Abaixo, um comentário sobre Wladyslaw Szlengel e o livro A janela para o outro lado, que será lançado pela Editora Dybbuk neste mês. Após a segunda imagem, três poemas do autor polonês.
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Toda vez que leio a poesia de Władysław Szlengel, fico emocionado. Certamente, não é por sua extraordinária qualidade formal, pois esse elemento, no caso de sua poesia, é apenas regular. Tampouco é pela escolha de um vocabulário mais preciso ou inovações. Mas conferem a ela um valor inestimável as emoções nela contidas, seu valor testemunhal, as condições sob as quais foi feita e o estranho fato de ela ter sobrevivido a duas destruições da cidade (refiro-me aos Levantes do Gueto e de Varsóvia, que resultaram em fúria destruidora por parte dos ocupantes nazistas, que reduziram a cidade a escombros), além da trágica morte de seu autor e da grande maioria de seus leitores e ouvintes. Podemos apenas imaginar como foi criada em esconderijos, esquivando-se da morte e tendo que conviver com o extermínio de sua nação.
Assim como a obra de outro grande poeta do Gueto de Varsóvia, Itzhak Katzenelson, sua poesia é testemunha da vida e da morte da população dos poloneses judeus aprisionados no gueto de Varsóvia. Katzenelson escreveu sua obra-prima, O canto sobre o povo judaico assassinado, em iídiche. Szlengel, antes da guerra autor de canções populares e versos satíricos, escrevia em polonês. O livro de Katzenelson, no entanto, embora se distinga pela qualidade artística e uma elaboração formal primorosa, diferentemente dos poemas em polonês de Szlengel, não fez companhia aos que estavam sendo exterminados. Katzenelson, cujos outros poemas também circulavam e eram lidos no gueto, iniciou sua monumental obra em outubro de 1943 e terminou no início de 1944. Nesse meio tempo, andou pelos esconderijos do “lado ariano”, caiu numa cilada dos alemães no Hotel Polski, em Varsóvia, foi aprisionado no campo de concentração em Drancy, de lá levado para Auschwitz e encaminhado diretamente às câmaras de gás. Nesse tempo, Szlengel, cuja poesia circulava no gueto de boca em boca e era copiada à mão e ilegalmente impressa, já havia sido assassinado durante o Levante do Gueto. Conhecemos a data da sua morte: 8 de maio de 1943.
As incríveis histórias de como sobreviveram seus poemas são também testemunho daqueles tempos cruéis. Os de Katzenelson foram escondidos numa garrafa e enterrados no campo de concentração em Drancy, antes da deportação do poeta para Auschwitz. Alguns dos poemas de Szlengel sobreviveram no Arquivo Ringelblum (Szlengel, provavelmente, foi um dos colaboradores eventuais da Oneg Shabat, organização clandestina que, sob o comando de Ringelblum, documentava a vida e a morte no gueto), outros (entre eles o “Contra-ataque”) ocultos num esconderijo entre os tampos de uma mesa que resistiu à destruição do gueto, passaram muitos anos em Józefów, perto de Varsóvia, para inesperadamente ressurgirem na hora de transformar a mesa em lenha.
O caso mais incrível é contado por Halina Birenbaum, sobrevivente do gueto e dos campos em Majdanek, Auschwitz e Ravensbrück, que incansavelmente trabalha para popularizar a obra do poeta. Alguns anos após a publicação do primeiro livro dos poemas de Szlengel na Polônia, organizada em 1979 por Irena Maciejewska, Birenbaum comentou a obra no Nowiny-Kurier, um semanário em polonês que circula em Israel. O comentário referia-se ao pedaço do poema perdido mencionado por Maciejewska, que relembrava seus trechos de memória. Um ano depois, em 1985, escreveu para ela uma pessoa que vivia em Israel e que tinha encontrado o mesmo poema copiado à mão entre os papéis que recebeu de um amigo logo depois da guerra. Era o poema “Acerto de contas com Deus”. E apenas graças a este poema, se é que se pode acreditar que o eu-lírico e o poeta sejam a mesma pessoa, chegamos a saber que o poeta no ano da sua morte (o poema é datado - 1943) estava com 32 anos, portanto teria nascido em 1911 (outras fontes apontam 1912 ou 1914 como o ano de seu nascimento).
Infelizmente, é provável que a maioria da produção de Szlengel dos últimos meses do gueto tenha se perdido sob seus escombros. Da totalidade dos poemas daqueles tempos que se conservaram, cerca da metade é apresentada no livro A janela para o outro lado, que comemora o aniversário de 75 anos do Levante do Gueto de Varsóvia e da morte do poeta e será publicado em abril pela editora Dybbuk, que conta nesta empreitada com o apoio do Museu do Holocausto de Curitiba e do Consulado Geral da República da Polônia, em Curitiba. A vasta produção de Szlengel dos tempos de antes do gueto está relativamente bem-preservada, mas não foi incluída neste projeto.
