Pedro Costa2

Acima, cena do filme Juventude em marcha, fim da Trilogia de Fontainhas, de Pedro Costa

O texto abaixo, "Deslocamentos reais e paisagens imaginárias - o cosmopolita pobre", faz parte do livro Falando com estranhos - o estrangeiro a literatura brasileira, organizado pelo escritor Godofredo De Oliveira Neto (UFRJ) e a professora e pesquisadora Stefania Chiarelli (UFF). Será publicado, este semestre, pela editora 7Letras.

"E é exatamente por essa “sensação de não estar de todo” que se procurou chamar a atenção com a escolha desse “O Brasil não é longe daqui”, primeiro verso de uma velha canção alemã – que sugere deslocamentos reais e paisagens imaginárias [grifo meu] −, como título geral para este ensaio."
Flora Süssekind

"Portanto, é importante ver essa perspectiva diaspórica da cultura como uma subversão dos modelos culturais tradicionais orientados para a nação. Como outros processos globalizantes, a globalização cultural é desterritorializante em seus efeitos."
Stuart Hall

Primeiro gesto. É preciso questionar a herança crítica legada pelo sentido tradicional do vocábulo diáspora. Como informa o Dicionário Houaiss, o conceito nos tem servido para designar a dispersão de grupos de cidadãos ou de famílias em consequência de preconceito ou de perseguição política, religiosa ou étnica.

Segundo gesto. Se questionada a delimitação de sentido, descobrir-se-á que seu manto semântico tornou-se inadequado nos dias de hoje. Não consegue recobrir algo nosso contemporâneo: a dispersão anárquica de indivíduos ou de grupos de familiares − que não são necessariamente vítimas de preconceito ou das várias formas de perseguição − duma região pobre do país, ou duma nação conturbada, para as metrópoles mais endinheiradas do mundo ocidental. Às vezes confundido com o bíblico êxodo, o vocábulo diáspora passaria a ser também aplicado a indivíduos isolados ou a familiares em pequeno grupo, forçados à atitude extrema da fuga para sobreviver como humanos. Para ser mais preciso: na tentativa duma vida melhor para si e, indiretamente, para os familiares que os aguardam em casa, abandonam temporária ou definitivamente o lar e migram em busca de oportunidades. Na metrópole nacional ou na estrangeira, encontram ou reencontram os semelhantes na vivência cotidiana e miserável e procuram ser parte constitutiva dum grupo diaspórico orgânico, em geral norteado pela língua que lhes é comum.

Terceiro gesto. Se o movimento for compreendido pelo sentido mais amplo do vocábulo diáspora, logo se desnuda o motivo ou a causa que, nos séculos XX e XXI, compele o indivíduo ou os familiares em grupo a abandonar o lar e a viajar em busca de melhores oportunidades. Em casa, os futuros migrantes foram afligidos com a pobreza e, nos casos extremos, com a miséria. Muitos são analfabetos e não têm profissão definida. Vivem como animais. Talvez sejam eles (homens e mulheres, velhos e crianças) os últimos espécimes humanos a crer na utopia da viagem e no Eldorado. Se fracassados, os desbravadores honestos e amorosos transformam-se nos mais desesperados mortais, sucumbindo a toda forma de comportamento desviante e de negócio ilícito. As páginas dos jornais nos informam com brutalidade.

Quarto gesto. Por não constituírem uma massa política ou politizada, esses migrantes têm sido menos compreendidos pela sociologia e as ciências políticas, e são mais bem compreendidos pelas artes em geral. A “Trilogia de Fontainhas”, do cineasta português Pedro Costa, pode exemplificar a miséria, o desespero, a prostituição, as drogas e a morte que cercam os deserdados do asfalto. Em ritmo lento e cinematografia rigorosa, seus filmes, inspirados pelos de Yasujirō Ozu e do casal Straub, Jean-Marie e Danièle, negociam imagens do proletariado urbano lisboeta com imagens dos migrantes africanos, cabo-verdianos, nos escombros do bairro Fontainhas, em Lisboa. Ao não se deixar corroer pelo sentimentalismo da trama, a trilogia se transforma na mais corrosiva das exibições públicas da condição humana que estamos descrevendo. As negociações em imagens e poucas palavras provam que a análise do problema humano e socioeconômico imposto pela miséria aos moradores brancos dos grandes centros urbanos do Ocidente não pode ter sua discussão desvinculada das questões colonial, étnica e de gênero (gender). Em entrevista, Pedro Costa observa: “Pero los portugueses ni siquiera tienen necesidad de ser racistas con los africanos puesto que lo son entre ellos y lo son en tal grado de refinamiento que se llega a disfrutar de la desgracia ajena” (“El punk, el cuarto, la adolescencia”, texto que acompanha os DVDs de Pedro).

