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O conto abaixo, Flare, integra o livro Palavras são para comer, da escritora Myriam Campello. A obra será publicada pela editora Oito e meio, em cuja sede (Travessa dos Tamoios, 32 C, Rio Janeiro) será lançada a obra, no dia 23 de março.

 

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E daí se ela gosta de mulher? todos têm seu lado secreto, um lugar para onde o coração pende e nem farol devassa, mas o ser humano adora cagar regulamentos, desde o início buzinavam na minha orelha não entra nessa, é lance perdido, mas eu ia logo abrindo um desagrado na cara, a bandeira pirata tremulando tanto que o amigo em questão recolhia uma a uma as moedinhas do conselho e murchava ali, até hoje sei que cumpri bem o meu papel, tem besteira maior do que um discurso de começo e fim para alguém emaranhado na paixão? o apaixonado é um marciano à deriva solto na Terra, vive à custa do ar que o ser amado lhe sopra, os outros são um estorvo a esse transe, mas eu não deixava passar o que ouvia sem retrucar na lata, E as pessoas não mudam? me apontem quem é o mesmo de quinze anos atrás, não tem um, porque se fosse assim adeus evolução, a gente ainda se arrastava entre o mar e a terra como as lesmas do princípio, mas o que eu não dizia nem sob tortura é que confiava no meu taco, embora saiba agora que nesse ponto Deus deve ter rido de mim, uma gargalhada de bêbado trovejando nos vales, arrogância se paga com o dia seguinte e não deu outra, a escuridão que me calou por dentro perde só para a dos cegos mas não fica tão longe, a alma escura, como diz Santa Tereza, é só dor, li isso quando estava embarcado como engenheiro na P-36, porque ali é o reino do nada fora petróleo e o mar travando o infinito, o tempo lá faz poça, então eu li como um desesperado, filosofia, Dante, os místicos, e cheguei mesmo a procurar o segredo de Helena entre as moças do Marcel Proust, mas com a mesma chance de entender a mecânica daquele mistério quanto um perneta de vencer a maratona nas Olimpíadas, a verdade é que a gente sempre segura o amor pelo lado errado, o milagre real foi ela gostar de mim por tanto tempo, isso não tem um que repare, ninguém valoriza, só se nota a vaca atolando no brejo, ponto, o indivíduo é reclamão por natureza e esmaga os momentos bons quando a desgraça surge de chapéu na mão, na cobrança, por acaso Deus quando assinou contrato falou num mar de rosas? tinha essa cláusula no papel? porque se tinha eu não vi, e mesmo no esplendor daquele ano a tortura eram os dias no mar, com cento e cinquenta quilômetros me cortando de Helena e seus desejos quem ficava à deriva era eu, quando à noite via o flare da outra plataforma lá longe, a tocha da combustão de óleo espancada pelo vento, sem rumo, que eu associava ao meu destino com Helena, "Só corno tem medo de embarcar", dizia um colega sobre a nossa ilhota pregada no oceano, com o mar a gente se acostuma, claro, mas a descida do helicóptero entre vento e abismo dançantes forrava todos de angústia, desfigurados, com o tempo ruim então era uma festa, vi um sujeito despencar lá em baixo e ser comido pela correnteza sem sobrar um relógio para dar à família, fora isso é o monstro lá e nós cá, nenhuma intimidade, a natureza do mar é não ter amigos, ele rosna para tudo, uma desproporção tão grande que a gente acaba esquecendo, é como a morte zumbindo atrás de nós, alguém deixa de respirar porque vai morrer um dia? então após doze horas de batente eu ia para a amurada na obscuritudine, palavra latina que aprendi com os místicos, engraçado esse negócio de luz e sombra, na Divina Comédia Dante caminha em direção à luz que é Deus, e esse caminho é bem melhor do que o contrário, andar em direção à sombra, que é o que todos fazem no amor, porque o começo é sempre uma armadilha de rosas, além de um tropeção no destino, fui apresentado à Helena no vernissage a que uma amiga me arrastou, e parei ali intrigado por seus olhos, talvez porque ela risse da minha profissão como de