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Disponibilizamos abaixo um excerto de Paisagem de outono, que será lançado pela editora Boitempo ainda neste mês. A obra é inédita no Brasil e encerra a série Estações Havana, que gira em torno do detetive Mario Conde. A série inteira, de 4 livros, será lançada simultaneamente - os outros três livros são Passado perfeito, Máscaras Ventos de quaresma.

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Sempre que viajava de ônibus, Mario Conde fazia o possível para pegar um assento na janela. Nos tempos de estudante universitário, costumava levantar-se vinte minutos antes do necessário para abrir a fila e esperar um ônibus vazio. Sem pressa, escolhia ao acaso qualquer lado do veículo e encostava-se à parede de metal para defender o privilégio da janela. Ali, afastado do corredor, tinha as vantagens concretas de evitar que lhe roçassem no ombro com órgãos pouco agradáveis, que lhe pisassem no pé ou que o martirizassem com alguma sacola. Mas havia outros dois privilégios muito mais valiosos, que ele costumava alternar segundo a necessidade, o estado de espírito e o interesse: ou lia durante os trinta e cinco minutos do trajeto do bairro até a parada mais próxima da faculdade (isso ele só fazia em dias de prova ou quando tinha um livro que o merecesse), ou se dedicava (como preferia) a estudar os edifícios que o ônibus encontrava no percurso, desfrutando a descoberta daquela outra cidade existente nos segundos e terceiros andares das antigas calzadas de Jesús del Monte e de Infanta, ocultas para quem não estivesse disposto a erguer os olhos para suas alturas corrediças. Aquele costume Conde adquirira do amigo Andrés – que, por sua vez, o aprendera com a bela Cristina, aquele ser sensual por quem todos eles tinham se apaixonado – e chegou a lhe ser tão necessário e orgânico que, quando olhava os edifícios, costumava sentir como seu físico e sua mente dividiam os respectivos átomos mais intrincados, para que uma parte de seu eu se elevasse do assento e flutuasse a vários metros do chão escuro e ensebado da rua, penetrando em mistérios esquecidos, em histórias remotas, em sonhos perdidos atrás das paredes daqueles lugares com que ele dialogava, como se fossem outras almas penadas, libertas também de sua matéria lastradora e perecível. Assim descobrira as mais belas e ousadas sacadas da cidade, frontões esculpidos com os motivos mais extravagantes, beirais bordados com guarnições de bolo de casamento, grades entre as sacadas com ferros tecidos por ourives militantes em todos os barroquismos, e também descobrira que uma morte cada vez mais próxima espreitava todas aquelas maravilhas centenárias de ferro, cimento, gesso e madeira capazes de dar uma cara melhor a ruas sujas de negligências já históricas, poeiras petrificadas e desleixos imemoriais, onde os vizinhos se apinhavam em casas de soleira e dignidade perdidas, degradadas pela necessidade a cortiços órfãos de água, com banheiros coletivos e promiscuidades hereditárias. E, embora soubesse que da altura do automóvel a fruição não é igual à do pódio da janela do ônibus, mais propício a liberações espirituais, naquela tarde Conde pediu ao sargento Manuel Palacios dois favores, pelos quais lhe seria grato o resto da vida: primeiro, que não falasse; segundo, que dirigisse a trinta quilômetros por hora. Só queria silêncio e velocidades humanas para observar outra vez aquelas paisagens esquivas, mas que ele já conhecia e de que até gostava, enquanto se sentia abrasado pelo temor de que talvez aquele pudesse ser seu último encontro com a arquitetura mais ignorada e maltratada da cidade onde nascera: o lúgubre furacão que ao meio- -dia já avançava para o sul de La Española, depois de abater a diminuta Guadalupe – arrancando até algumas das árvores que Victor Hugues em pessoa mandara plantar quase dois séculos antes naquela Place de la Victoire dos ideais revolucionários –, esse mesmo ciclone sacana podia entrar em poucos dias por aquelas ruas e demolir a beleza decrépita dos segundos e terceiros andares, que só ele – estava convencido – observava agora, pensando em seu lamentável e seguro falecimento, preparado pelos anos e pelo abandono. Qual podia ser o destino daquela cidade senão essa morte violenta, forjada pela prolongada agonia do esquecimento? Ou também morreria castrada, nova Atlântida afundada no mar por um pecado imperdoável, apesar de ainda desconhecido? À merda, disse ele nas profundezas tétricas de sua refl exão: dá na mesma o modo como se morre, se no fi m todos vamos morrer. Até você vai morrer. E, para acelerar o trâmite, acendeu outro cigarro e fumou com a avidez de um condenado que realiza sua derradeira vontade.

Quando voltou à Central e disse ao coronel Molina “Aceito o caso”, seu novo chefe aplaudiu satisfeito e atendeu a outra exigência: o sargento Palacios podia trabalhar com ele. Mas foi aí que o coronel começou a enumerar suas condições: tinha no máximo três dias para resolver o mistério da morte castrada de Miguel Forcade; precisava agir com a maior discrição, pois já conhecia as implicações políticas de um assunto que era um manjar branco para a imprensa internacional, sempre empenhada em desacreditar o governo; queria que ele lhe desse informes, pessoalmente, duas vezes por dia – embora pudesse falar quanto quisesse com o major Rangel –, pois ele precisava ligar todas as tardes para Alguém que, por sua vez, precisava ligar para outro Alguém encarregado pelo Ministério das Relações Exteriores de falar com o cônsul norte-americano e dizer-lhe como iam as investigações; e devia procurar ser o mais ortodoxo possível em seus métodos, embora tivesse carta branca para fazer o que fosse necessário: tudo com a condição de nos três dias previstos chegar à verdade, fosse qual fosse a verdade. Pois aquela história podia se transformar em outro escândalo internacional, que seria aproveitado pela imprensa marrom, reforçou o coronel, obcecado com os meios de comunicação e seu cromatismo, e o único modo de evitar isso era entregando a verdade. E repetiu sua orgânica saudação militar.

Agora, em frente ao casarão do Vedado, de onde saíra para um destino imprevisto e para onde voltara, onze anos depois, o já norte- -americano e agora defunto Miguel Forcade, Mario Conde se perguntava que preço poderia ter a descoberta daquela verdade exigida pelo chefe... Para começar, por que o mataram como se fosse um animal, Miguel Forcade?

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