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O excerto abaixo pertence ao livro Marx e Engels como historiadores da literatura, de György Lukács, recentemente lançado pela editora Boitempo. A obra apresenta diferentes facetas do trabalho dos dois filósofos, focando em sua relação com os estudos literários. A tradução é de Nélio Schneider. 

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A partir da cooperação com Marx em Paris e Bruxelas, Engels passa a mover‑se com clareza inabalável pela via do materialismo dialético. Ele participa ativamente da grande discussão de Marx com os jovens hegelianos radicais, com Feuerbach, com o “verdadeiro socialismo”. Nesses debates, que ao mesmo tempo representam a formulação literária inicial do materialismo dialético e nos quais é fixada pela primeira vez a linha política do proletariado e de seu partido na futura revolução burguesa alemã, Engels assume o combate à teoria e à práxis literárias do “verdadeiro socialismo”.

A linha política básica dessa discussão torna‑se conhecida de todos na parte crítica do Manifesto Comunista. No seu idealismo vazio a debulhar fraseologias, os “socialistas verdadeiros” queriam saltar a revolução burguesa. Eles dirigiram seus ataques unilateral e exclusivamente contra a burguesia liberal e, desse modo, acorreram em socorro dos governos absolutistas, dos padres e dos fidalgos rurais. O “socialismo verdadeiro”, diz, com razão, o Manifesto Comunista, “foi o complemento adocicado das amargas chibatadas e dos tiros de fuzil com que os mesmos governos tratavam os levantes dos trabalhadores alemães”. O objetivo não confessado, mas real, do “socialismo verdadeiro” era a manutenção da pequena burguesia retrógrada alemã. Mas Marx e Engels dizem que “sua manutenção é a manutenção das condições vigentes na Alemanha. A supremacia industrial e política da burguesia faz com que a pequena burguesia tema a destruição certa, por um lado, em consequência da concentração do capital, por outro lado, pelo despontar de um proletariado revolucionário”.

A censura a essa mediocridade pretensiosa e hipócrita constitui o centro da campanha critico‑literaria de Engels contra o “socialismo verdadeiro”. Marx já havia combatido Eugène Sue nessa mesma linha em A sagrada família, ridicularizando‑o impiedosamente por seu utopismo pequeno‑burgues reacionário, por difamar o proletariado, por conferir ao trabalhador a forma do “pauvre honteux” [pobre infame]. O insuficiente desenvolvimento da classe revolucionária, diz Marx em A miséria da filosofia, reflete ‑se nas cabeças dos ideólogos de tal maneira que “veem na miséria apenas a miséria, sem nela verem o lado revolucionário, subversivo, que derrubará a sociedade antiga”. O atraso capitalista da Alemanha em comparação com a Inglaterra e a França tornava o embate mais acirrado com a ideologia do atraso pequeno‑burguês uma necessidade política premente, uma tarefa incondicionalmente essencial também no campo da literatura, visando à preparação do proletariado para a futura revolução burguesa.

Sob tais circunstâncias, é compreensível que a polêmica de Engels com a literatura do “socialismo verdadeiro” tenha se voltado em primeiro lugar contra essa ideologia pequeno‑burguesa de fazer miserável [Miserabel‑Machens] o trabalhador. Em termos ideológicos, trata‑se da questão do enredamento em preconceitos burgueses, mas a posição ideológica diferenciada em relação a tais preconceitos tem amplas consequências para o método criativo. Engels compara Heine com um dos mais famosos poetas do “socialismo verdadeiro”, Karl Beck:

Em Heine, os devaneios do burguês são intencionalmente alçados às alturas para, em seguida, serem largados, de modo igualmente proposital, dentro da realidade; em Beck, o próprio poeta se associa a essas fantasias e, naturalmente, também arca com o prejuízo quando despenca na realidade. No primeiro caso, o burguês fica indignado com o atrevimento do poeta; no segundo, é tranquilizado por sua afinidade com a alma dele.

Para os poetas do “socialismo verdadeiro”, a consequência do enredamento em preconceitos burgueses e da incapacidade de discernir a estrutura da sociedade burguesa é que eles idealizam o capitalismo como um poder demoníaco irresistível e desconsideram completamente o papel revolucionário do proletariado. “Beck decanta a pusilânime miséria pequeno‑burguesa, o ‘homem pobre’, o pauvre honteux [pobre infame] com seus ínfimos desejos piedosos e inconsequentes, o ‘homem humilde’ em todas as suas formas, e não o proletário altivo, ameaçador e revolucionário.” Esse trabalhador que o poeta transformou em miserável é confrontado com o capitalista idealizado. A poesia de Beck, a cuja crítica acabamos de nos referir, trata da Casa dos Rothschild. Ele inventa para essa família a missão de “aliviar todo o sofrimento do mundo” e a critica por não cumprir essa incumbência.

