machado marvin milton silviano junho.21

 

 

Acredito já ter demonstrado com suficiente evidência textual que tanto Pauliceia desvairada (1922), de Mário de Andrade, quanto Esaú e Jacó (1904), de Machado de Assis, são modelo na forma como dramatizam, em obra literária escrita em nação pós-colonial, o peso real e o valor simbólico do fato socioeconômico e político dado como progressista. Não há motivo palpável para excluí-las do privilégio concedido às narrativas em estilo realista-naturalista, que presentificam (no sentido filosófico do verbo) o evento. Essas obras e semelhantes não deveriam ser menosprezadas pelo gosto dominante entre os leitores politizados de literatura brasileira.

Ao perder parte das interpretações dadas por disciplinas das ciências sociais, o evento, ou os eventos nelas dramatizado ganham, por suplementariedade, uma dimensão transdisciplinar e cultural que, graças a dessincronizações e deslocamentos internos inesperados, salienta o potencial semântico que elas segregam, retrospectiva e prospectivamente. Por exemplo, tornam-se ferramentas úteis na desconstrução do etnocentrismo dito universal. Os estudos sobre a história do Brasil escravocrata, monárquico e agrário, recebem — na compreensão dos grandes eventos transcorridos em 1888 e 1889 e em 1922, respectivamente — camadas de saber atual, sobrepostas às camadas de saber antigo.

As camadas sobrepostas são liberadas por uma metodologia de leitura apropriadamente comparatista e cultural.

Ativada pelos dois escritores, a postura de resistência política expressa pela escrita literária é definida menos pela culminância do evento entre outros eventos também considerados progressistas. Mais definida será pelas ressonâncias retrospectivas e prospectivas, que visam a avaliar o julgamento ético proposto ao leitor pela arte. Ao sair em busca do peso real e do valor simbólico do acontecimento, o escritor “hospeda” o próprio texto em texto(s) alheio(s). A(s) “estalagem(ns)” que o autor elege para hospedar sua criação propicia(m) ao texto vernacular original uma abertura semântica ampla e imprevista, prefigurada pela imersão da trama nacional em obras clássicas da literatura ou da cultura universais.

Quando saem de casa, o poeta paulista e o romancista carioca pisam o mundo.

A quebra da narrativa literária brasileira e sua extensão numa ou várias narrativas semelhantes, tão abertas à hospedagem quanto o Dom Quixote, de Cervantes, continua a ser, por linhas tortas, escrita vernacular. O estilo inventivo do escritor e a composição indisciplinada de sua obra enriquecem a Literatura e, obviamente, seu leitor. A hospedagem em obra alheia visa a aguçar — tanto no leitor comum quanto no analista — a diferença espacial entre duas sociedades que, em determinada região do planeta, se atualizam e se reorganizam simultaneamente, mas sob o primado da injustiça. A nação — ou o capital, para ser óbvio — que comete a injustiça é investida de superioridade nas análises e, na verdade o deve ser, por razões aparentemente cronológicas que, se desconstruídas, se afirmam como socioeconômicas e políticas.

De natureza quantitativa, a superioridade está sempre a minimizar o potencial de superioridade qualitativa que pipoca — sob a forma de resistência política e artística — em sociedades inferiorizadas que, se bem governadas, se instruem pela educação formal dos futuros cidadãos e pela produção e difusão do saber artesanal e/ou artístico. Ainda que não minimize esse potencial, a superioridade está e estará sempre a inibi-lo como referência e fonte, inspirando o gosto pela cópia.

Ao dramatizar o acontecimento julgado progressista em sociedade injustiçada, o escritor evidencia para seu leitor os valores que estariam alicerçando uma leitura ético-política, de caráter prospectivo, da memória universal. O anacronismo geográfico que impulsiona na sociedade inferiorizada o progresso é alavanca de domínio pós-colonial. A obra literária nacional enfatiza o anacronismo que desconstrói o uso traiçoeiro do papel carbono. Da cópia conforme.

Em escrita literária, pensadores como Mário e Machado sugerem que o evento em pauta talvez tenha tido sua visibilidade simplificada pela formação disciplinar de seus observadores presenciais, ou especialistas na matéria. Do ponto de vista historiográfico e didático, os observadores sempre contribuem, não há dúvida. Mas seria bom e justo que o evento tal como observado subjetiva ou disciplinarmente, se associe às respectivas interpretações entronizadas e que o todo seja revisto e reavaliado, a fim de que o dito progresso nacional seja compreendido pelos princípios éticos que a memória cultural incentiva, mesmo se sejam eles devastadores. Cada caso é um caso.

