Abaixo, um conto inédito de Sérgio Sant'Anna, um dos maiores escritores do país. É baseado no conto Uma peça sem nome, de seu último livro, Anjo noturno (Companhia das Letras, 2017).
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Le bateau ivre
Cenas para conto ou encenação teatral
Uma espelunca numa rua secundária de Copacabana. Servem bebidas e pratos feitos, mas só tem um freguês nesse momento, um homem de uns 60 anos, usando roupas modestas e bebendo conhaque sentado a uma mesa com tampo de fórmica. Há um outro homem ao balcão. Aparenta uns 40 anos. Num aparelho de televisão, noticia-se uma enchente no centro, bairros e morros da cidade etc. O locutor fala em estado de calamidade pública. Carros encobertos ou arrastados pela chuva. Contados até agora 20 mortos e há mais uns 20 desaparecidos. Barulho de um forte temporal lá fora.
(Observação: A espelunca não precisa ser necessariamente realista. Pode ser estilizada da forma escolhida pelo diretor. Como um hiperrealismo brasileiro, digamos. Ou apenas com o cenário e adereços necessários.)
HOMEM DO BALCÃO Vinte mortos até agora e ainda há muitos desaparecidos. Você ouviu? Uma mulher foi tragada para dentro de um ralo.
FREGUÊS Que barra, hein.
HOMEM DO BALCÃO Estou com medo de alagar aqui dentro.
Nesse momento entra na espelunca uma jovem mulher completamente encharcada. Por suas roupas, vê-se que é uma mulher de classe média, bonita. Traz um guarda-chuva em péssimo estado, praticamente sobrando só umas duas tiras de duas abas laterais e o cabo.
MULHER (para o homem do balcão) Posso me abrigar aqui?
HOMEM DO BALCÃO Pode, claro, quer beber alguma coisa?
MULHER (olhando para o homem à mesa) O que o senhor está bebendo?
HOMEM Conhaque.
MULHER (para o homem do balcão, e sentando-se a uma das três mesas existentes e segurando o guarda-chuva agora fechado) Um conhaque para mim também, senhor.
HOMEM DO BALCÃO De que marca?
ELA Qualquer uma (apontando para o homem à mesa) A que ele está bebendo. Qual é?
BALCONISTA Conhaque Napoleão, senhorita. Ou será senhora?
MULHER Isso pouco importa. (ela ri) Mas que marca para um conhaque: Napoleão. Pelo menos é bom?
HOMEM À MESA Para mim, serve. (ela ri de novo, mas parece um pouco nervosa) Um Napoleão para mim também.
O homem do balcão chega até a mesa e os serve, primeiro ela, depois o homem. O balconista deixa a garrafa sobre a mesa dele. O homem bebe a sua dose de um só gole e ela bebe a sua mais devagar. Após um intervalo de silêncio, o homem do balcão fala para os outros dois:
HOMEM DO BALCÃO Mas, que temporal, hein.
MULHER Eu gosto de chuva. A temperatura fica mais amena e a cidade mais civilizada, mais cinzenta.
HOMEM DO BALCÃO Mas está morrendo gente, senhorita.
MULHER Podem pensar que eu sou insensível, mas essas tragédias me dão é raiva. As autoridades não fazem nada para melhorar o escoamento, todo ano é assim e o dinheiro para as obras é todo roubado. Deviam fuzilar os ladrões do dinheiro público. (para o balconista) Não tem jeito de pôr um pouco de música?
O balconista desliga a TV no controle remoto e aperta o botão de um CD player. Começa-se a ouvir música. Talvez um bolero bonito. O homem se serve de conhaque e o bebe de novo de um só gole. A jovem só agora terminou a sua dose.
MULHER (para o balconista) Também quero mais uma dose.
BALCONISTA É melhor ir devagar, senhorita. (ele vai levando a garrafa para a mesa dela e a serve) Conhaque é uma bebida forte.
ELA (apenas bebericando) Sim, devagar. E tenho que ir embora mesmo.
HOMEM À MESA Vai sair com esse tempo? Uma mulher foi tragada para um bueiro.
ELA Se eu não chegar, ele vai ficar furioso.
HOMEM Seu marido?
MULHER É, pode-se dizer assim.
Ela abre de novo o guarda-chuva em frangalhos e dá uma risada. Vê-se que indiscutivelmente tem senso de humor.
MULHER (levantando-se) Só que, com a ventania, vou parecer uma bruxa sobrevoando Copacabana com a sua vassoura.
Todos riem. Balconista desliga o toca-discos e torna a ligar a televisão, cuja tela não precisa estar acesa para os espectadores.
BALCONISTA Vejam, as pessoas estão navegando em pranchas de surfe, há carros submersos e até barcos com guarda-vidas, ou sem eles, na enchente.
Mulher fecha o guarda-chuva, deixa-o numa cadeira e vai sentar-se à mesa do homem, levando seu cálice de conhaque.
MULHER Já sei, moro aqui perto e vou pedir carona num barco. (ela ri, mostrando-se um pouquinho embriagada)
HOMEM Le bateau ivre!
MULHER (olhando espantada para ele) Ah, o barco bêbado!
HOMEM Estaria na medida para você. Você fala francês?
Balconista acompanha a conversa com interesse.
ELA Quase nada. E você?
ELE Talvez um pouquinho melhor do que você.
MULHER Você trabalha em quê?
HOMEM Sou vendedor ambulante na praia. Mas num dia como hoje...
MULHER Vende o quê?
HOMEM Um pouco de tudo. Camisetas, filtros solares, chapéus, boias para crianças e até livros usados.
MULHER Livros na praia?
