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O trecho abaixo pertence ao último capítulo de A moça do internato, de Nadiêjda Khvoshchínskaia. A tradução é de Odomiro Fonseca, doutor em literatura russa pela USP. A novela foi a primeira da literatura russa a trazer uma personagem feminina com um discurso claro sobre a emancipação da mulher. A obra será publicada em outubro deste ano pela editora Zouk.

 

***

 

Oito anos se passaram desde aquele tempo.

Na metade do mês de agosto passado, em um daqueles dias claros e quentes que acontecem em Petersburgo pouco antes da chegada do outono, uma aglomeração de visitantes encontrava-se nos salões do Museu Hermitage: senhoras elegantes, maravilhadas com a largura de suas crinolinas envoltas em mantos brancos; mocinhas assustadas, quietas e imobilizadas dentro dos modelitos da moda cossaca, davam sinal de vida apenas quando os desarmoniosos saltos tamborilavam sobre o mármore ou assoalho; jovens radiantes e notadamente barulhentos, acompanhados dessas mocinhas; mulheres menos requintadas, mas desejosas por conhecimento e entendimento, entusiasmadas pelos nomes de cada artista; com elas, garotas um tanto tristes e crianças um tanto intimidadas, e seus companheiros metidos a sabichões, que explicavam os objetos de arte com toda a confiança da autoridade, como se fossem verdadeiros entendedores; provincianos e provincianas, sinceramente emocionados, metidos em trajes antiquados; gente comum da cidade – pequenos burgueses, artesãos, serventes – passando de quadro em quadro e de estátua em estátua, em grupos de cinco pessoas, observando e ouvindo tudo com imensa atenção e satisfação; senhores respeitabilíssimos e seríssimos, em pares – raramente em trios –, detençosos, que analisavam cada objeto longamente, retornando de um salão distante só para rever uma obra que lhes tocara o espírito, esses conversavam baixinho, tão suavemente e aparentando tanto conhecimento, entre eles, que os próprios artistas – com suas telas, pincéis e tintas – que copiavam os quadros dos grandes mestres, involuntariamente, se viravam para os observar.

(...)

Um jovem senhor percorria o Salão Espanhol, completamente sozinho, e parecia não ter nenhum conhecido por ali, pois não conversou com ninguém enquanto visitava toda a estrutura do Hermitage. Estava ficando tarde e tinha cada vez menos visitantes, e os poucos que ali estavam preferiam os salões das joalherias ou das estátuas, que ficava embaixo. Logo, no Salão Espanhol, ficaram apenas o atendente de câmara, dois ou três artistas que trabalhavam e o jovem senhor. Devido ao silêncio, os passos de quem percorria os corredores, o som de um pente caindo no chão, ou o deslizar de uma paleta de osso sobre a tela, qualquer um desses sons podia ser escutado nos salões. A luz solar iluminava suavemente as telas, após penetrarem os vidros do telhado, dando uma tonalidade dourada ao espaço e revelando os rostos pálidos das telas escuras. O jovem senhor encostou-se em um vaso de lápis-lazúli que se localizava no meio do salão, a fim de observar melhor o quadro de Murillo, O menino São João e o cordeiro, uma pintura frequentemente escolhida pelos pintores copistas que produziam réplicas. Neste exato momento, havia um cavalete diante da imagem, mas, para a satisfação do visitante, não havia nenhum artista sentado. O jovem senhor deslocou a atenção deste quadro para outro, vizinho, também de Murillo: Jesus e São João Batista meninos, em que Cristo e São João encontram-se abraçados. (…) Ele olhava, encantado, sem perceber que também estava sendo observado, até mesmo com muita atenção, pela artista que voltara e permanecera em frente ao cavalete; antes, ela já tinha batido o olho no homem que visitava a sala; ali, encostado ao vaso, admirando o quadro de Murillo, tão esquecido de si mesmo, que ela pode olhar com atenção para o seu rosto.

– Monsieur Veretítsin, se não me engano? – Ela disse.

Ele retirou os olhos da tela.

– Madame... Mademoiselle...

– Liôlienka! – Completou e juntou as mãos ao pronunciar.

– É você! – Ele quase gritou de emoção.

– Não se esqueceu de mim?

– Claro que me lembro! Lembro bem! Mas... não pode ser!... O que você faz por aqui?