De fatura do próprio artista, a “hospedagem” de texto original em livro alheio (não importa se em tradução) gera deslocamentos espaciais na evolução linear da trama que precisam ser bem compreendidos. Ao tocar, instruir e emocionar, a leitura por “interrupção” no desenvolvimento da trama assegura àquela obra literária sua saliência, ou proeminência, no contexto dado por nação e pela história circunscrita ao país. Em obediência à interrupção exigida pelo objeto, o leitor para tem acesso a novo patamar. De lá, vislumbra um panorama que se abre para contextos circunstanciados. Multidisciplinares. Tem acesso à qualidade pós-colonial da obra literária (no caso, brasileira) e pode refletir adequadamente sobre ela.

Não é por casualidade que Machado de Assis hospeda, desde o título do romance Esaú e Jacó, os gêmeos cariocas Pedro e Paulo em Pentateuco. Tampouco é por casualidade erudita que hospedará o personagem irmão das almas (a se transformar no capitalista Nóbrega ao meio do romance) no conto Candido, ou O Otimismo (1859), de Voltaire. Privilegio a hospedagem do personagem irmão das almas em Voltaire por ser mais escandalosa. Ao interromper o desenvolvimento da trama, o leitor ganha perspectiva exemplar para conhecer o motivo para a metamorfose do rapaz que, no início do romance, recolhe esmolas à porta da igreja e surrupia uma nota de dois mil-réis da bacia das almas. Como adiantamos, ele desaparece da trama romanesca para reaparecer, ao meio dela, como o capitalista Nóbrega. O silêncio sobre a metamorfose deve ser lido e interpretado em Candido, ou O Otimismo.

A fortuna pessoal do Nóbrega é resultado do Encilhamento, a primeira grande trapalhada financeira — e por quantas passamos e ainda passaremos — no regime republicano. Em Esaú e Jacó, Machado de Assis não presentifica e cumula o Encilhamento como acontecimento singular. Alegoriza o evento pelo recurso à hospedagem no capítulo Eldorado do conto de Voltaire, já citado. No Eldorado — no de Voltaire e no de Machado —, negócios são desfeitos e feitos na bacia das almas. Uma nota de dois mil-réis surrupiada constrói e destrói as fortunas e as lideranças políticas, todas espertalhonas e fraudulentas. Ao contrário do que afirmam os notáveis especialistas em século XVIII francês, o Eldorado existe, sim, mas em Esaú e Jacó. Basta ler o capítulo 78 do nosso romance. O Eldorado é aqui, como, aliás, cantam outros, o Haiti.

Não tem fronteiras geográficas o sorriso sedutor da prosa cética do artista brasileiro descendente de povo escravizado. Não é por acaso que a arrogância iluminista de Pangloss, ganha lugar e sentido anacrônicos e críticos no fim do XIX brasileiro e republicano. Essa arrogância está comprometida com a crescente especulação financeira pelo capital (ainda) colonizador. Ao retornar tardiamente ao romance na pele de capitalista, o irmão das almas é flagrado ao exibir a carruagem no cais Pharoux. O romancista não disfarça o sorriso crítico. Cito-o: “Casos há em que a impassibilidade do cocheiro na boleia contrasta com a agitação do dono no interior carruagem, fazendo crer que é o patrão que, por desfastio, trepou à boleia e leva o cocheiro a passear”.

 

 

Os gregos tinham uma noção de Tempo, Aion, para demonstrar como o passado e o futuro insistem ou subsistem no tempo presente. Em lugar de se acreditar num presente que reabsorve o passado e alimenta o futuro para poder se significar, solitariamente, como dimensão totalitária, os gregos instituíram uma reflexão sobre o tempo em que o futuro e o passado, a cada instante do presente, o dividem e o atomizam. Atomizam-no a fim de que o eterno presente do acontecimento entre num processo infinito de subdivisões em direções opostas, ao passado e ao futuro. Essa noção simultânea e acronológica das três dimensões do Tempo é que alicerça a Lógica do sentido, segundo Gilles Deleuze. Ela, por sua vez, nos ajuda a desconstruir o modo como o Presente, em literaturas nacionais, tem sido o momento único e privilegiado para a observação e para a análise do fato socioeconômico e político.

Aion deixa sobressair uma perspectiva de resistência sociopolítica e econômica que é artística e ética e tem a ver com a formação da memória verdadeiramente universal da cultura. Por negar a continuidade proposta pelo espaço ininterrupto, a qualidade desconstrutora da obra de arte é, ao mesmo tempo, temporal e atemporal. Já que a resistência se encena e se dá a ler no palco da dramaturgia e da reflexão ética, ela não é só política, é também desconstrutora das narrativas escritas em estilo realista-naturalista. As obras literárias que privilegiamos se reforçam na intimidade duma escrita artística coletiva, que é ao mesmo tempo “de” Fulano e “de” Sicrano, e que, por isso, ganha o alto som de megafone ético-político. Tomado à história sociopolítica e econômica, o instrumental objetivo da leitura realista-naturalista não dá conta das implicações e ressonâncias simbólicas e alegóricas de sentido, que alicerçam os valores oferecidos pela dimensão atomizada em milímetros do Tempo, anunciada por Aion.

