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O trecho a seguir é o início de Lixo verdadeiro, conto que abre o livro Dicas da imensidão, da escritora canadense Margaret Atwood (foto), que a Rocco lançará no Brasil em breve. A tradução é de Ana Deiró.

 

***

 

Lixo verdadeiro

As garçonetes se aquecem ao sol como um rebanho de focas esfoladas, os corpos morenos rosados reluzem de óleo. Vestem seus trajes de banho porque é o meio da tarde. Bem cedinho, ao amanhecer, e na hora do crepúsculo, elas às vezes se banham nuas, o que faz com que valha muito mais a pena esse ficar agachado incômodo em meio aos arbustos infestados de mosquitos, defronte ao pequeno píer particular delas.

Donny está com os binóculos, que não são dele, e sim de Monty. O pai de Monty os deu a ele para observar pássaros, mas Monty não está interessado em pássaros. Encontrou melhor utilidade para os binóculos: ele os aluga para os outros garotos, por cinco minutos no máximo, cinquenta centavos por uma olhada ou mesmo uma barra de chocolate da cantina, embora prefira o dinheiro. Monty não come as barras de chocolate; ele as revende no mercado negro, por duas vezes o preço original; como é um artigo escasso na ilha, ele se dá bem.

Donny já viu tudo que vale a pena ver, mas, mesmo assim, se demora com os binóculos, apesar dos sussurros roufenhos e dos cutucões dos que vêm logo depois dele na fila. Ele quer fazer render seu dinheiro.

– Olhe só para aquilo – diz, numa voz que pretende ser torturante para quem espera. – De babar, de babar. – Há um galho que espeta seu estômago, bem em cima de uma mordida de mosquito recente, mas ele não pode afastá-lo sem tirar uma das mãos dos binóculos. Sabe muito bem o que são ataques pelo flanco.

– Deixa eu ver – pede Ritchie, puxando-o pelo cotovelo.

– Cai fora – retruca Donny.

Ele vira os binóculos, focaliza um quadril nu escorregadio, um seio com poás vermelhos, uma mecha longa de cabelos louros oxigenados: Ronette, a mais gostosona, Ronette, a mais proibida, quando há sermões feitos pelos mestres na St. Jude’s durante o inverno, sobre os perigos de se andar com as garotas da cidade, são aquelas do tipo de Ronette que eles têm em mente: as que ficam na fila no único cinema da cidade, mascam chicletes e vestem as jaquetas de couro dos namorados, as bocas ruminantes reluzem a vermelho-escuro, como framboesas amassadas. Se você assoviar para elas, ou mesmo olhar, elas simplesmente o fulminam com os olhos.

Ronette tem tudo, menos aquela encarada. Ao contrário das outras, já houve ocasiões em que sorriu. Todo dia, Donny e seus amigos apostam se ela atenderá a mesa deles. Quando ela se debruça para retirar os pratos, eles tentam olhar para dentro do discreto decote em V do uniforme. Eles se inclinam para respirar o odor dela: tem cheiro de spray de cabelo, esmalte para unhas, de alguma coisa artificial e doce demais. Vagabunda, diria a mãe de Donny. É uma palavra sedutora. A maioria das coisas na vida é cara e não muito interessante.

Ronette muda de posição no píer. Agora está deitada de bruços, com o queixo apoiado nas mãos, os seios pendurados, puxados pela gravidade. Ela tem um colo de verdade, não como algumas das outras, mas ele consegue ver as saboneteiras e algumas de suas costelas, acima da calcinha do biquíni. Apesar dos seios fartos, ela é magra, quase esquelética; tem braços finos como gravetos e um rosto chupado. Falta-lhe um dente lateral, vê-se o buraco quando ela sorri, e isso o incomoda. Ele sabe que deve ter tesão por ela, mas não é o que sente.

As garçonetes sabem que são observadas: veem que os arbustos se movem. Os garotos têm apenas 12 ou 13 anos, 14, no máximo, uns moleques. Se fossem monitores, elas dariam mais risadinhas, se mostrariam mais, arqueariam as costas. Ou algumas fariam isso. Como são garotos, elas aproveitam a folga da tarde como se não houvesse alguém ali. Passam óleo nas costas umas das outras, queimam-se por igual, viram-se preguiçosamente ora para cá, ora para lá, e fazem com que Ritchie, que agora está com os binóculos, gema de uma maneira que deve deixar os outros garotos fulos de raiva, e deixa. Ritchie leva pequenos murros, acompanhados por resmungos de “babaca” e “cretino”.

