Com o desmonte da Educação superior no país para implantação de um modelo refém da iniciativa privada, publicamos hoje um trecho de A escola não é uma empresa, do sociológo francês Christian Laval (foto), a ser lançado pela Boitempo Editorial no início de setembro.
Na obra, Laval questiona a presença do vocabulário neoliberal ("eficiência", "inovação" e afins) na Educação e mostra como instituições de alcance global – como o Banco Mundial ou a Organização Mundial do Comércio – forçam países a criar projetos educacionais para atender interesses econômicos do capitalismo contemporâneo. A partir do caso francês, o texto estimula a pensar o caso brasileiro a partir da semelhança dos discursos acerca da necessidade de "modernização".
O livro, originalmente lançado no início do século XXI (quando também foi traduzido pela primeira vez ao português), volta às prateleiras brasileiras com tradução de Mariana Echalar.
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A imitação do mundo da empresa privada é justificada pela busca da eficiência. O tema da “escola eficiente” remete à redução ou, no mínimo, ao controle dos gastos com educação, que se tornou prioritário depois que a intervenção do Estado foi questionada: a ordem é “fazer mais com menos”. A massificação escolar, segundo essa abordagem, exige técnicas de gestão que já tenham sido postas à prova no setor privado. Uma análise geralmente compartilhada entre os responsáveis pelos sistemas educacionais dos países europeus afirma que, depois de garantir o aumento do número de alunos e de seu tempo médio de escolaridade, chegamos a um patamar a partir do qual é preciso buscar um melhor desempenho qualitativo. O aprendizado dos conhecimentos deve melhorar, o índice de fracasso escolar, fonte de exclusão e “sobregastos inadmissíveis”, deve diminuir, e a formação deve se adaptar melhor ao mundo econômico moderno. Se é impossível aumentar os recursos financeiros em consequência da redução dos gastos públicos e dos impostos, o esforço prioritário deve se concentrar na gestão mais racional dos sistemas escolares, graças a uma série de dispositivos complementares: definição de objetivos claros, coleta de informações, comparação internacional de dados, avaliações e controle de mudanças. Em resumo, mediante a importação de abordagens da gestão empresarial, as técnicas de produção em massa devem ser substituídas por formas de organização baseadas na “melhoria de qualidade”, assim como se fez na indústria.
O princípio dos sofismas que estruturam a argumentação modernizadora na França é uma abstração: os objetivos são independentes das forças sociais, econômicas e ideológicas que envolvem a escola. Em razão disso, essa tendência irrefreável dos discursos reformistas dominantes à abstração, que encontramos em toda tecnocracia (que se caracteriza por reduzir os problemas a simples questões técnicas), gera uma autocegueira. “Modernização”, “eficiência”, “avaliação”, “novas tecnologias”, todos esses temas dependem intimamente das pressões exercidas sobre o sistema educacional e constituem tarefas atribuídas a este último pela lógica do novo rumo das sociedades. Em uma frase, seu significado e seu emprego são largamente determinados pelas forças dominantes que movem as sociedades hoje. A escola na França, contrariamente a sua pretensão de “exceção”, é impelida como todas as outras a integrar-se à grande competição global das economias. A “reforma” não é apenas “moderna”: seu sentido primeiro, sua razão última, é a concorrência mundial dos capitalismos. Sua manifestação é a predominância e o poder cada vez maior de especialistas, administradores e “calculistas”, que tendem a monopolizar a fala legítima sobre a educação.
Por trás das mudanças que deveriam ser apenas técnicas, a “modernização” anuncia uma transformação da escola que altera não apenas sua organização, mas também seus valores e suas finalidades. No momento em que a imprensa, a sociologia e as editoras proclamavam o “fim da escola republicana”, a “morte de Jules Ferry”*, o “declínio do modelo escolar francês”, o “fim das utopias escolares”, ocorria uma redefinição oficial tanto dos objetivos e dos recursos da escola como da identidade profissional dos docentes. Além das evidências e dos lugares-comuns (“a escola deve mudar em um mundo em movimento”), temos de nos interrogar sobre o sentido dessa injunção.
