023 cindy sherman theredlist

 

Conheço um homem casado, com dois filhos, que comprou um motel de 21 quartos perto de Denver, há muitos anos, a fim de se tornar um voyeur‐residente.

Com a ajuda de sua esposa, ele fez buracos retangulares no teto de uma dúzia de quartos, cada um medindo quinze por 35 centímetros. Depois, cobriu as aberturas com persianas de alumínio que simulavam grelhas de ventilação, mas eram, na verdade, aberturas de observação que lhe permitiam, quando ele se ajoelhava ou ficava de pé no espesso carpete do sótão, sob o telhado de duas águas do motel, ver os hóspedes nos quartos abaixo de si. Ele os observou durante décadas, mantendo um registro escrito quase que diário do que via e ouvia — e nunca, nenhuma vez, em todos esses anos, foi descoberto.

Tomei conhecimento pela primeira vez desse sujeito depois de receber uma carta registrada escrita à mão, sem assinatura, datada de 7 de janeiro de 1980, enviada para minha casa em Nova York. Ela dizia:


Prezado sr. Talese:

Sabendo de seu muito aguardado estudo sobre o sexo de costa a costa nos Estados Unidos, que será incluído em seu livro prestes a ser publicado, A mulher do próximo, sinto que tenho informações importantes com as quais eu poderia contribuir para o conteúdo deste ou de um livro futuro.

Deixe‐me ser mais específico. Sou proprietário de um pequeno motel de 21 unidades na área metropolitana de Denver. Tenho esse motel há quinze anos e, devido à sua característica de classe média, ele acabou por atrair pessoas de todos os tipos e idades e abrigar como hóspedes uma generosa amostra para estudo de corte transversal da população americana. Comprei esse motel para satisfazer minhas tendências voyeurísticas e meu interesse irresistível pelo modo como as pessoas se conduzem em todas as fases de suas vidas, tanto social como sexualmente, e para responder à velha pergunta sobre “como as pessoas se comportam sexualmente na privacidade de seu próprio quarto”.

A fim de alcançar esse objetivo, comprei esse motel, administrei-o pessoalmente e desenvolvi um método infalível para observar e ouvir as interações da vida de diferentes pessoas, sem que elas jamais soubessem que alguém as estava assistindo. Fiz isso puramente por minha curiosidade ilimitada sobre as pessoas, e não como apenas um voyeur insano. Isso foi feito durante os últimos quinze anos; mantive um registro detalhado da maioria dos indivíduos que observei e compilei estatísticas interessantes sobre cada um, isto é, o que foi feito, o que foi dito, suas características individuais, idade e tipo de corpo, parte do país de onde vieram e seu comportamento sexual. Esses indivíduos eram de todas as classes, idades, origens. O empresário que leva sua secretária a um motel na hora do almoço, o que é em geral classificado como “almoço executivo” no ramo dos motéis. Casais que viajam de estado em estado, a negócios ou em férias. Casais que não são casados, mas moram juntos. Mulheres que traem seus maridos e vice‐versa. Lesbianismo, sobre o qual fiz um estudo pessoal devido à proximidade do motel a um hospital do Exército americano e às enfermeiras e mulheres militares que trabalhavam no hospital. Homossexualidade, pela qual eu tinha pouco interesse, mas mesmo assim observava para determinar a motivação e o procedimento. A parte final dos anos 1970 trouxe outro desvio sexual para o primeiro plano, a saber, “sexo grupal”, ao qual assisti com grande interesse.

A maioria das pessoas classifica o acima exposto como desvio sexual, mas, uma vez que esses atos são praticados tão comumente por uma parcela da população, eles deveriam ser reclassificados como interesses sexuais. Se os pesquisadores do sexo e as pessoas em geral pudessem ter a capacidade de perscrutar a vida privada das outras pessoas, ver isso praticado e realizado e verificar exatamente como é grande a porcentagem de pessoas normais que se entregam a esses supostos desvios, suas opiniões mudariam de imediato.

Vi a maioria das emoções humanas, com todo o seu humor e sua tragédia, levadas até o fim. Sexualmente, testemunhei, observei e estudei o melhor tipo de sexo em primeira mão, sem ensaio, fora do laboratório, e a maioria dos outros desvios sexuais imagináveis, nestes últimos quinze anos.

Meu principal objetivo em lhe fornecer essas informações confidenciais é a crença de que elas poderiam ser valiosas para as pessoas em geral e para os pesquisadores do sexo em particular.

Além disso, tenho vontade de contar essa história, mas não sou suficientemente talentoso e tenho medo de ser descoberto. Espera‐se que essa fonte de informações possa ser útil para acrescentar uma perspectiva adicional aos seus outros recursos no desenvolvimento de seu livro ou de livros futuros. Se essas informações não lhe são úteis, talvez você possa me colocar em contato com alguém que poderia usá‐las. Se estiver interessado em obter mais informações ou se quiser conhecer meu motel e suas operações, por favor, escreva para minha caixa postal abaixo ou me avise como posso contatá‐lo. No momento, não posso revelar minha identidade, devido a meus interesses comerciais, mas a revelarei quando puder me assegurar de que essas informações serão mantidas em total confidencialidade.

Espero receber uma resposta sua. Obrigado.


