O trecho abaixo pertence ao livro Literatura de esquerda, do ensaísta argentino Damián Tabarovsky, que será lançado em maio pela Relicário Edições. Ao contrário do que o título pode sugerir, não se trata de uma obra que se debruça sobre obras e autores que se colocam sob essa perspectiva política, mas um ensaio que põe em xeque o lugar da literatura hoje, o que realmente a anima e quais são as suas estratégias diante da criação. A tradução é de Ciro Lubliner e Tiago C. Fernandes.
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I
É difícil discutir literatura. Não porque na discussão costuma se estabelecer o gosto, o tédio ou a má fé. Esses são detalhes. Mas sim porque a literatura se opõe ao consenso, ao diálogo, à argumentação. Essa literatura é ato, se impõe, procede como o terror revolucionário: dissolve as hierarquias e como verdadeiramente revolucionária, se dissolve ela mesma cada vez que consegue descobrir o segredo. Nunca soube o segredo, e se alguma vez o soube, o esqueci. Apenas me recordo do lema: transformar o contingente em necessário.
II
Se a literatura se opõe ao consenso, então se opõe ao verbo ser: “sou escritor”, “publiquei 4 romances e tenho um ainda inédito”, pouca coisa. O verbo estar é mais justo, tem a ver com o trânsito, com a passagem, com a má sorte: “Era escritor, mas deixei de ser” “Agora o que você é?” “Agora eu não sou nada”. Nesse estado começa a literatura.
III
De lugares distantes, afastados, às vezes se pronunciam em voz alta verdades baixas da literatura. Uma vez Wittgenstein pronunciou essas palavras e roçou o segredo: “Como posso saber o que estou falando, como posso saber o que quero dizer?” Nunca se chega a saber, esse poderia ser um bom conselho para escritores iniciantes. Boa parte da literatura argentina contemporânea tem tão claro o que quer dizer, que às vezes é mais interessante ir assistir televisão.
Essa literatura se coloca a serviço da eficiência; supõe que a linguagem pode ser eficiente, que tem que fornecer seus efeitos de choque, seus targets. Fracassa, pois trata a linguagem como uma espécie de empregada doméstica, e perde de vista que a linguagem não é a empregada, mas sim a patroa. E diante da patroa, sempre, há somente uma saída: a luta de classes.
Suponho que para esse tipo de literatura, uma frase como esta de Bataille deva soar incompreensível: “a literatura não é inocente e, sendo culpada, teria que acabar confessando”. Questionada a inocência da linguagem, questionada a inocência da inocência (nada menos inocente que anunciar a inocência da linguagem), a literatura se escreve na fatalidade da suspeita: narrar para fazer crer se torna impossível.
Quando o escritor crê na transparência da linguagem, quando não suspeita dela, quando a imagina funcional; ou ainda pior, quando imagina ter a dominado sob o triste nome de estilo; três palavrinhas ponto, três palavrinhas ponto, é assim; escrever sem vírgulas, aplicar ao conto a estética de oficina literária; quando o escritor se propõe a escrever romances com personagens bem construídos, críveis; histórias interessantes, arrebatadoras, inteligentes; desenlaces surpreendentes, definitivos, ou de qualquer outro tipo – a ideia mesmo de desenlace já é desagradável –; enfim, nesses casos, o escritor é somente um escritor de livros.
IV
Acontece que a literatura se opõe ao livro. É certo: se escreve para ser lido. Porém, lido por ninguém. A escrita e o livro se opõem porque sobre eles operam poderes diferentes. Sobre a escrita influem a indiferença, a fadiga, o excesso. Sobre o livro, a capa, o comentário, a circulação. Quando um escritor deixa como herança um decálogo em que diz: “ninguém escreve para não publicar. É mentira que a alguém possa não importar nem a crítica nem a opinião dos leitores”, é porque faz tempo que abandonou – se é que alguma vez o conheceu – o jogo da escrita. Esse escritor é meramente um publicador de livros.