O poeta não ameaça aniquilar o poder real dos Rothschild, as condições sociais em que se baseia; ele deseja somente sua aplicação filantrópica. Lamuria‑se porque os banqueiros não são filantropos socialistas, nem sonhadores, nem promotores da felicidade das pessoas, mas são apenas banqueiros.

Beck confronta o “mau” capitalista Rothschild com o “bom” capitalista Laffitte. Portanto, em vez de promover uma crítica revolucionária real do capitalismo, o autor faz uma apoteose dos “lados bons” do capitalismo e se lastima nostálgica e covardemente de seus “aspectos ruins”; ele “deseja” que essa sociedade continue a existir sem as condições de sua existência.

De tal capitulação lamurienta diante da ideologia burguesa decorre que, na poesia do “socialismo verdadeiro”, o capitalismo apareça como um poder “eterno” e insuperável. Outro famoso poeta do “socialismo verdadeiro”, Alfred Meißner, também fornece imagens extraídas da miséria do proletariado, mas resume sua opinião sobre o destino proletário da seguinte maneira: “O que o Criador fez mal,/ o homem jamais endireitará”.

A causa dessa lamentável capitulação, dessa fuga covarde diante de toda a luta por parte dos poetas do “socialismo verdadeiro” consiste também no fato de eles serem apologistas da pequena propriedade condenada à morte pelo desenvolvimento capitalista, do deplorável “meu próprio fogão” dos trabalhadores ainda pequeno‑burgueses. (Na controvérsia política de Marx e Engels com o feuerbachiano Kriege, essa questão tem um papel decisivo.)

No entanto, os poetas do “socialismo verdadeiro” imaginam ser revolucionários; eles sonham ininterruptamente com a revolução. Trata‑se, porém, de sonhos vazios, abstratos, pequeno‑burgueses. Na sua crítica a Alfred Meißner, Engels chama o personagem Karl Moor, de Schiller, de o primeiro “socialista verdadeiro”. Mas os “socialistas verdadeiros” superam em muito o jovem Schiller em termos de abstração, vacuidade e ambiguidade da concepção revolucionária. A partir desse ponto de vista, Engels submete a poesia “Wie man’s macht” [Como se faz], de Freiligrath, a uma crítica aniquiladora. O poeta escreve que o povo faminto vai até o arsenal e, “por pura diversão”, mune‑se de uniformes, armas e sai a campo. Eles encontram o Exército, “o general manda abrir fogo, mas os soldados se jogam, jubilosos, nos braços da milícia em trajes cômicos”. O grupo segue para a cidade e, sem encontrar resistência, a revolução obtém a vitória. Concluindo, Engels diz: “É preciso admitir que em lugar nenhum fazem‑se revoluções de maneira tão divertida e descontraída quanto na cabeça do nosso Freiligrath”.

Até os dias de hoje, essa crítica extraordinariamente relevante e fundamentalmente significativa feita por Engels não chegou ao conhecimento do público proletário. Mehring não recolheu os ensaios engelsianos em sua edição póstuma. Ele os avalia como ultrapassados e, em parte, até como falsos. Diz que Marx e Engels “permitiram que seu juízo econômico e político exercesse influência desmedida sobre seu gosto estético”. É significativo que mesmo um representante tão importante da ala esquerda da Segunda Internacional quanto Franz Mehring não tenha reconhecido o significado dessas análises. Em primeiro lugar, ele não entendeu que a crítica da mediocridade pequeno‑burguesa continuou sendo uma tarefa essencial da crítica literária proletária também na sua época e que os escritos de Engels constituem um modelo ainda não superado para todo o trabalho atual nesse campo. Em segundo lugar, não percebeu que, para Engels, a crítica econômica e política do conteúdo artificial dessa poesia está intimamente ligada à crítica da necessária pobreza e mediocridade de suas formas literárias. Este é o caso na censura a Freiligrath, na qual Engels elucida muito bem como da concepção “cômoda” da revolução resulta um ritmo “cômodo” (e, portanto, totalmente falso no plano artístico) das poesias. Mas sua análise vai muito além dessas corretas observações isoladas sobre a crítica da forma. Engels examina os pressupostos ideológicos de princípio de um grande realismo revolucionário e revela com nitidez impiedosa os erros ideológicos desses poetas, em parte talentosos, que os tornam incapazes de uma poesia revolucionária e realista de fato significativa. Ele mostra, por exemplo, que Karl Beck não consegue narrar uma história corretamente.

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