                                                                                                                                                                                  Atenciosamente,

                                                                                                                                                                                 a/c Caixa Postal 31450

                                                                                                                                                                                 Aurora, Colorado

                                                                                                                                                                                 80041


Depois de receber essa carta, deixei‐a de lado por alguns dias, sem saber como responder, ou mesmo se devia responder. Estava profundamente perturbado pela maneira como ele violara a confiança de seus clientes e invadira a privacidade deles. E, na posição de escritor de não ficção que faz questão de usar nomes verdadeiros em artigos e livros, soube de imediato que não aceitaria sua condição de anonimato, embora, tal como sugeria a carta, ele tivesse pouca escolha. Para evitar a prisão, além dos processos judiciais que o levariam provavelmente à falência, tinha de reservar para si a privacidade que negava a seus hóspedes. Um homem desse tipo poderia ser uma fonte confiável?

Ainda assim, ao reler algumas de suas frases manuscritas —“Fiz isso puramente por minha curiosidade ilimitada sobre as pessoas, e não como apenas um voyeur insano” e “mantive um registro detalhado da maioria dos indivíduos que observei” — reconheci que seus métodos de pesquisa e motivos eram semelhantes aos meus em A mulher do próximo. Eu havia, por exemplo, feito anotações particulares enquanto gerenciava casas de massagem em Nova York e ao conviver com swingers na comunidade de nudismo de Sandstone Retreat, em Los Angeles; e em meu livro de 1969 sobre o New York Times, O reino e o poder, minha frase de abertura era: “Em sua maioria, os jornalistas são incansáveis voyeurs que veem os defeitos do mundo, as imperfeições das pessoas e dos lugares”. Mas as pessoas que observei e sobre as quais escrevi haviam dado o seu consentimento.

Quando recebi essa carta, em 1980, faltavam seis meses para a publicação de A mulher do próximo, mas já se havia falado muito a respeito do livro. O New York Times publicara na edição de 9 de outubro de 1979 a notícia de que a United Artists acabara de comprar os direitos de filmagem do livro por 2,5 milhões de dólares, quantia superior ao recorde anterior, de Tubarão, cujos direitos foram vendidos por 2,15 milhões de dólares.

Um excerto de A mulher do próximo fora publicado na Esquire no início dos anos 1970, e mais tarde saíram outros trechos em dezenas de revistas e jornais. Foi meu método de pesquisa que atraiu a atenção jornalística — gerenciar casas de massagem em Nova York, avaliar o ramo do comércio sexual em pequenas e grandes cidades de todo o Meio‐Oeste, Sudoeste e Sul profundo, e também coletar dados em primeira mão como fiz ao viver como nudista durante meses no Sandstone Retreat para swingers, em Topanga Canyon, Los Angeles. Ao ser publicado, o livro logo chegou à lista dos mais vendidos do Times; permaneceu em primeiro lugar por nove semanas consecutivas e vendeu milhões de exemplares nos Estados Unidos e no exterior.

Quanto a saber se meu correspondente do Colorado era, em suas próprias palavras, “um voyeur insano” — evocativo do dono do Bates Motel em Psicose, de Alfred Hitchcock; ou do fotógrafo assassino de A tortura do medo, de Michael Powell; ou, em vez disso, um homem inofensivo de “curiosidade ilimitada”, como o fotojornalista preso à cadeira de rodas interpretado por James Stewart em Janela indiscreta, de Hitchcock; ou mesmo um simples fabulista —, eu só descobriria se aceitasse o convite do homem do Colorado para conhecê‐lo pessoalmente.

Como estava planejando ir a Phoenix no final do mês, decidi enviar‐lhe um bilhete com meu número de telefone, oferecendo‐‐me para fazer uma parada no aeroporto de Denver no meu caminho de volta a Nova York, e propus que nos encontrássemos no setor de retirada de bagagens às quatro horas da tarde de 23 de janeiro. Alguns dias mais tarde, ele deixou uma mensagem na mi‐ nha secretária eletrônica dizendo que estaria lá — e lá estava ele, emergindo da multidão de pessoas à espera e alcançando‐me quando me aproximei da esteira de bagagens.

“Bem‐vindo a Denver”, disse ele, sorrindo, enquanto segurava com a mão esquerda no ar o bilhete que eu lhe enviara.“Meu nome é Gerald Foos.”

Minha primeira impressão foi que aquele amável estranho se assemelhava a pelo menos metade dos homens com quem eu voara na classe executiva. Provavelmente em seus quarenta e poucos anos, Gerald Foos tinha pele clara, olhos castanhos, talvez 1,80 metro de altura e estava um pouco acima do peso. Usava um casaco de lã ocre desabotoado e uma camisa social de colarinho aberto que parecia pequena demais para seu pescoço grosso e musculoso. De rosto limpo, tinha cabelos pretos bem aparados e repartidos de um lado e, por trás das armações grossas de seus óculos de aros de tartaruga, projetava uma expressão invariavelmente amistosa, digna de um dono de motel.

Depois que apertamos as mãos e trocamos cortesias, enquanto aguardávamos minha bagagem, aceitei o convite para ser seu hóspede no motel por alguns dias. “Vamos colocá‐lo em um dos quartos que não me oferece privilégios de visualização”, disse ele, com um sorriso jovial.

“Tudo bem”, disse eu, “mas poderei acompanhá‐lo enquanto você observa as pessoas?”

“Sim”, disse ele. “Talvez hoje à noite. Mas só depois que Viola, minha sogra, for dormir. Ela é viúva e trabalha conosco, e fica num dos quartos do nosso apartamento atrás da recepção. Minha esposa e eu tomamos o cuidado de esconder dela o nosso segredo, e a mesma coisa vale, naturalmente, para nossos filhos. O sótão onde estão localizadas as aberturas de observação está sempre trancado. Só minha mulher e eu temos as chaves. Como mencionei em minha carta, nenhum hóspede jamais suspeitou de que estava sob observação nos últimos quinze anos.”

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