As instituições (o mercado, a academia) apresentam a linguagem como algo naturalizado, como um conjunto de normas, regras, modos. Se se respeitam esses modos, então se escreve bem (sinto sempre uma profunda desconfiança de romances bem escritos).
V
O peso de suceder as vanguardas parece insuportável. Porém, o verdadeiramente insuportável não é que as vanguardas tenham fracassado ou que se tenham diluído ou que tenham sido absorvidas pelo sistema, mas sim a dificuldade de ser hoje vanguarda. A literatura contemporânea aprofunda essa impossibilidade. A condição de vanguarda consistia em levar uma possibilidade a seu extremo. A condição da literatura contemporânea consiste em levar sua própria impossibilidade ao extremo. Em algum poema, escreve Louis-René dês Fôrets: “Irreparável fratura. Tomemos nota”. Do que devemos tomar nota?
A carga da arte posterior à vanguarda inclui especialmente os avatares dos anos 50, 60 e 70. Primeiro Duchamp, os ready-made: qualquer coisa pode converter-se em obra de arte. Frente a isso, o quê? O monocromo, o expressionismo abstrato, Cage, Beuys, Beckett. A arte se torna conceitual, as possibilidades figurativas (retinianas, diria Duchamp) encolhem, desaparecem (quase: Lucien Freud, Bacon, mas por acaso Bacon não é antes de tudo uma demonstração da brutalidade da representação?). A arte não se torna só conceitual, antes de tudo se torna anti-humanista. Essa foi a via que abriu Duchamp e que a literatura atual, como testemunho de sua impossibilidade, aprofunda. Gombrowicz: “contra o humanismo, a arte se escreve em letras minúsculas”. A literatura é uma arte baixa. Já não há mais pompa, altivez, nobreza, sentido; ao contrário, essa literatura é um réptil: rasteja e injeta seu veneno, é ácida, corrói.
VI
Os movimentos estéticos próximos à abstração, surgidos nos anos 50, são imprescindíveis: inauguram a possibilidade de um anti-humanismo distante de qualquer vontade de poder. Um anti-humanismo sem fascismo. Criam uma possibilidade – o espaço – para uma crítica aos valores humanistas – aos valores tout court – sem sucumbir ao domínio da técnica ou ao mercado. Simplesmente se expõem, são atos, suspendem o pensamento e seu modo prático: o intercâmbio. Artistas tão variados como Frank Stella, Rothko, T. Smith, Barnett Newman e ainda os poucos cubos planos de Giacometti compartilham dessa condição. Condição que não está distante das preocupações de Sarraute, Auden ou Luigi Nono.
Uma arte distante da crença: quando em crise a representação, também entra em crise a possibilidade de crença. O que desaparece é o ideal humanista de Obra, de Sistema, de Unidade. Anula-se o homólogo necessário à boa consciência burguesa: o intercâmbio. Que perspectivas de circulação, ou seja, de ingressar à linguagem corrente, tem Dicen los imbéciles de Nathalie Sarraute? O que se pode fazer, por exemplo, com as esculturas de Donald Judd implantadas em Marfa, em pleno deserto do Texas? Nada, somente registrar sua exposição como o testemunho irônico e crítico de sua própria impossibilidade. Por último: se questiona a possibilidade de representação, figura humanista por excelência. Agora a plástica se revela contra a figuração, o romance contra a narração, a poesia contra o sentido. Mas diferentemente das vanguardas históricas, não há um tom festivo. A arte contemporânea narra que já não se pode contar o relato. Eliminar o real, a isso chamo abstração.
Eliminar o real conduz ao aprofundamento da autonomia da arte. Implica romper com qualquer objeto de mimetismo. Lamborghini é um escritor abstrato. Néstor Sánchez também. São escritas abstratas porque suspendem a crença: não há crença na produção, já não há crença na representação da linguagem; não há crença na recepção, já que há uma quebra nos códigos da narração naturalizada.
Quero dizer: aprofundar a suspensão da crença, do mito, superar por fim toda metafísica e toda transcendência; sem por ela sucumbir à dominação técnica, à academia, e ao mercado. As experiências radicais da arte e da literatura ocupam essa posição.