As palavras, os frágeis pedaços de papel, efêmeros rastros nas memórias dos sobreviventes inacreditavelmente perduraram. E vivem para testemunhar, assim como viveram para animar aqueles que estavam esperando a Endlösung der Judenfrage, a Solução Final. Testemunharam o extermínio do povo judaico e sobreviveram os seis anos que durou o Reich de mil anos. Escreve Halina Birenbaum que na época do Levante do Gueto estava com 13 anos: “Liam-se, então, aqueles poemas passados em cópia manual de um para o outro, com indizível e faminta voracidade, assim como se sorve a seiva vital. Via-se no fato de sua existência, na vontade de criar naqueles momentos horríveis, a força da vida e seu inestimável valor. Por meio dos versos do poeta com conteúdo tão atual, tão acertado, sentia-se indubitavelmente que o poder da vida humana é mais forte que a morte, que os alemães, que Hitler!”
O papel da poesia e do poeta foi assim definido pela grande poeta russa Anna Akhmátova na introdução do seu Requiem:
Não, não foi abaixo de um outro céu
E nem sob a proteção de alheias asas -
Estive então junto ao povo meu
Lá, onde meu povo, por desgraça, estava.
(trad. minha)
Tal definição reflete a triste sina dos poetas do cruel século XX. Transformar a arte de encantar e de redescobrir a linguagem em grito. Grito de pavor, grito de revolta, grito de dor, grito da morte. Szlengel está junto com seu povo no perímetro da morte iminente. Mais do que isso: no perímetro da desumanização instalada pelo muro que separa a cidade em nós e eles, o muro que instala a diferença letal entre humanos. É a diferença das experiências, é a diferença das aparências e até a diferença das mortes a que o poeta se refere. O muro real e simbólico foi erguido pelos alemães entre cidadãos poloneses divididos em judeus e poloneses, entre os destinados diretamente à morte e os que ainda podiam ter a ilusão de serem talvez poupados. Divide et impera é o primeiro mandamento dos políticos das mais variadas espécies. Os estigmatizados pela sina mortal e os que ainda não percebem que serão os próximos adotam a instaurada visão da diferença, que quer que não vejam no outro o seu próximo, mas, sim, um ser tocado pela morte e com isso desumanizado. Um ser que é estigmatizado como inferior, pior, alguém de outra espécie. É esse estigma que faz Szlengel, vindo de uma família assimilada e que escreve e vive em polonês, assim intitular um dos prefácios de seu livro clandestino: Ao leitor polonês. É o leitor que fala e vive a mesma língua, mas não precisa usar a braçadeira e permanecer preso entre os muros da prisão real e simbólica do gueto e do estigma.
A diferença entre os que testemunham o assassinato do seu próprio povo e morrem junto com ele e os que, congelados pelo pavor, entorpecidos pela indiferença ou ajudantes solidários, estão do outro lado do muro, do outro lado da linha que separa a vida e a morte é o ponto crucial para entender porque a poesia-grito de Szlengel fascina. Ela vem de dentro do inferno. O inferno ao mesmo tempo real e inimaginável. O inferno iniciado com o muro que separa humanos em melhores e piores, os vivos e os tocados pela morte. A separação em “nós” e “eles” erguida junto com o muro retorna nessa poesia como um terrível estribilho.
Non omnis moriar – a volátil poesia sobreviveu ao poeta e seu povo. A palavra e o grito dele ecoaram e chegaram até nós por vias mais inesperadas alertando, testemunhando, ensinando e chocando. Mesmo que expresse o inexpressável, mesmo que sua linguagem seja tão diferente que palavras como “mel”, “distante” ou “outrora” não possam ser explicadas a uma criança do gueto, pois perderam seus referentes, a poesia de Szlengel apela ao nosso lado humano. De algum modo, Szlengel conseguiu contrariar o grande poeta do outro lado do muro, Czesław Miłosz, que, no seu famoso poema Campo dei Fiori, comparando a solidão dos que morriam nas chamas do gueto com a solitária morte de Giordano Bruno na fogueira dizia:
Mas eu naquela hora pensava
Na solidão dos que morrem.
Pensava que quando Giordano
No cadafalso subia,
Não achou em língua humana
Nenhuma palavra adequada,
Pra dar adeus à humanidade,
À humanidade que fica.
(trad. minha)
Miłosz está certo: não há palavras adequadas. Mas Szlengel prova que mesmo assim é preciso tentar dar prova de humanidade e tentar expressar o inexpressável e descrever “a janela para o outro lado”.
