Há pouco tempo, Ricardo Domeneck veio com edição ampliada de Cigarros na cama (Luna Parque), um livro de poemas no qual um eu lírico lida (remoendo talvez seja uma palavra mais exata) com uma relação que já acabou, mas que continua viva dentro de si. Pois bem: na mesma linha de Cigarros..., Domeneck também acaba de lançar Manual para melodrama (7 Letras).
Manual para melodrama é a primeira publicação do autor na prosa de ficção. Ele diz, em postagem no Facebook, que se trata de um livro de "auto-estorvo". De fato, é uma ideia que se pode pensar quando vemos alguém tramando e remoendo um outro que parte. Na foto acima, a poeta, tradutora e fotógrafa Adelaide Ivánova, a quem o livro é dedicado.
Abaixo está uma das instruções de Manual sobre como reagir a abandonos.
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Como reagir ao ser abandonado e substituído
I: Método Medeico
As técnicas de sobrevivência ao abandono são milenares, e podem ser abordadas com diferentes métodos. Iniciemos a lição com um dos mais antigos: o Método medéico, em homenagem a sua patroa. Método eroapocalíptico seria também apropriado, e outros têm se multiplicado ao longo dos tempos e ao largo das geografias. Para ilustrações, daremos aqui o arquétipo jamais caquético: Medeia, ex-princesa, bruxa exilada e mãe, mundialmente conhecida pela peça de Eurípides, produzida em 439 a.C.. A personagem aparece já em Hesíodo e, mais tarde, em textos de Píndaro e Ovídio. Sua tragédia foi retrabalhada e encenada por muitos. Entre os trabalhos do século passado, recomendamos com entusiasmo o filme Medeia (1969), de Pier Paolo Pasolini e com Maria Callas no papel principal; a peça Medeamaterial (1982), de Heiner Müller; e o filme de Lars Von Trier, Medea, com roteiro de Carl Theodor Dreyer e a atriz Kirsten Olesen no papel principal, em produção de 1988.
I – Método Medeico.
§ - Se o seu mundo caiu, que não sobre ao redor pedra sobre pedra.
§ - Dor só é dor se não for só de si.
§ - Sempre disseram-lhe que é melhor servida fria. Prefira a temperatura do sol.
§ - Destruí-lo por completo, triturar aquele que a abandonou e substituiu, aspergir seu pó pelos quatro ventos, como se os quatro ventos viajassem em cruzeiro às oito quinas da Terra.
§ - Contemple a nova com os olhos que somente uma viúva em sua velhice dedicaria a uma noiva.
§ - Que sua substituta queime e arda no tule, zibelina, tafetá, cetim, renda e musselina que um dia contornaram as curvas do seu corpo envelhecido.
§ - "Ah!", grite enquanto esmurra o espelho, "que glaucoma coma esta Gláucia!"
§ - Resignação traz alívio somente se fingida para melhor planejar a vingança.
§ - Descabele a suplente, deseje que caia sua pele em escamas, imagine para ela as mortes mais escabrosas, e você mais tarde no velório, gargalhando, vestida de vermelho.
§ - Puna-se a si e a ele com a pior sentença, a máxima, destrua-se junto, agarre-se a seu peito enquanto o empurra para dentro do vulcão desperto.
§ - Não a última palavra, quem se importa com a última palavra?, que seja seu o último esgar de dor enquanto solta e desprende os cabelos, batendo-os ao vento do novo exílio.
§ - Pompeia pouca é bobagem.
§ - Aceitar-se como sobressalente já é arrancar-se os ovários, fazer-se estéril como o futuro sem ele.
§ - Que no galho mais alto balance pelo pescoço a herança em conjunto, sua conta corrente, os saques do seu útero.
§ - Desnaturada, ah!, desnaturada é seu segundo nome.
§ - Comece com o adjetivo "ingrato", siga por "traidor", termine com "perdedor". Para isso, vença.
§ - Use a frase clássica apenas uma vez e somente para si: "Farei com que ele se arrependa nem que seja a última coisa que eu faça!"
§ - Não ameace. Conspire.
§ - Manuais de coup d´état ou putsch não a ajudarão; tomar o poder já não é opção, você quer agora a extinção do Estado.
§ - Faça-o lembrar-se deles, jogue-lhe na cara todos os seus sacrifícios, exija a indenização de seu ego, esgoele: "Ressarça-me, Jasão, ressarça-me!"
§ - Aos amigos impertinentes, cite entre dentes cerrados, mandíbulas mordendo a si de raiva na ira: "What´s wrong with self-pity anyway?"
§ - Pense em orações como: "Tu foste meu Tyrannosaurus Rex, eu serei teu meteoro."
§ - Você não tem amigos, você tem cúmplices.
§ - Nunca chore diante deles, nem por eles, chore por si, por si, tão-somente por si, irremediavelmente por si. Chame-se a si mesma de "Eu, a irremediável".
§ - Tenha pronto o barco para a fuga, estrangere-se mais uma vez, desta vez por si, não pelo homem de quem você acaba de espargir o reino ao vento.
§ - Que o exílio sinta o último hálito que você venha a exalar.
§ - Saiba que este processo não se repete pois sua alma morre ao fim, como se você fosse uma abelha sociopata, dona de um único ferrão. E este ferrão tudo custa a você.