– Babem, babem – retruca Ritchie, e sorri de orelha a orelha.

As garçonetes leem em voz alta. Elas se revezam: as vozes flutuam sobre a água, pontuadas por fungadelas e gargalhadas ocasionais. Donny gostaria de saber o que estão lendo com tamanha absorção, tanto prazer, mas seria perigoso para ele admitir isso. É o corpo delas que conta. Quem se importa com o que leem?

– Seu tempo acabou, bundão – cochicha para Ritchie.

– Bundão é você – ele retruca. E os arbustos balançam.

***

O que as garçonetes estão lendo é uma revista Romance Verdadeiro. Tricia tem uma porção delas guardadas debaixo do colchão, e Sandy e Pat contribuíram com mais duas. Todas aquelas revistas têm uma mulher na capa, com o vestido arriado em um dos ombros, um cigarro na boca ou alguma outra indicação de uma vida desregrada. Geralmente essas mulheres estão em lágrimas. Suas cores são estranhas: desbotadas, sujas, como fotografias coloridas a mão nos anos 1960. Cores secundárias comuns. Nada têm da vibração e da clareza das primárias, dos sorrisos de dentes brancos das revistas de cinema. Não são histórias de sucesso, Lixo Verdadeiro, é como Hilary as chama. Joanne as chama de Dramas de Geme-Geme.

No momento é Joanne quem lê, numa voz séria, histriônica, como uma locutora de rádio. Joanne já participou de uma peça na escola, Nossa cidade, de Thornton Wilder. Está com os óculos na ponta do nariz, como uma professora. Para provocar mais risadas, acrescentou um sotaque inglês falso.

A história é sobre uma garota que mora com a mãe divorciada em um apartamento apertado e velho em cima de uma sapataria. O nome dela é Marleen. Ela tem um emprego de meio expediente na sapataria, depois da escola e aos sábados, e dois dos vendedores de sapatos estão dando em cima dela. Um deles é sério e chato e quer que eles se casem. O outro rapaz, cujo nome é Dirk, tem uma motocicleta e um sorriso audacioso e insinuante que transforma os joelhos de Marleen em gelatina. A mãe se mata de trabalhar na máquina de costura para dar a Marleen um bom guarda-roupa – ela ganha a vida mal e mal, um dinheirinho muito suado, costura para senhoras ricas que a desprezam, de modo que as roupas de Marleen são bem bonitas – e enche a paciência de Marleen com sermões sobre escolher o homem certo e não cometer um erro terrível, como o que ela cometeu. A garota pretende ir para uma escola profissionalizante e estudar administração hospitalar, mas a falta de dinheiro torna isso impossível. Ela está no último ano do ensino médio e suas notas andam caindo, porque se sente desestimulada e também porque não consegue escolher entre os dois vendedores. Agora a mãe também ralha com ela por causa das notas baixas.

– Ah, meu Deus – diz Hilary. Ela está fazendo as unhas com uma lixa de metal em vez de uma comum de madeira. Hilary não aprova lixas de madeira. – Por favor, alguém dê a ela um uísque duplo.

– Talvez ela deva assassinar a mãe, receber o dinheiro do seguro e tratar de dar o fora dali – propõe Sandy.

– Você ouviu alguma palavra a respeito de um seguro? – pergunta Joanne, espiando por cima dos óculos.

– Você poderia incluir algumas – responde Sandy.

– Talvez ela devesse experimentar com os dois, para ver qual é o melhor – Liz sugere, atrevidamente.

– Nós sabemos qual dos dois é melhor – afirma Tricia. – Veja só, com um nome como Dirk! Como pode ter dúvida?

– Os dois são nojentos – responde Stephanie.

– Se ela fizer isso, vai ser uma Mulher Caída, com M e com C maiúsculos – lembra Joanne. – Ela teria de se Arrepender, com A maiúsculo.

As outras gritam e caem na gargalhada. Arrependimento! As garotas nas histórias fazem papéis tão idiotas... São tão fracas... Elas se apaixonam perdidamente pelos homens errados, cedem aos desejos deles, são abandonadas. Então choram.

– Esperem – diz Joanne. – Agora vem a grande noite. – Ela continua a ler, em tom esbaforido. – Minha mãe tinha saído para ir entregar um vestido de coquetel a uma de suas clientes. Eu estava sozinha em nosso apartamento modesto.

– Ofegue, ofegue – diz Liz.

