O trecho abaixo, extraído dos capítulos 1 e 2 do livro Genealogia da ferocidade (Cepe Editora), de Silviano Santiago, anuncia os primeiros passos do ensaísta em sua análise da obra maior de Guimarães Rosa, Grande sertão: veredas.
Genealogia da ferocidade é o primeiro título do selo Suplemento Pernambuco e será lançado nesta terça-feira, 28 de março, na Livraria da Travessa de Ipanema (Rio de Janeiro). A obra estará disponível nas princiapais livrarias. Caso o leitor não localize a obra, pode adquiri-la neste link ou entrar em contato com o Suplemento Pernambuco nas redes sociais (Facebook, Twitter, Instagram).
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No ano de 1956 se publica Grande sertão: veredas, romance escrito por Guimarães Rosa. Como um monstro, ele emerge intempestivamente na discreta, ordeira e suficientemente autocentrada vida cultural brasileira, então em plena euforia político-desenvolvimentista. Guimarães Rosa o escreve monstro para que sua qualidade selvagem se destaque com nitidez na paisagem modernizadora do Brasil, tal como configurada pelo Plano de Metas da Presidência da República, que maximiza a indispensável e rápida industrialização de país até então reputado subdesenvolvido. E também para que sua beleza selvagem seja mais bem apreciada se lida e analisada – em ambiente linguístico, social e político, que lhe é refratário, insista-se – como objeto estético insólito, uma pedra-lascada, e não uma pilastra em concreto armado, geometricamente perfeita. Uma pedra lascada difícil de ser compreendida pela mera revisão acrítica do passado pátrio. Intolerável, se lida no seu presente anacrônico. E indigesta, se assimilada espontaneamente pelo leitor compulsivo, ou às pressas pelo medíocre estudioso das letras nacionais.
Anote-se este detalhe revelador. O topônimo “rio de Janeiro” (naquela época, nome da capital federal do Brasil) é várias vezes citado no romance, mas se refere apenas a afluente do rio São Francisco.
Naquele momento histórico, o monstro rosiano desorganiza e desnorteia o ideário em pauta da nacionalidade porque ele sobrevive confinado em circuito estreito e fechado, autêntico enclave arcaico dentro da jovem nação brasileira. Segundo as palavras do presidente da República, o Brasil se modernizaria 50 anos em apenas 5 anos de governo. Bem desenhadas na região conhecida por Alto São Francisco, as fronteiras do enclave monstruoso não bloqueiam o transpasse dos limites naturais e imprecisos por viajantes estrangeiros ou por visitantes brasileiros. Pelo contrário, atiçam a curiosidade e ambição dos estranhos. Cite-se o caso dos cientistas a catalogar espécimes raros em biologia, dos mineradores em busca de pedras preciosas, das tropas militares em luta contra os coroneis e dos artistas, de que foi exemplo o contista Afonso Arinos e é exemplo notável o romancista João Guimarães Rosa.
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Temo usar o termo vanguarda para caracterizar o modo inédito de o monstro rosiano afrontar o gosto do público brasileiro letrado nos anos 1950, embora da vanguarda o romance traga o susto que ele prega nos seus leitores, valor que enobrece toda e qualquer obra de arte no século 20. Lembre-se do título dado pelos cubofuturistas russos ao seu manifesto: “A bofetada no gosto público” (1912). O romance é, antes de mais, uma bofetada no Homem. Meu temor em usar o termo vanguarda para caracterizá-lo se reforça pelo fato de Guimarães Rosa não ter sido colaborador de suplemento literário em moda nem pertencer a igrejinhas europeizadas (não pela sua falta de competência para tal, frise-se). Tendo exercido a Medicina desde os anos 1920 e sendo diplomata de carreira a partir de 1934, o romancista é considerado como o oposto dos que se dizem profissionais das letras e das artes (que, na realidade, não o são). Refiro-me aos mais gloriosos e menos gloriosos escritores diletantes, vaidosos e ditatoriais, que, na capital federal e nos Estados mais importantes da União, se reúnem em torno de manifesto literário, de suplemento e de revista, e se articulam entre eles na base de produção estética coletiva, porque geracional.
Quando publica Grande sertão: veredas, Rosa é um romancista solitário, relativamente desconhecido tanto na imprensa tradicional quanto na emergente imprensa nanica. É por isso que, tão logo lançado o livro, tem de se insinuar estrategicamente pelas brechas da vida literária nacional, fantasiando-se de solitário cavaleiro
andante em defesa da insólita e exclusiva causa estética, política e social, seu monstro.