OS SENTIDOS DA MODERNIZAÇÃO
Entre os temas levantados que declaram e escondem a mutação da escola francesa, o da “modernização” aparece como o cúmulo do lugar-comum. Trata-se, sem dúvida, da primeira e da última palavra da argumentação reformista. A noção de “modernização” – vaga, mas de boa receptividade – é o fio condutor de uma retórica de combate diante da qual o espírito crítico parece capitular [nota 1]. Sejam quais forem a natureza e o teor da “reforma” ou da “inovação”, basta dizer que haverá “modernização” da escola para que, na cabeça de muitos, ela seja sinônimo de progresso, democracia, adaptação à vida contemporânea etc. Desse modo, aqueles que se opõem a ela por alguma razão são violentamente estigmatizados pelos modernizadores. E não é muito difícil mobilizar a opinião pública, os pais, os “jovens”, enfim, todos os que acreditam que é preciso ser “absolutamente moderno” para estar do lado do progresso e da democracia e, assim, apoiar as mudanças – cujos resultados ninguém nunca se dá o trabalho de avaliar, nem mesmo os adeptos da ideologia da avaliação.
O termo “modernização” não é tão neutro quanto os defensores da reforma gostariam que acreditássemos. Em primeiro lugar, lembramos que, no vocabulário das ciências sociais dos anos 1960, “modernizar” significava converter as sociedades ou os setores ainda tradicionais da sociedade à modernidade, arrasando costumes, eliminando modos de ser e fazer que não admitiam a primazia da eficiência e da racionalidade. Em sentido mais estrito, porém, o verbo “modernizar” também significa buscar mais eficiência nas organizações e instituições, a fim de equiparar sua produtividade – supondo-se que o termo tenha um sentido universal – à das empresas privadas de melhor desempenho [nota 2].
Na realidade, em todos os domínios da sociedade, ganhou terreno o que Max Weber denominava “o espírito do capitalismo”: a ação pedagógica é um bom exemplo. A educação passou por um processo contínuo de racionalização desde as origens da escola no Ocidente: conteúdos disciplinares e intelectuais, formas de transmissão e de controle, organização de níveis e divisões, materiais e locais sofreram uma normatização e uma padronização que permitiram o desenvolvimento da ação educativa, sob a forma de uma “burocracia mecânica”[nota 3]. Essa forma organizacional centralizada e composta de células de base idêntica foi um meio muito eficaz de expandir e racionalizar a educação, até o momento em que ela pareceu não permitir ganhos de produtividade suficientes e se tornou um obstáculo à racionalização pedagógica. Evidentemente a forma burocrática da organização escolar nacional também gerou efeitos negativos: uniformidade, exigências tacanhas, mentalidade de caserna, mesquinharia de “chefes” e “burocratas”, medo das modas e das novidades e, talvez acima de tudo, esforço constante para controlar politicamente as mentes, fazendo-as, por exemplo, respeitar as “autoridades consagradas” ou mesmo aderir aos “valores nacionais”. O estilo antigo da escola alimentou uma crítica muito legítima, ou até mesmo uma “contestação” em massa, que seria um erro negar. Mas a burocratização escolar criou nichos – que no vocabulário da gestão seriam chamados de “caixas-pretas” – que escapam da vigilância, da padronização e da formalização. Ao menos em parte, as aulas, os cursos, as disciplinas, as relações pedagógicas concretas permaneceram alheias ao domínio da gestão. Nesses nichos, em geral para o bem da relação humana, mas às vezes para o mal, manteve-se certa liberdade, certa diversidade dos conteúdos ensinados e das maneiras de ensinar. Ora, o que está em jogo, sobretudo na reorganização gerencial da escola francesa, não é o fim da burocracia, como se diz, mas uma nova etapa do controle do poder gerencial, que deve intervir mais profundamente na definição dos conteúdos, entrar nas minúcias das práticas e atingir o cerne da relação pedagógica. Um bom exemplo são os discursos sobre a necessidade de uma “cultura da avaliação” na escola ou a aplicação do cálculo econômico e das problemáticas contábeis na esfera da educação. A eficiência gerencial foi promovida a norma suprema, a ponto de se acreditar que a própria ação pedagógica pode ser avaliada como uma produção de “valor agregado” [nota 4]. Um verdadeiro culto à eficiência e ao bom desempenho levou à identificação e ao ajuste de “boas