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As duas crônicas abaixo estão no livro Sobre-viventes, da escritora Cidinha da Silva, uma publicação da editora Pallas

A guerra

Eu sou belo, sou forte, sensível e trabalhador 
Você é vagabundo, feio, fraco, grosso e sujo 
Eu sou limpo, trabalhador, belo, forte, sensível e honesto 
Você é ladrão, sujo, vagabundo, feio, fraco, grosso e burro 
Eu sou inteligente, honesto, limpo, trabalhador, belo, forte, sensível e guerreiro 
Você é acomodado, burro, ladrão, sujo, vagabundo, feio, fraco, grosso e incompetente 
Eu sou competente, guerreiro, inteligente, honesto, limpo, trabalhador, belo, forte, sensível e generoso
Você é egoísta, incompetente, acomodado, burro, ladrão, sujo, vagabundo, feio, fraco, grosso, fracassado, neurótico e tem síndrome de vítima 
Eu sou alvo da sua metralhadora giratória, sou saudável, vitorioso, generoso, competente, guerreiro, inteligente, honesto, limpo, trabalhador, belo, forte, sensível e incansável, incansável, incansável

Eu quero ser feliz

Você agora é feliz, não percebeu? 
Deixei de atirar para matar 
Só atiro para assustar 
Para fazer você correr 
De volta para o seu lugar

O dia em que William Bonner chorou

O Jornal Nacional aproximava-se do fim e seguindo o roteiro diário viria algo de impacto para encerrar a espetacularização da notícia no horário de maior audiência dos telejornais. O narrador de voz bonita, terno impecável e cabelos charmosamente grisalhos anuncia um caso surpreendente no sertão do Brasil. Um adolescente de vida miserável é flagrado ao roubar um bombom na vendinha da região. A repórter responsá- vel pela cobertura percebe que ali há uma boa história para entreter os telespectadores fiéis e resolve levar a notícia do roubo à mãe do garoto para compor o drama que antecipará a novela das nove. O cinegrafista, depois de ter filmado o menino cabisbaixo e mudo na delegacia, inclui as devidas tarjas no rosto, pois o pequeno infrator tem apenas 13 anos, fecha dramaticamente o ângulo da câmera no bombom solitário sobre a mesa do delegado e, junto com a repórter, ruma para a casa daquela que roubaria a cena e emocionaria o apresentador, a mãe do menino. No trajeto, a câmera destaca os efeitos da seca prolongada, a pobreza, o abandono. Quando chegam à casa, cumprimentam a dona, são convidados a entrar. A repórter senta em um dos dois tocos da casa de cômodo único, cruza as pernas, equilibra-se. A mãe senta na cama de forquilha, dois troncos finos de árvore que sustentam colchão velho, fino e torto, cama única do lugar. Afora isso, uma bilha com caneca de alumínio em cima, dessas de escola pública, e retrato de um casal pálido na parede. O homem de terno, a mulher de vestido branco, provável casamento dos pais do menino. A repórter, compungida, transmite à mãe a notícia do roubo. Lágrimas grossas escorrem pelos sulcos do rosto marcado pelo sol e pela dureza no trabalho da roça. A câmera focaliza cada detalhe. A mulher ergue o dedo cabeçudo e calejado, sem unha feita, esfolado pelo cabo da enxada e anuncia: “Eu vou falar uma coisa pra senhora: ele roubou foi de safadeza, colegage, luxúria. Não foi fome, não, senhora, porque fome ele passa desde que nasceu!”

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