– Não, isso vem depois. Eu estava sozinha em nosso apartamento modesto. A noite estava quente e abafada. Eu sabia que deveria estudar, mas não conseguia me concentrar. Tomei uma chuveirada para refrescar. Então, num impulso, decidi experimentar o vestido de baile para a formatura em que minha mãe passara tantas noites trabalhando.

– Isso mesmo, se afogue na culpa – sugere Hilary, com satisfação. – Se fosse eu, daria uma machadada na mãe.

Era um sonho de tecido cor-de-rosa...

– Um sonho de o que rosa? – pergunta Tricia.

– Um sonho de tecido cor-de-rosa, ponto parágrafo, e cale a boca. Eu me olhei no espelho de corpo inteiro no quartinho de mamãe. Era o vestido certo para mim. Caía com perfeição em meu corpo generoso, mas esguio. Eu parecia diferente com aquele vestido, mais velha, bonita, como uma garota habituada com todo tipo de luxos. Como uma princesa. Sorri para mim mesma. Estava transformada.

Eu acabara de abrir os colchetes nas costas, com a intenção de tirar o vestido e pendurá-lo de novo, quando ouvi o som de passadas na escada. Tarde demais, me lembrei de que tinha me esquecido de trancar a porta por dentro, depois que minha mãe saiu. Corri para a porta, segurando o vestido – podia ser um ladrão, ou pior! Mas era Dirk.

– Dirk, o babaca – diz Alex, lá debaixo da sua toalha.

– É melhor dormir de novo – responde Liz.

Joanne baixa a voz, fala em tom arrastado.

“Pensei em subir e vir te fazer companhia”, diz ele em tom malicioso. “Vi sua mãe sair.” Ele sabia que eu estava sozinha! Enrubesci e comecei a tremer. Eu podia ouvir o sangue latejando em minhas veias. Não conseguia falar. Todos os meus instintos me diziam para não confiar nele – todos os instintos, menos os do meu corpo e do meu coração.

– E de onde mais seriam? – pergunta Sandy. – Não se podem ter instintos mentais.

– Você quer ler isto? – pergunta Joanne. – Então fique calada. Segurei as dobras de renda cor-de-rosa na minha frente como se fossem um escudo. “Puxa, mas você está linda nesta roupa”, disse Dirk. A voz dele soou áspera e terna. “Mas ficaria ainda mais linda sem ela.” Senti medo dele. Seus olhos estavam ardentes, determinados. Ele parecia um animal rondando a presa.

– Está ficando quente – diz Hilary.

– Que tipo de animal? – pergunta Sandy.

– Uma fuinha – responde Stephanie.

– Um gambá – retruca Tricia.

– Psiu – Liz fala.

Recuei me afastando dele – lê Joanne. – Nunca o tinha visto com aquela expressão antes. Agora eu estava encostada contra a parede e ele estava me esmagando em seus braços. Senti o vestido escorregar e cair...

– Não adiantou nada toda aquela costura – brinca Pat.

– ... e a mão dele cobriu meu seio, a boca ávida procurando a minha. Eu sabia que ele era o homem errado para mim, mas não podia mais resistir. Meu corpo inteiro estava gritando pelo dele.

– O que o corpo dela dizia?

– Dizia: Ei, corpo, aqui!

Psiu.

Eu me senti ser levantada. Ele estava me carregando para o sofá. Então senti todo o comprimento do corpo rijo e esguio dele se pressionando contra o meu. Debilmente tentei afastar as mãos dele, mas, na verdade, não queria isso. E então – ponto, ponto, ponto – nos fundimos em Um, com U maiúsculo, ponto de exclamação.

Há um momento de silêncio. Então as garçonetes caem na gargalhada. Suas risadas são revoltadas, incrédulas. Um. Assim, só isso. Tem de haver mais do que isso.

– O vestido fica destruído – diz Joanne em sua voz normal. – Então a mãe chega em casa.

– Não, hoje não chega, não – diz Hilary rapidamente. – Temos apenas mais dez minutos. Vou dar uma nadada, tirar um pouco deste óleo do corpo. – Ela se levanta, prende o cabelo louro mel, alonga o corpo bronzeado de músculos bem trabalhados e dá um mergulho de cabeça perfeito da ponta do píer.

– Quem está com o sabonete? – pergunta Stephanie.

Ronette não disse nem uma palavra durante a história. Enquanto as outras gargalhavam, ela apenas sorriu. Agora, continua sorrindo. É um sorriso enviesado, desconcertado, um tanto defensivo.

– Certo, mas – diz ela para Joanne –, por que isso é engraçado?

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