práticas” inovadoras, que serão transferidas e estendidas a todas as unidades de ensino [nota 5]. O novo discurso de modernização vê tudo pelo prisma da técnica. As dimensões políticas que implicam conflitos de interesses, de valores e de ideais são eliminadas. A escola é chamada a ser “competitiva”. Deve adaptar-se aos desejos do usuário, segundo um procedimento de “serviço ao cliente” [nota 6]. A inovação pedagógica é pensada cada vez mais como um progresso linear de métodos propostos por “laboratórios” de pesquisa e especialistas, o que parece legitimar sua imposição uniforme e autoritária. Após ouvir o que dizem as mais altas autoridades do Ministério da Educação Nacional nos últimos vinte anos, temos a impressão de que o toyotismo e a “qualidade total” são as novas Tábuas da Lei [nota 7]. Como destaca Lise Demailly, esse desencantamento da escola que valoriza a “legitimidade procedimental” (gerir bem, organizar bem, avaliar bem, administrar bem, comunicar-se bem) rechaça a “legitimidade substancial” que até então dava sentido à escola, um sentido que se incorporava à própria pessoa do professor sob a forma de uma ética profissional e abrangia tanto os fazeres da profissão como os valores que ele pretendia compartilhar [nota 8]. Esse capital simbólico, composto de referências e valores em parte comuns e em parte antagônicos (coesão social, cidadania republicana, progresso humano, emancipação do povo etc.), desapareceu do discurso oficial da instituição ou, mais exatamente, é apenas uma fachada para “salvar as aparências”, especialmente necessária nos momentos em que os “modernizadores” entram em pânico por aquilo que é pudicamente chamado de “perda de referências”. Tal destituição dos valores transforma esse capital ético em simples recurso privado, uma espécie de escolha pessoal que vale tanto quanto qualquer outra. Desse ponto de vista, o termo “modernização” é um arremedo de sentido. No âmbito das referências simbólicas, o gerencialismo vem pouco a pouco tomando o lugar do humanismo como sistema de inteligibilidade e legitimidade da atividade educacional, justificando a importância cada vez maior dos administradores, dos especialistas e dos estatísticos. Esse gerencialismo constitui um sistema de razões operacionais que busca ser o portador do significado da instituição pelo simples fato de que tudo parece ter de ser racionalizado segundo o cálculo das competências e a medida dos desempenhos.
NOTAS
* Jules Ferry (1832-1893), parlamentar, ministro da Educação e primeiro-ministro da França em diferentes períodos, foi o mais conhecido defensor de um ensino público laico, gratuito e obrigatório no país. As leis que instituíram esses parâmetros, aprovadas entre 1881 e 1882, são conhecidas como “Leis Jules Ferry”. (Nota do Editor da Boitempo)
[nota 1] Ver Jean-Pierre Le Goff, La Barbarie douce, la modernisation aveugle des entreprises et de l’école (Paris, La Découverte, 1999).
[nota 2] “Esquecemo-nos muito facilmente de que o mundo moderno, sob outra face, é o mundo burguês, o mundo capitalista. É até um espetáculo divertido ver como nossos socialistas anticristãos, particularmente os anticatólicos, indiferentes à contradição, incensam o mundo chamando-o de moderno e difamam o mesmo mundo chamando-o de burguês e capitalista.” Ver Charles Péguy, De la situation faite au parti intellectuel dans le monde moderne devant les accidents de la gloire temporelle (1907), em Oeuvres en prose complètes II (Paris, Gallimard, 1988, “Bibliothèque de la Pléiade”), p. 699-700.
[nota 3] Henry Mintzberg, Structure et dynamique des organisations (Paris, Éditions d’Organisation, 1982).
[nota 4] Ver sobre esse tema Jean Andrieu, “Les Perspectives d’évolution des rapports de l’école et du monde économique face à la nouvelle révolution industrielle”, Journal Officiel de la République Française, Conseil Économique et Social, Paris, 14 out. 1987.
[nota 5] Béatrice Compagnon e Anne Thévenin, L’Ecole française et la société française (Paris, Complexe, 1995), p. 183.
[nota 6] Pierre Blanc, “Services privés, service public”, Éducation et Management, n. 5, jul. 1990, p. 25.
[nota 7] Alain Michel, “Vers une stratégie du renouveau”, Éducation et Management, n. 5, jul. 1990.
[nota 8] Lise Demailly, “Enjeux de l’évaluation et régulation des systèmes scolaires”, em Évaluer les politiques éducatives (Paris, De Boeck Université, 2001), p. 18.