Quinto gesto. Nos anos 1930, a literatura dramatizou a fuga desesperada de indivíduos ou de familiares em grupo, salvaguardando o limite geográfico determinado pelas fronteiras legais do Estado-Nação. Por vontade própria, os migrantes miseráveis viajam a outra cidade ou a outra região do país. As fronteiras nacionais permanecem intactas. Os migrantes experimentam apenas e principalmente o isolamento do convívio comunitário, já que língua nacional, moeda, costumes, leis etc. permanecem os mesmos. Destaca-se, e é um dos bons exemplos na literatura, o romance The grapes of wrath (As vinhas da ira, 1939), de John Steinbeck. Na miséria sem esperança do dust bowl de Oklahoma, a família dos Joads decide partir – como outros “okies” – para a Califórnia, onde todos esperam encontrar emprego, terra fértil, dignidade e futuro. Trama semelhante se encontra em Vidas secas (1938), romance de Graciliano Ramos, cujo pessimismo visceral o torna antepassado de Pedro Costa. Na crença de poder encontrar melhor guarida, a família de nordestinos pobres viaja, em Vidas secas, até a pujante capital do estado de São Paulo. Num emprego admirável dos verbos no futuro do pretérito, o narrador de Vidas secas marca o eterno retorno do mesmo, o beco sem saída da migração nacional. Lê-se na página final do romance: “[Os migrantes] chegariam a uma terra desconhecida e civilizada, ficariam presos nela. E o sertão continuaria a mandar gente para lá”. Naquela mesma data, o pintor afro-americano Jacob Lawrence dá início à série de quadros sobre a migração negra nos Estados Unidos, apresentada, neste ano de 2015, no MoMA (Nova Iorque): “One-Way Ticket: Jacob Lawrence’s Migration Series and Other Visions of the Great Movement North”. Citem-se, ainda, os quatro painéis de Os retirantes (1944), pintados por Cândido Portinari. A causa para a viagem se encontra em violentas diferenças regionais (cidade versus campo, industrialização x agricultura, escolaridade x analfabetismo, bem-estar versus pobreza ou miséria, conflitos étnicos etc.) que fundam e fragmentam o Estado-Nação moderno. A bibliografia clássica classificou o fenômeno migratório voluntarioso e anárquico como subproduto do subdesenvolvimento nacional.

Sexto gesto. Em meados do século XX, em decorrência das sucessivas conquistas tecnológicas no campo dos meios de transporte coletivo, a regionalização desequilibrada e injusta do Estado-Nação passa a ser percebida pelo indivíduo ou pelos familiares estigmatizados pela miséria como possibilidade de afrouxamento das fronteiras nacionais que circunscrevem a fatalidade do subdesenvolvimento natal. No México e nos países da América Central, o ônibus Greyhound ou o avião de carreira se tornam o sucedâneo, no Brasil, do antigo navio da marinha nacional (o Ita, como era chamado) e do desconfortável caminhão pau de arara. Abre-se para o pobre interiorano o mapa da viagem diaspórica internacional, de que foi primeiro exemplo, nas Américas, a fuga dos cidadãos e cidadãs de fala hispânica para Nova Iorque, Chicago, Miami ou Los Angeles. Hoje, em São Paulo, levas de bolivianos, paraguaios e haitianos tomam o espaço ocupado no passado pelos antigos paus-de-arara. Os sul-africanos manifestam-se contra os irmãos africanos pobres que trabalham no país, enquanto os alemães se reúnem em torno do PEGIDA (Patriotische Europäer gegen die Islamisierung des Abendlandes) e Marine Le Pen quer retomar as rédeas da direita xenofóbica na França.

