Permanente
Tá tão frio lá fora, que ela quer meter a cara
no tostex ligado. Tudo que ela quer
é chegar em casa. Ela está com 36. Ela tem 1000 anos de idade.
Ela pensa em se inscrever numa pós-graduação.
Numa cidade pra morar. Cidades bonitinhas pra uma residência permanente
dançam lustrosas diante dela, casuais como sonhos, como brasa1
saindo da casa de alguém, como a possibilidade
de se tornar uma médica, ou uma virgem, ou uma vencedora
de concurso da revista fraudulenta2, ou a mãe de alguém, ou
o amor de verdade de alguém, ou vinte anos atrás ser uma cheerleader
com pele boa, magra, mas peituda, com o anel de um boy de calourada3
enrolado no pescoço dela tipo um colar
que parece uma mão quente. Ela se sente oca,
como pele de linguiça, casca de milho, córtice cerebral4
sem neurônio, pistola de cola quente sem cola. Ela está vazia,
ela é tipo Ginger Rogers rodopiando num filme comido pelas traças
com Fred Astaire e seu braço de mentirinha e veludo. Ela quer
um cachorro, quer aprender a fazer geleias e colocá-las
em potes de geleia e colocar os potes no porão de alguém, quer sonhar
de novo com Hannibal Lecter comendo os dedos dela
na sala de jogos onde ela passou a infância,
enquanto isso no quintal Danny Devito continua
esperando ardente e ansioso por ela, seu pretendente,
seu gatinho, baixinho e adorável e quente como um velho
casaco para ser usado e tirado e pendurado
num cabide que ela conhece bem, onde ela é
calorosa numa casa calorosa na cidade onde ela escolheu morar,
quer usar a cidade como se fosse real.
Chegar aos 30 e poucos anos sem diploma, sem casamento, sem filhos e com empregos instáveis é uma das questões centrais em Wet, único livro da poeta e ex-garçonete estadunidense Carolyn Creedon. Se em How to be perfect (not you) – poema que vem logo depois deste, e que pretendemos publicar em breve aqui no Suplemento – a autora assume que a vida dela só pode ser caótica para quem considera que a sabedoria está em planejar, não em escolher, em Permanent ela ainda aceita a presença da dúvida.
Neste texto, a poeta se deixa levar pela tentação do “e se…”, escrevendo como se fosse a Fedra de Marguerite Yourcenar (aquela que “se liberta pela fuga do seu tenebroso futuro”). Como seriam as coisas se você mandasse tudo se foder e fosse morar em outra cidade, e fosse estudar, e tivesse outros hábitos, outros amantes e até mesmo outra cara?
A redenção aparece, mais uma vez, por causa da escolha – in the city of her residency/ (she) wants to wear that one city like it's true. Esse verso é perigosíssimo porque, apesar de pincelar a força que há em toda decisão (principalmente para nós que não temos nada a perder), Creedon também sabe que, assim como nenhuma cidade é real, nenhuma escolha é garantia.
1) no original, embers, que tanto pode ser brasa, como nostalgia, um tipo de lembrança que pode ser reativada no presente.
2) no original "Publisher's Clearing House", uma revista que vende assinaturas de revistas e loterias e que responde por processos de fraude em vários estados dos EUA.
3) no original "frat boy". Como no Brasil não existe a tradição das fraternidades (entidades estudantis compostas só por rapazes, geralmente esportistas e populares), procurei algo que soasse tão antipático como um frat boy e só me veio isso, meninos que organizam aquelas calouradas violentas, cheias de misoginia e música ruim.
4) no original, cortex without the neo. Córtex cerebral é a parte mais externa no cérebro, rica em neurônios; neocórtex é a parte mais desenvolvida do córtex, relacionada a processos evolutivos. Traduzi como "córtex sem neurônio", que estraga muito do jogo de palavras do verso original), mas que deixa a leitura em português brasileiro mais fluida do que se fosse "córtex sem o neo" (até porque Neo pra mim é Keanu Reeves).
PS: essa tradução é dedicada a Leo Marona, que me emprestou o livro dela ontem dizendo "Tu vai amar essa mulher". Pois acertou.