A janela para o outro lado, de Szlengel, mesmo que permita a vista para o outro lado do muro, na verdade é uma janela que também teve seu sentido desfigurado. A principal vista dela é para dentro da experiência do gueto, para a qual nunca serão encontradas as palavras adequadas. Felizmente, isso não impede os que por lá viveram de dar seu testemunho. As palavras voláteis, frágeis, inadequadas e impotentes ao serem expressas ganham concretude, força, precisão e potência para recriar nas mentes de seus ouvintes mundos e infernos piores que os dantescos, pois reais. A experiência é compartilhada, a mensagem passada adiante. O dever da testemunha cumpre-se assim e obriga os leitores e ouvintes a levar adiante o testemunho do que conseguiram ver ao olhar pela janela para o outro lado da vivência humana.
A janela para o outro lado
Minha janela é para o outro lado,
uma janela judia descarada
para o belo parque dos Krasiński
e as folhas outonais molhadas...
No anoitecer cinza-arroxeado
as frondes se curvam, inclinadas
e as árvores arianas espreitam
a janela judia fechada...
Não posso ficar na janela
(resolução mui correta),
aos vermes judeus… toupeiras...
a cegueira melhor se adequa.
Que fiquem nas tocas e covas,
absorto no trabalho o olhar
e pelas janelas judias
sejam proibidos de mirar...
E eu... quando vem a noite...
para tudo apagar e igualar,
no escuro pra janela corro
com a sede enorme de olhar...
e roubo Varsóvia apagada,
os silvos, chiados distantes,
as formas das casas e ruas,
os tocos das torres cortantes...
Eu roubo a silhueta do Teatro,
aos pés tenho o Paço Municipal,
O luar – wachmeister permite
o contrabando sentimental...
Os olhos famintos se cravam
no peito da noite – dois gumes,
na noite de Varsóvia calada,
cidade querida em negrume...
E quando já estou suprido
para um dia, talvez mais...
me despeço da cidade calada,
com as mãos faço gestos rituais,
os olhos cerro e cicio:
– Varsóvia...diz algo...eu confio
E pianos pela cidade
levantam os tampos calados
levantam sozinhos, ao comando,
pesados, tristonhos, cansados...
e flui da centena de pianos
na noite...a polonaise de Chopin...
Me chamam os clavicordes,
no silêncio sofrido vêm
pela cidade os acordes
das teclas de branco mortal...
Baixo as mãos...é o final...
volta a polonaise pros pianos...
Volto e penso calado
que na verdade é ruim
ter a janela pro outro lado...
As duas mortes
A sua morte e a nossa morte
são duas mortes bem diferentes.
A sua morte é a morte forte
rasga as almas, faz ranger os dentes.
A sua morte é morte por balas,
atirando, entre campos gris
fertilizados com suor e sangue
por algo – ...pelo pátrio País.
A nossa morte – é morte estúpida
no sótão ou no porão,
a nossa morte de trás da esquina
chega – uma morte de cão.
A sua morte, a medalha condecora,
menciona-a o comunicado,
a nossa morte – pra terra e adeus –
um depósito de atacado.
A sua morte – é cara a cara,
no meio do caminho saudada.
A nossa morte – é em segredo
na máscara do medo cavada.
A sua morte – é costumeira,
humana e fácil se apresenta,
a nossa morte – é a morte lixeira,
judia e nojenta.
A nossa morte da sua morte
é pobre, longínqua parente.
Quando a sua encontra a nossa
não a cumprimenta, certamente.
Na noite negra entre névoas,
se maldizem as duas mortes,
sobre a cidade – um mar de trevas,
se insultam com verbos fortes.
Sobre a mureta, vendo os dois lados,
espia as brigas escondida,
a mesma esperta, má, gananciosa
e igualzinha Vida.
Pequena estação de Treblinka
Na rota Tłuszcz – Warszawa,
pelos trilhos partindo
da estação Warschau Ost,
direto vai-se indo…
E às vezes demora quase
cinco ou seis horas o transporte,
e às vezes a viagem leva
a vida toda até a morte…
A estação é pequena
pinheiros crescem do chão,
a placa normal, costumeira:
aqui Treblinka – a estação
E nem tem bilheteria,
o carregador não te escolta,
nem por um milhão se consegue
uma passagem de volta…
Ninguém acena com lenço,
ninguém na estação espera,
com surdo vazio te recebe
o silêncio que lá impera.
Calado na estação o poste,
calado o pinho que o chão finca,
calado o letreiro em negro,
que… estação de Treblinka
E só está pendurada
a propaganda, o cartaz,
o velho letreiro surrado:
“Cozinhem usando gás”.
* Piotr Kilanowski é tradutor e professor universitário (UFPR).