Sétimo gesto. Antes da Segunda Grande Guerra, movimento diaspórico semelhante teve como causa a soma da miséria interiorana em Portugal e na Espanha com as ditaduras de António de Oliveira Salazar e de Francisco Franco, respectivamente. Exemplo notável e tocante é o filme Viagem ao começo do mundo (1996), do cineasta português Manoel de Oliveira. Afonso, filho de um pobre refugiado português na França, torna-se, nos anos 1990 e em Paris, um famoso ator de teatro que resolve voltar à perdida região de onde emigraram os pais para conhecer os parentes próximos ainda vivos. Por se exprimir em francês, o ator não é reconhecido pelos seus. A velha tia, irmã do seu pai (admiravelmente interpretada por Isabel de Castro), não reconhece um sobrinho nas palavras francesas de que o ator se serve. Dirige os olhos a ele e a palavra ao intérprete que o socorre: “Para quem estou a falar? Ele não entende o que eu digo”. E continua a indagar entre ríspida, intolerante e raivosa: “Por que que ele não fala a nossa fala?” O ator tira o paletó, aproxima-se da tia, arregaça a manga da camisa e lhe pede, através do intérprete, para que lhe aperte o braço. Braços e mãos se cruzam, estreitando os laços familiares afrouxados pela diáspora lusitana. Diz-lhe o ator: “Não é a língua que importa, o que importa é o sangue”. A etimologia dos elementos da fala do afeto está no dicionário do sangue como, aliás, nos poemas de Carlos Drummond de Andrade sobre a família. A tia o reconhece finalmente como o filho do irmão. Abraçam-se. O sobrinho lhe pede para ir ao cemitério, visitar o túmulo dos avós. A fala do afeto torna-se plena no momento em que a tia sela o encontro inesperado com a doação ao sobrinho dum pão camponês. Porém, perdura na tela a constatação amarga da tia: “Olha, Afonso, se o teu pai não te ensinou nossa fala, foi um mau pai”. Em fins do século XX, o cinema português ainda estava longe do universo funéreo de Pedro Costa.

Oitavo gesto. No tocante às novas diásporas, não se sabe de incentivos à viagem, monitorados por campanhas publicitárias, de que seriam exemplo as várias emigrações europeias para o Novo Mundo desde princípios do século XIX. Logo depois da Segunda Grande Guerra, a Europa tinha conseguido contrabalançar a necessidade de certas nações com a generosidade de outras, mas a ilha de Lampedusa indicia no século XXI que os bons sentimentos cosmopolitas, aliados à mão de obra estrangeira e barata,foram pros ares. Embora o traço de união que ata a diversidade e o sucesso dos atuais movimentos diaspóricos nas metrópoles ocidentais seja a provisão de mão de obra estrangeira e barata, é inegável que, nos variados casos em questão, não é totalmente justo que o analista recorra apenas à campanha publicitária dos novíssimos meios de comunicação de massa ou à força repressiva do capital multinacional como agentes originais da emigração dos indivíduos pobres ou miseráveis. Interessa-nos, portanto, mais a forma que veio a ganhar o movimento diaspórico anárquico que a sua formação, embora esta tenha de ser necessariamente circunscrita, nos extremos, à miséria nacional e ao grande capital globalizado. O desejo da fuga para o mundo da abundância é alimentado por relatos otimistas de familiares e amigos e visa a “paisagens imaginárias”, para retomar a palavra de Flora Süssekind em contexto onde, em fins do século XX, o destino da viagem se transformou em origem da viagem para o retorno; o desejo de migrar é randômico, de única responsabilidade do indivíduo ou dos familiares envolvidos. Daí o caráter de clandestinidade ou de ilegalidade10 que, muitas vezes, circunscreve a condição da estada do indivíduo ou do pequeno grupo de familiares no país estrangeiro.

