Arquiteto, engenheiro, fotógrafo, repórter, design, todos visitaram o marceneiro Tião, em sua oficina, no último mês. Para cada um, o homem contou a mesma história: o lugar pertenceu ao avô, funcionava no mesmo endereço há décadas. Com o velho, aprendeu a tratar a madeira, falava orgulhoso de uma época em que o Brasil era outro e que madeireiros ainda não tinham roubado árvores da floresta para dentro de suas salas e quatros.
“Meu avô não conseguiu deixar fundos para os filhos, mas ensinou a profissão para os netos, oito”, falava Tião, enquanto enumerava nos dedos tingidos de verniz os nomes de João, Chiquinho, Zé Carlos, Márcio, Valdecir, Benê e Manuel.
Mas as visitas não estavam ali para ouvir memórias. O fotógrafo, por exemplo, deixou Tião contando história para as paredes. Câmera em punho, rodou a oficina, de um canto a outro, em busca da poltrona sem forma, que despertava comentários em toda a cidade, do mercado de peixes à casa do prefeito.
Onde está o móvel? Perguntavam as visitas, que chegaram a fazer fila na frente da garagem transformada em oficina, onde entravam toras de madeira, transformadas dias depois em sofás, camas, berços, escrivaninhas, penteadeiras.
Antes de falar sobre a criação, Tião contava da mudança de vida numa tarde não muito diferente de outras. Limpou o suor da testa e gritou para a mulher, que passava café, na cozinha, ao fundo: “Consegui. Eis o móvel que ninguém ousou fazer”. Ela correu e viu o homem com um serrote nas mãos, dando o último trato no objeto.
“Mas, homem, a poltrona existe?”
Orgulhoso de si, exibiu-se sentado em pleno ar. Cruzou os braços atrás da nuca e espreguiçou o tronco, deixando a esposa de olhos arregalados.
“Tenta você, vamos, Isildinha.”
Levantou-se e deu lugar para a mulher.
Ela se aproximou do nada, no canto do cômodo, e, no exato lugar em que vira o marido se sentar minutos antes, levantou a saia até os joelhos e, abaixando-se, esborrachou no chão.
“Como conseguiu, homem?”
Ele riu ao mesmo tempo em que passava a mão na testa para limpar o suor que escorria pelos vincos do rosto. “A poltrona... aprendi a fazer com o meu avô. Demorei uma vida inteira para chegar ao molde confortável, praticamente um trono para reis e rainhas, assento para descansar cada um dos ossos do calcanhar.”
Não tardou para que a vizinhança passasse a visitar a pequena oficina. Todos queriam testar a poltrona invisível.
Tião sentou-se e levantou-se do móvel dezenas de vezes, naquelas tardes. Depois, cedia lugar à visita. Contava a mesma história, que todos já sabiam de cor, o ofício transmitido, os moldes e os brinquedos que o velho o ensinara a criar com tocos de madeira. Mais tarde, explicava em detalhe como se devia sentar no móvel. Mas não havia jeito. Todos caíam, em tombos variados, do mais discreto aos estrondosos.
***
Uns disseram que o objeto devia ser mandado para o museu, outros para a feira de ciência da cidade. Havia quem acreditasse que a poltrona devia ser despachada, em navio, à rainha da Inglaterra.
Em pouco tempo, os pedidos na marcenaria dobraram. Pessoas da cidade vizinha, da capital, cada um aparecia com uma encomenda diferente, a cama mais confortável do universo, a mesa de trabalho que massageia pés e pescoço, a penteadeira que deixa bonita quem na frente dela se senta.
Tião ria, enquanto anotava os pedidos. Depois, sentava no ar, espreguiçando-se. “Desse jeito, em vez de ficar rico, vai colecionar tombos”, falava Isildinha. Foi aí que ele passou a enumerar os tombos. Gostava de falar dos mais bonitos. Um deles, contava, foi de um moço que se apresentou como design. Chegou falando palavras como ergonomia e postura, ou coisa parecida. Um tombo pesado. Por pouco não abre buraco no chão. Sem jeito, levantou-se do cimentado e bateu palmas para a criação. Objeto mais perfeito não existe. E sugeriu que o assento fosse levado ao salão anual do design de cadeiras, poltronas e sofás.
Dias depois, recebeu o repórter do jornal da cidade. Também caiu, quase engolindo uma caneta. Arquiteto e engenheiro levaram fita métrica, queriam anotar as proporções do objeto. Isildinha assistia a tudo de um canto, sorria para as visitas, passava cafezinho. O marido continuava a rir. Pedia para todos que deixassem xícara no balcão antes de se aventurarem a sentar no nada.
***
Houve um dia em que Tião caiu ao tentar mostrar para uma visita como se sentar em pleno ar. Depois desta tarde, nunca mais conseguiu o seu grande feito. Mesmo assim, continua a contar a história da obra perfeita a todos que entram na oficina. Provas não há de que fale a verdade. Isildinha desconversa quando a questionam. Os vizinhos sumiram do lugar. O marceneiro já pensou em procurar o fotógrafo que esteve no lugar nos dias anteriores. Mas aí se lembrou de que a poltrona que construíra não tinha formas, tamanho e volume.