– Isso que você está vendo. Sente-se um pouco, enquanto eu limpo minha paleta. – Ela apontou um sofá de veludo localizado embaixo do quadro.

– Mas é você! – Repetiu Veretítsin, impressionado. – Mas como isso aconteceu?... Você quase não mudou... Quanto tempo, hein? (…) E como vão seus pais?

– Estão lá, vivendo do mesmo jeito. Você se casou, Alieksándr Ivânitch?

– Não. E você, Elena...?

– Vassílievna! Não, não. O que você pretende fazer hoje? Está com tempo livre?

– Até a noite. Depois tenho uma palestra pública.

– Ó, que honra a vossa! Como não pude saber disso? Onde será?

– Numa escola, na Ilha Vassílievski.

– Nossa, eu moro na Ilha Vassílievski! Como é que eu não soube? Isso se deu recentemente?

– Eu começo a palestrar hoje.

– Agora, eu preciso ir em casa. Vamos juntos!? Jantamos na minha casa e de lá seguimos para a sua palestra. De acordo?

(...)

O seu quarto ficava perto da sala de estar – que também era oficina de trabalho, quarto de estudo e local para receber visitas. Por toda parte havia algumas pinturas, esboços e telas inacabadas, alguns virados contra a parede. No cavalete, um retrato em andamento, provavelmente da sua tia; a paleta distraidamente colocada na talha inferior do espelho, bustos de gesso, estátuas, molduras de cabeças colocados sobre pedestais e estantes. Uma grande escrivaninha e duas prateleiras, cheias de livros, um sofá e umas simpáticas poltronas colocadas estrategicamente perto da lareira – esse era o único local que passava uma imagem relaxante, todo o resto dava a sensação de intensidade, continuidade e trabalho ininterrupto. Liôlienka olhou para o relógio.

– Vou buscar o chá para você. – Ela disse para Veretítsin, já saindo e deixando-o sozinho para que adentrasse na sua sala de trabalho, se assim o quisesse.
Ao retornar, encontrou-o no meio da sala, observando tudo em volta.

– Nada mal, não é? – Ela perguntou. – O senhorio foi tão gentil, que concordou que eu colocasse um papel de parede vermelho aqui – uma tímida imitação das paredes do Hermitage! Na terça, quando ocorrerá o próximo encontro, eu clarearei tudo como um giorno [nota 1] na sala. Ficará maravilhoso... Você não acha que ficará maravilhoso?

– Essa é você mesmo? – Interrompeu Veretítsin. – Sério, às vezes eu não acredito no que os meus olhos veem. Isso é um renascimento!

– O que há de tão interessante nisso? – Ela respondeu, surpresa.

– Só me lembrando mesmo...

– Pois eu não me lembro de nada mais. – Ela replicou. – Eu já te disse isso, não foi? Se as pessoas têm um desejo para lembrar de tudo o que acontece, então deixe que se lembrem de tudo desde a infância, assim ficará claro que na vida só acontece aquilo que era para acontecer... Se você tivesse me conhecido, não ficaria surpreso pelo fato de eu ter me livrado daquele jugo e ter escolhido apagar tudo que se relaciona àquilo.

– Entendo. Deve ser muito doloroso para você. Difícil...

– Você fala da minha família? – Ela interrompeu. – Não há nada de doloroso ou difícil nisso! Eu não me lembro, é como se eu tivesse tirado um peso da minha memória; assim como também não me lembro dos absurdos que escuto e leio por aí... Você acha isso estranho?

– Não digo que é estranho, mas é um tanto resoluto.

– Nada disso! É magnânimo!

Veretítsin olhou para ela, que fora à lareira colocar mais lenha. A meia-luz das chamas deu uma estranha aparência ao quarto vermelho. Essa luz e as sombras pareciam animar ainda mais o rosto da moça. Ela sentou-se, aninhou-se tranquilamente na poltrona; no movimento dos seus olhos havia o desejo de relaxar, de aproveitar o descanso, mas não como contemplação.

– Bem, então vamos relembrar os velhos tempos. – Ela disse após um silêncio e sorriu. – Como vai a Mademoiselle Sophie?

– Sophie? – Repetiu Veretítsin.

– Sim, Sophie... Sofia... Alieksândrovna... o sobrenome?...

– Khmeliêvskaia. – Disse Veretítsin. – Como você a conhece?

– Eu a vi! – Respondeu Liôlienka, gargalhando. – O que há de mais nisso? Vivendo em N., logicamente que eu conhecia os Khmeliévskis. Eu a vi conversando com você no jardim.