Nono gesto. Se os movimentos nacionalistas visam a cimentar o EstadoNação dentro das próprias fronteiras econômicas, encontrando no seu extremo os movimentos ufanistas, não há dúvida de que os indivíduos e os familiares em grupo que questionam o sentido dicionarizado de diáspora põem abaixo a proclamada eficiência do desenvolvimento nacional e, ao mesmo tempo e silenciosamente, conclamam os concidadãos letrados à crítica contundente e corrosiva, no país natal abandonado, do fracasso civilizacional e/ou governamental. Por razões óbvias, o distanciamento crítico do migrante pobre é silencioso, embora o impulsione a manter a intenção de não destruir as relações sentimentais e familiares com os que resistiram ao sonho da viagem diaspórica. Muitos dos migrantes se transformam em provedores, e os dados bancários de transferência de dólares e de euros para regiões subdesenvolvidas ou em desenvolvimento o provam. Encontram no trabalho sujo e duro no estrangeiro a motivação para alimentar os estômagos vazios no torrão natal. A velha rotina comunitária é substituída pelo exílio voluntário dos lavradores, enquanto as fronteiras nacionais (vale dizer: o símbolo da independência e da autonomia do Estado-Nação) são destroçadas criticamente pelos que passam a ocupar a margem (fora-e-dentro) dos limites nacionais.

Décimo e último gesto. Tendo como objeto a história dos países ibero-americanos e africanos, pode-se propor uma cronologia da diáspora moderna que se fundamenta na antiga condição colonial desses continentes e dos respectivos Estados-Nações. Há, no entanto, que destacar o fato de que, desde o século XIX, há Estados já plenamente constituídos nacionalmente (no Novo Mundo), enquanto outros só se tornaram independentes e autônomos a partir de meados do século XX (na África). Em ambos os casos, há que assinalar que o Estado-Nação originário, republicano ou monárquico por opção, fracassou no processo de assistência (trabalho, saúde, educação, etc.) a todo e qualquer cidadão sob sua jurisdição, daí a crítica anárquica e radical que vem embutida na viagem do indivíduo ou dos familiares em pequeno grupo. O fracasso maior do sistema internacional, no entanto, deve recair nos dias de hoje sobre o mundo globalizado. Os chamados países do primeiro mundo, colonizadores desde as grandes viagens marítimas do Renascimento e hoje ex-colonizadores, devem se redimir do trabalho dito civilizatório realizado por eles − durante séculos e muitas vezes a ferro e a fogo − nas terras por eles incorporadas ao Ocidente. A visada crítica proposta pela análise do migrante moderno é, pois, desconstrutora (para retomar a atitude preconizada por Jacques Derrida) do eurocentrismo.

Os dez gestos, essas dez observações de caráter metodológico me deram a garantia de que poderia criar a categoria analítica de cosmopolitismo do pobre, que está por detrás do ensaio de igual nome escrito no ano de 2002 e depois parte do volume ainda de igual nome, publicado em 2004 pela Editora da UFMG. Antes de dar prosseguimento a esta apresentação, aviso que não refarei a leitura do tema proposta no citado ensaio. Prefiro passar, primeiro, à discussão dos pressupostos teóricos, que trabalhei, tomando-os muitas vezes de empréstimo ao jamaicano/britânico Stuart Hall, e, em seguida, à análise de um caso em particular tomado ao poeta e ensaísta Octavio Paz − o dos mexicanos que, desde meados do século XX, vêm migrando para os Estados Unidos da América. Tornaram-se conhecidos pelos concidadãos como pachucos e pelo americano preconceituoso como wet-backs. A leitura de Paz poderá ser complementada – no avesso pessimista inexistente − pela análise por parte do espectador dos filmes do cineasta Pedro Costa.

Não refaço a leitura do antigo ensaio, mas reabro a questão do caminho aberto pelos migrantes pobres no México e no restante da América Latina, onde o cosmopolitismo sempre foi matéria e reflexão de ricos e ociosos, de diplomatas e intelectuais. Nesta condição, as relações interculturais de cunho internacional se deram principalmente no âmbito ou das chancelarias ou das instituições de ensino superior, como foi o célebre caso da fundação da Universidade de São Paulo, em 1934.

Nos dias de hoje, muitos dos jovens artistas moradores em comunidades carentes do Rio de Janeiro e de São Paulo têm viajado a países estrangeiros e apresentado seu trabalho em palcos internacionais. Duas ou três décadas atrás, seria impensável esse tipo de contato entre profissionais duma cultura hegemônica e representantes jovens duma cultura pobre como a existente nas favelas do Brasil. Em contrapartida, muitos dos ilustres estrangeiros que chegam hoje ao Brasil preferem deixar o asfalto e subir até o alto dos morros, a fim de constituírem novos interlocutores e de dialogarem com os grupos culturais que ali estão localizados.

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