uma boa piada, um riso quente e franco, no seu meio era mais fácil encontrar a Quimera em pessoa do que um engenheiro dando turnos numa plataforma de petróleo, isso deve ter fisgado sua curiosidade nômade, toda aquela rente solidão em torno de mim, Helena era dez vezes uma incógnita, e seu riso me ofuscou, então cerquei a fortaleza com a calma de um futuro amante, levei tempo, engoli todas as claras condições, ela não me mentiu, e saímos afinal para um cinema chuvoso, depois uma tarde no Jardim Botânico, outros passeios, programas que eu não fazia nunca, e fui dizendo amém, invadindo como quem não quer nada o campo misterioso de Helena até ouvi-la murmurar um dia, Acho que me apaixonei por você, e eu burro de pai e mãe, em vez de ouvir aquele acho registrei mesmo o foguetório do sim, a gente só escuta o que alisa nossas plumas, a sobra é levada pelas ondas, então fomos morar na mesma casa num choque total para os amigos, mas quando Helena decide é palavra de rei, esmaga hesitações como um tanque último tipo, entrega a própria vida em bandeja de ouro e te deixa inteiro dono do pedaço, sultãozérrimo, daí que arrebenta a escala Richter das desgraças quando a coisa vira pó, quando tudo se transforma em fiapos de uma grande queda soltos no ar, mas como fugir de quem desenrola para você o tapete do mundo? ela é como Carmen, uma mulher fatal, dá a quem ama o que ninguém deu mas com um puxão toma tudo de volta, fatal quer dizer funesto, sempre temi que a existência anterior de Helena acabasse pulverizando a minha, era esse o nome do meu tormento ao olhar a labareda noturna da outra plataforma, presságios no céu, mas posso lá culpá-la de querer sua vida de antes, tão estrangeira, tão distante da minha que sequer tenho armas para guerreá-la? humilhado fico por Helena deixar de me amar, não pelas escolhas dela, cada um sabe de seus caminhos, e nem isso, nosso destino quem traça são as pedras da frente e o horizonte atrás, a gente é vagão dessa locomotiva, depois que Helena desapareceu como um sonho nunca mais voltei à plataforma, se der de cara com a chama viva do flare enroscando-se lá longe não respondo por mim, afundo na escuridão gelada de cabeça, a hierarquia do horror também se modifica, o abominável de ontem pode ser cura e esquecimento agora, só não sei se fiz bem em recusar a amizade de Helena, trocar de vez o amor por um manequim de palha, afinal tantos fazem isso, mas sangue de barata não tenho ou é sabedoria que me falta (outro enigma nesse mundo breu), dar cabo dela foi do que tive gana e não fiz, lamento isso como um lobo uivando para a lua, o pior dos mundos é uma morte de corpo presente, minhas mãos estão cheias do seu cadáver vivo, não vê-la é sufocante e ver pior ainda, mas escolha? só conseguia enxergar Helena pela ponte dos cinco sentidos, eu tinha lá condição de domar essa memória? e não era só sexo, Helena se aninhava em mim como um filhote de bicho, nem eu sabia onde acabava seu corpo e começava o meu, pode o desamparo de alguém ser mais perigoso que sua força? amar e odiar ao mesmo tempo te despe de si mesmo, para onde a gente vire sempre sai perdendo, um lado troncho, arrimo nenhum, se ama ama o tempo que passou, o ódio escorrendo pelas frestas, se odeia, uma doçura vinda do chão racha a firmeza que o ódio tem que ter, também ele precisa de tesão para se manter de pé, e um lado vai anarquizando o outro, escarnecendo do inimigo, e você ali, concha virada e revirada entre os vagalhões, e me pergunto se o passado vale alguma coisa ou é casca abandonada de bicho, seu destino é só pó?  felicidade serve mesmo trocada pela dor? na mente, caixa preta de um, é inefável tesouro em estado puro ou lembranças que te espetam, apenas te espetam? pois o balanço lucro-prejuízo me deixou no vermelho, um vermelho sangue de que não me livro, água nenhuma lava, então de que adianta viver esse fulgor que te solta depois na obscuritudine e o flare à distância, avisando – o mal cancela o bem?

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