– Ah... – Disse Veretítsin, olhando para o fogo.

– Acho que se trata de uma mulher maravilhosa, uma perfeição!

– Sim.

– Educada, inteligente, sábia? – Continuou Liôlienka. – Diga-me, onde ela está agora? O que ela faz –

– Que faz hoje e onde e tal... – Sobrepôs Veretítsin.

– Exatamente. – Liôlienka confirmou seriamente. – Nos dias de hoje, com tal idade, uma mulher como aquela deve ter muitas ocupações! Uma mulher desenvolvida, com um olhar resplandescente, com uma verdade que emana de sua beleza e força interior surpreendente... não só seu exemplo, mas sua palavra... Ela não está por aqui? Não está em Petersburgo?

– Não, está na aldeia. Ela se casou.

– Casou?! – Gritou Liôlienka.

– Casou. – Repetiu Veretítsin.

– Que mulher afortunada! Quem foi o predestinado que teve a felicidade de conquistar essa perfeição?

– Um bom homem, senhor de terras em N.

Liôlienka pulou de sopetão da cadeira.

– Monsieur Veretítsin!... É isso o que você chama de perfeição?!

– Ainda mais do que nunca. – Respondeu tranquilamente, sem tirar os olhos do fogo.

– O que você chama de perfeição é uma mulher que vendeu a própria vontade, que se arremessou num abismo...

– Ela não se vendeu, mas renunciou a si mesma; cedeu às súplicas da mãe. Ela não amava ninguém... Seu marido é um homem honesto, que não é tolo... claro que não é um progressista, nem um líder, mas... Para que dar o tesouro sempre ao rico, se é o pobre que precisa mais?

– E o que você acha que ela fez para os pobres necessitados?

– Ela deu à sua mãe um fim de vida sossegado; reconciliou o marido com o pai; transformou o velho numa pessoa mais humana e caridosa; ajudou o seu marido a estudar, a como usar os meios para atingir os fins; deu um suspiro de vida a muita gente.

– Ó, que grande trabalho! – Interrompeu Liôlienka. – E renunciou para isso? Para limpar o quarto da mãe, reconciliar a família, soprar feridas e ensinar o alfabeto ao marido? E isso é a essência da superioridade...

– E quem dirá que isso não é um sinal de superioridade? – Retrucou Veretítsin. – Os seres inferiores nunca compreenderão, por isso desdenham! Aqueles que se sacrificam até as últimas consequências são superiores. Só o sacrifício da perfeição pode conduzir o ser humano a alguma coisa...

– Há alguns milhares de anos que as perfeições se sacrificam! – Disse Liôlienka.

– Por isso que hoje é mais fácil do que há mil anos! – Respondeu Veretítsin. – De pouquinho em pouquinho, pela força da influência, da memória...

– O velho e confortável “de pouquinho em pouquinho”! – Interrompeu Liôlienka. – Isso são apenas desculpas esfarrapadas, ideais de egoístas, preguiçosos que não encaram os problemas de frente! Em breve, você verá como sua perfeição, Sophie, se reconciliará consigo mesma, tornar-se-á uma idiota...

– Ela morreria assim! – Exclamou Veretítsin.

– E que bem traria a morte dela para a sociedade? Seu marido se casaria logo com outra, brigaria novamente com o pai e todos ririam da cara dela!

– Ela morreria lutando por suas convicções. – Disse Veretítsin.

– E se ela morresse livre, morresse de tanto viver, de alegria!

– Como assim?

– Ora, como assim! – Liôlienka respondeu e com as mãos mostrou o que a circundava. – Ela podia trabalhar para o povo, num círculo maior!

– Você já se deu conta de que, na água, os círculos maiores são mais fracos que os menores?

– Ah, sem analogias poéticas, por favor!

– Mas eu falo a sério. – Ele também moveu as mãos mostrando ao redor. – Você acha que isso é trabalhar para o povo?

– Claro que não é um trabalho em escala mundial, mas eu diria que é uma pequena parte de uma grande contribuição. – Respondeu Liôlienka. – Ao menos, estou fazendo a minha parte, e o mais importante: eu obedeço à minha vontade!...

 

NOTAS

[nota 1] Em italiano, no original. Liôlienka quis dizer que a iluminação deixará claro como o dia (giorno) (N. do T.)

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