HOMEM Sempre pode aparecer algum banhista solitário que queira ler na praia. Às vezes, até estrangeiros. O livro de Rimbaud, com o barco bêbado, em francês e traduzido, comprei-o num sebo.
MULHER E vai vendê-lo na praia?
HOMEM Esse não, guardei-o para mim. Está em frangalhos.
MULHER Mas não o que está dentro, não é verdade?
HOMEM Isso mesmo. Não o que está dentro. Quer dar uma olhada depois, enquanto a chuva não passa? Mais um pouco de conhaque?
MULHER Não quero ficar bêbada. Haveria alguém em casa que me mataria. Vou dar um telefonema.
Ela tira um celular da bolsa e começa a falar baixo, mas depois sua voz se altera e percebe-se que está discutindo com alguém.
MULHER Posso passar a noite em casa de uma amiga. (ela hesita) Sandra. Ou você prefere que eu me afogue?
Ela se cala, ouve mais um pouco e depois bate o celular com força na mesa.
MULHER Pronto. Ele me xingou e disse que quer mais é que eu morra. Agora é que vou ter de passar a noite na rua mesmo. Será que posso encostar-me aqui, numa cadeira e uma mesa?
HOMEM DO BALCÃO Pode, senhorita. E eu posso estender um colchonete no chão. Só não posso garantir é que a água não chegará até aqui. Está com cara que vai transbordar. Já aconteceu outras vezes.
HOMEM À MESA Olha, senhorita, você pode ficar com o meu quarto. Eu fico aqui no (ironicamente) salão.
MULHER Você mora aqui?
HOMEM Não, no subúrbio. Mas tenho um quarto aqui, onde guardo as minhas mercadorias. Fica mais fácil de levar para a praia. E às vezes passo a noite nele.
MULHER (apontando para o balconista) Ele disse que pode ser que alague tudo aqui.
HOMEM Você também pode ficar lá em cima no meu quarto, na minha cama, e eu durmo no sofá. Pode confiar em mim...
Ela o olha de cima a baixo, como se a medir sua periculosidade. Depois, como se o considerasse inofensivo, diz:
MULHER Vou aceitar senhor, senhor...
HOMEM Tobias. E o seu nome, qual é?
MULHER Juliana. Agradeço muito a sua gentileza, mas vou aceitar com uma condição.
Ele a olha interrogativamente.
MULHER Que eu durma no sofá e o senhor na sua cama.
HOMEM Tudo bem. Se a senhorita prefere assim.
2
Juliana e Tobias já estão no quarto deste último. Bugigangas para todos os lados. Ela levou o guarda-chuva e pousou-o numa cadeira. Agora ela está sentada no sofá, segurando um cata-vento. Ele pede licença para ir ao banheiro. Quando volta, está vestido com uma bermuda e uma camiseta para passar a noite. É a vez dela entrar no banheiro. Ao sair, continua com a sua roupa encharcada. Numa prateleira, ele pega outra camiseta e um livro de poemas de Rimbaud, todo desconjuntado. Ele estende a camiseta para ela.
TOBIAS É melhor você dormir com isso. Com a diferença de nossos tamanhos, vai cobri-la inteira.
JULIANA (pegando a camiseta e notando o livro nas mãos dele) Ah, Rimbaud, hein?
TOBIAS (pegando uma página do livro) Antes da gente dormir, posso ler um trecho do barco bêbado para você. Tem tudo a ver com o tempo dessa noite. Você prefere que eu leia em francês ou português?
JULIANA (rindo) En portugais, s’il vous plaît.
TOBIAS Ah, legal. Vou ler uma tradução perfeita do Augusto de Campos. Antes, você pode se trocar lá no banheiro.
JULIANA Não precisa, é só você virar de costas. Você pode ler enquanto eu me troco.
Ela se vira de costas e, lentamente, começa a tirar a roupa, próxima dele. Mas não veste a camiseta. Pega o guarda-chuva em frangalhos e o abre. Ele lê, sendo que a direção pode cortar alguma coisa, se ficar monótono, mas penso que a última estrofe deve permanecer, porque tem tudo a ver com a situação. Progressivamente, ela irá ficando nua, equilibrando-se com o guarda-chuva.
TOBIAS
O barco bêbado
Quando eu atravessava os Rios impassíveis
Senti-me libertar dos meus rebocadores
Cruéis peles-vermelhas com uivos terríveis
Os espetaram nus em postes multicores.
Eu era indiferente à carga que trazia,
Gente, trigo flamengo ou algodão inglês.
Morta a tripulação e finda a algaravia,
Os Rios para mim se abriram de uma vez.
Imerso no furor do marulho oceânico,
No inverno, eu, surdo como um cérebro infantil,
Deslizava enquanto as Penínsulas em pânico
viam turbilhonar marés de verde e anil.
O vento abençoou minhas manhãs marítimas.
Mais leve que uma rolha, eu dancei nos lençóis
Das ondas a rolar atrás de suas vítimas,
dez noites, sem pensar nos olhos dos faróis!
Mais doces que as manhãs parecem aos pequenos
A água verde infiltrou-se no meu casco ao léu
E das manchas azulejantes dos venenos
E nos vinhos me lavava, livre de leme e arpéu.
Então eu mergulhei nas águas do Poema
Do mar, sarcófago de estrelas , latescente,
Devorando os azuis, onde à vezes – dilema
Lívido – um afogado afunda lentamente;
TOBIAS (interrompendo a leitura) Posso lhe dizer uma coisa, senhorita?
JULIANA (ainda de costas para Tobias) Por favor.
TOBIAS Nunca senti tanta intimidade com uma mulher.
Ela se vira. Está nua, segurando o guarda-chuva aberto em frangalhos. Os dois se abraçam.