamente no sono, no sono dos justos, por que essa cara travada?
Mas deve ser só impressão. Muito pouca luz aqui no quarto. A cortina, apesar do que a mulher dele insiste em repetir, deixa entrar muito pouca luz. Muito difícil ver no escuro. E está sempre escuro, senão por que é que a gente ia precisar de luz?
Ela dormiu também. E dormiu rápido, apesar da sua impressão de que nunca mais ia conseguir dormir, de que a noite ia ser longuíssima. Mas vai ser essa impressão que ela vai guardar. E seria essa impressão, de que foi de fato uma noite longuíssima em que ela mal conseguiu pegar no sono, que ela comunicaria a qualquer amiga amanhã, se fosse dessas de falar qualquer coisa com qualquer amiga. Que amiga? Ela não é dessas. Dessas amigas.
Dormiu rápido. Dormiram os dois.
“O sono dos justos.”
Ninguém aqui é justo. Mas os dois dormem que é uma beleza.
A cara travada dele, se é que tem uma cara travada ali, deve ser por coisas que ele nem sabe. Que lhe travam a cara. Se é que travam.
Ela dorme o sono dos justos apesar de tudo. Três meses já com isso!
Já ele, vejamos. (E está lá, sim, a cara travada.)
Ele dorme o sono dos justos apesar de toda a satisfação, de toda a empolgação que a assinatura do contrato com os mineiros lhe tinha causado ainda naquela tarde, depois de todo aquele tempo pensando meio que só naquilo, a coitada da mulher dele nem devia mais aguentar ouvir ele só falar daquilo nos últimos três meses, ele estava uma pilha, mas agora não, depois que assinou foi só alegria, teve até festa no escritório, a maior empolgação mesmo, bem que bem ele contou pra Lúcia quando chegou em casa, e ela nem deu muita bola, ele até pensou que era meio sacanagem dela isso mas aí lembrou também que dava do mesmo jeito pra pensar que era sacanagem dele ficar esperando que ela estivesse com o mesmo tipo de satisfação que ele tinha, mesmo tendo ouvido ele ficar falando disso meses e meses a fio, ou talvez até por isso, sacanagem dele, mas mesmo assim ele dorme, dorme que nem um anjinho de cara feia, um anjo feio, um anjo do escuro, porque a cortina aqui afinal deixa o quarto escuro mesmo, dorme o sono dos anjos justos apesar de todos os sentimentos algo contrastantes que tem em relação ao André, por achar que ele subiu rápido demais ali na firma depois de ter sido apresentado por ele ao pessoal da empresa, dois, três anos atrás, meio de favor em nome dos velhos tempos, da faculdade, apesar que fazia anos que ele nem tinha mais visto o André, e que eles nem se falavam tanto assim lá na facu, o André já era, se você para pra pensar, o André já meio que era um cara esquisitão, se você parar pra pensar, mas era competente, foi uma boa aquisição, todo mundo falou, e aí de repente, não mais que de repente, ele era mais importante e mais boa-aquisição que todo mundo, e virou chefe da seção em coisa de meses, parecia meses, podia ser mais, mas parecia assim, em coisa de meses, em questão de meses, e claro que a firma andou bem, como ele mesmo dizia, o André, andou, cresceu, contratou mais gente, se você parar pra pensar esse pessoalzinho novo, do Tiago pra frente, meio que devia o emprego a ele, afinal foi só por causa do crescimento que eles entraram, e o crescimento foi só por causa do André, e o André só foi por causa dele, só veio por causa dele, por indicação dele, dele que devia, pelas contas de todo mundo lá atrás, dele que devia ser chefe da seção a essa altura, tinha tempo já, que tinha tempo, que tinha bem mais tempo de empresa que todo mundo ali, que era da casa, que tinha crescido com a empresa, crescido pouco, é verdade, antes do André, mas se até o André era contribuição dele, ora, ele acabou perdendo o posto, perdendo a promoção pra um cara que só ao ter sido contratado, por sugestão dele, por contribuição dele, provava que ele era o cara certo para tomar decisões ali, pra contratar pessoas, pra contribuir, se o André era melhor que ele, tudo bem que ele não tinha mulher, não tinha essas pressões de horário de estar em casa, podia trabalhar de noite, aí grande surpresa que ele era mais produtivo, mas se o André era melhor que ele, ainda mais com isso de ser solteiro, isso de ser solteiro era que era a diferença, o cara tinha tanto tempo de sobra, de noite, que ele acabava até conseguindo sempre esticar mais a hora do almoço, voltava às vezes quase no meio da tarde já nos últimos meses, e com a maior cara de sastisfeito, descansadão mesmo, porque ele dava conta do trabalho era tudo de noite, mas se ele era melhor que ele, se o André era melhor que ele, afinal, isso não era exatamente a prova de que era ele que devia ser o chefe?
Íncubos 3
Nossa.
Fazia tanto tempo.
E foi ela que quis. Foi ela quem tomou a iniciativa.
Primeiro sem nem querer. Dormindo mesmo. Pôs a mão nele, deve ter sido na barriga. E quando viu, quando se deu conta... Ele dormindo ainda.
E começou a mexer. Bem devagarinho porque não sabia se queria que ele acordasse. Ela não queria acordar. Aquilo nem era de verdade. Mas começou a mexer. E começou a gostar.
E se encostou mais nele, que estava enorme. Que era um homem enorme, e ela se encolheu e meio que desapareceu do lado dele. Como que à sombra dele.
E cheiroso.
E foi quando ela quis. Foi quando ela tomou a iniciativa, foi quando tudo começou a ficar indizivelmente bom. Indizivelmente bom de novo, como antes, como sempre, como era para ser, para sempre.
Foi aí que ela começou a emitir um grito baixo. Prazer. Que cresceu aos poucos.
Segundo texto da matéria de Inéditos: Carta ao pai