Quando os primeiros leitores anônimos de Grande sertão: veredas e os escritores brasileiros bem-estabelecidos passam a verbalizar em conversa e nos jornais provocações grosseiras contra o romancista e impropérios contra a obra, Rosa não pode compartilhar o infortúnio com um grupo fechado de companheiros e militantes que o defenderia em praça pública, como é o caso anterior dos poetas da Geração de 45, contestados pelos ideólogos de plantão por serem por demais formalistas; e é também o caso dos vanguardistas da arte Concreta (São Paulo) e da Neoconcreta (Rio de Janeiro), escorraçados pelos leitores tradicionais de poesia, infectados desde sempre pelas bactérias sentimentais do sonetococcus brasiliensis. As hoje consideradas vanguardas históricas, surgidas no início do século 20 e prolongadas como experimentalismo artístico nos anos 1950, sempre trabalharam em ordem unida.
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O romance de Guimarães Rosa não deixa o estudioso avançar no conhecimento da história da literatura brasileira e de suas obras relevantes sem antes obrigá-lo a respirar o ar tormentoso dos cumes da prosa artística que se quer obra-prima solitária; não o deixa avançar sem antes obrigá-lo a repensar sua própria experiência de leitura que, desde os princípios do século 19, apreende os modos e as ferramentas que ajudam os escritores nacionais a traduzirem (no sentido derridiano do verbo) um gênero literário moderno tipicamente europeu – o romance, the novel – para as letras tupiniquins que saíam, então, em busca de sua independência dos valores metropolitanos, ou seja, de sua identidade imperiosamente programada pela trissecular condição colonial.
Por que Guimarães Rosa decide escrever uma prosa literária a ser reconhecida pelo leitor como algo que desnorteia e encanta, assusta e temoriza, e que põe abaixo não só o alicerce retórico canônico da literatura como também o léxico dicionarizado e as construções sintáticas assimiladas e postas em exercício pela prosa literária nacional no lento processo de sua formação no século 19 e, desde então, no exaustivo trabalho de afirmação de sua autonomia? Por que o monstro se quer sinistro e medrontador em anos de concórdia democrática como são os bonançosos da década de 1950? Por que se julga indispensável no período histórico em que a nação quer industrializar-se a passos de gigante e no exato momento em que a antiga cidade letrada começa a ser esfarinhada pela indústria cultural do entretenimento representada pelo cinema e o rock&roll? Por que, sendo já sinistro e indispensável, ele ainda se quer solitário e anárquico? Por que desrespeita acintosamente a tônica geopolítica que o governo federal e os brasileiros implantam no projeto de cidadania posterior à ditadura Vargas, a imprimir a integração fraterna das diferenças regionais, ordenada pela nova capital do país, a interiorana Brasília, integração perseguida pela abertura da épica rodovia Transamazônica? Por que o monstro se quer, contraditória e finalmente, disciplinado respeitador das leis estabelecidas pela “tradição afortunada” (a ideologia nacionalista que desde a descoberta da nova terra pelos portugueses inflama o discurso literário e político dos letrados brasileiros que optam lutar a favor da colônia contra o jugo metropolitano)?
Em contraste quase absurdo com as perguntas arroladas acima, o perfil intelectual do diplomata e romancista Guimarães Rosa o desenha como assumido poliglota e rato internacional de bibliotecas, cujas infatigáveis e fantásticas viagens pelo interior das Minas Gerais, por várias nações do planeta Terra e pelo universo dos livros descobrem uma personalidade sentimental e intelectual semelhante à do monarquista pernambucano Joaquim Nabuco, narrada em Minha formação (leiam-se, como exemplo, as suculentas cartas que Rosa troca com o tradutor alemão, Curt Meyer-Clason, e o italiano, Edoardo Bizzarri).
A qualidade e a beleza selvagem – the wilderness – do Grande sertão: veredas é alheia e é autêntica, é originária e é universal, é literária e é filosófica, e domina. No monstro de Rosa, the wilderness não é apenas resultado do antigo tema colonial, trabalhado e transformado em consequência da marcha civilizatória da humanidade em luta contra a barbárie, como aparece em tantas outras obras descritivas, ensaísticas e artísticas do e sobre o Novo Mundo. Refiro-me às milhares de obras escritas e desenhadas que cobrem a região que vai do Alasca à Patagônia. Refiro-me às numerosíssimas descrições da terra habitada por indígenas e monstros de sete cabeças e às epopeias românticas nacionalistas, que dramatizam tanto as aventuras dos pioneers quanto a bravura dos bandeirantes, e que, graças aos numerosos e modernos faroestes de Hollywood, terminam por iluminar as salas de cinema, ganhando a mente das classes populares. Não é por casualidade que o filme de caubói – apelidado de bang-bang – seja o que melhor representa o genocídio indígena no Novo Mundo.
Em Grande sertão: veredas, a qualidade selvagem dessas regiões coloniais se materializa na complexa e intrincada beleza monstruosa de obra artística sui generis, descomprometendo-a temática, histórica, social e ideologicamente da artificialidade cultural operada pelos sucessivos exercícios de racionalização e de controle da barbárie por diferentes estilos-de-época ou pelos bons e progressistas sentimentos nacionalistas que embasam as manifestações letradas nas antigas colônias europeias e, na realidade, em todas as nações recém-independentes do jugo antropocêntrico e eurocêntrico no planeta.