 

 

Transformemos em trio a dupla de artistas até agora em foco. A tomada de posição político-literária do jovem poeta Mário de Andrade e do velho escritor Machado de Assis não é tão diferente da assumida em Minha formação (1900) pelo advogado e ativista político Joaquim Nabuco. Por ter tido desde cedo acesso à vida cosmopolita, Nabuco deprecia o fato socioeconômico e político pós-colonial por sua formação singular. O conhecimento adquirido em terras europeias se afiança como superior e vale tanto ou mais que a atuação de seu próprio corpo físico nos muitos e diferentes embates que enfrenta no Brasil escravocrata.

Nabuco, quando sai de casa, pisa a biblioteca do Museu Britânico. Pesquisa e escreve O abolicionismo, publicado em 1883.

Nabuco não faz arte. Minha formação, suas memórias, põe em circulação, entre os contemporâneos e os pósteros, o próprio corpo politizado do cidadão brasileiro. O corpo de Nabuco é “inteligência” e é “coração”. Estão em cena tanto sua formação intelectual cosmopolita quanto sua atuação pública no Brasil. Assemelha-se ele, se me permitem a comparação, a cantores como Caetano Veloso ou Milton Nascimento no palco da ditadura militar de 1964. A música e a fala desses cidadãos politizados são relativamente menos alarmantes que o perigo que correm os respectivos corpos físicos que, em palco ou palanque, se expõem à plateia.

Ao associar inteligência e coração, o corpo politizado torna-se também o reservatório onde se elabora a fala e a atuação de ativista político na cena nacional. No quarto capítulo de Minha formação, intitulado Atração do mundo, o cidadão politizado é inicialmente obediente à clave cosmopolita de análise da cena brasileira para mudar de opinião páginas adiante. Afirma, primeiro, que a pátria que fascina o coração não ilude a cabeça, visto que é o “grande espetáculo do mundo” que “prende e domina a inteligência”.

A mudança de opinião do cidadão não demora. Se há uma lei da inteligência cosmopolita superior à lei do coração, há também uma lei do coração superior à lei da inteligência. A quebra de expectativa do corpo politizado de Nabuco depende menos da situação do mundo e mais da governança que se responsabiliza pelo país. Eis o nó diabólico. Nabuco o desata. Em política — escreve ele em postura semelhante a que muitos de nós tomamos em nossos dias — a “lei do coração” só é forte e dominadora no momento em que a inteligência é desclassificada (1) pela idade avançada do cidadão ou (2) pela infelicidade da pátria.

O escritor e político Graciliano Ramos é também exemplo notável da superioridade da lei do coração em momento de infelicidade da pátria. Em 1936, no cárcere não é capaz de escrever o diário aguardado por todos à saída. A prática da escrita literária exige excitantes prazerosos que são confiscados da inteligência já torturada pelo confinamento. A anunciar o Estado Novo, sua experiência no cárcere só será escrita só no início da década de 1950, pelo exercício da memória. O tempo presente, em sua culminância, em sua brutalidade, só é bom conselheiro do coração. Na publicação póstuma das Memórias do cárcere é que se evidenciará o modo como a lei da inteligência, no corpo do ativista, foi anestesiada. É por efeito de paradoxo que se lê nas memórias o fracasso literário de 1936: “A minha decisão de traçar um diário [no cárcere] encolhia-se, bambeava, sem nenhum estímulo fora ou dentro. Os fatos repisados banalizavam-se. […] saiam naturalmente apagados, chatos — e irremediáveis. Prosa de noticiarista vagabundo”.

Retomo o fio da meada, reforçada pela interrupção. Nabuco enuncia a lei singular do coração em momento tardio da vida do cidadão e trágico da história nacional. Em suas memórias se lê: “cada vez sou mais servo da gleba brasileira, por essa lei singular do coração que prende o homem à pátria com tanto mais força quanto mais infeliz ela é e quanto maiores são os riscos e incertezas que ele mesmo corre”.

A razão cosmopolita se transformava numa ilusão e perdia suas irrigações vitais.

A lei singular do coração de cidadão politizado se faz ouvir mais forte diante duma situação socioeconômica e política desordenada, aflitiva e à beira do absurdo. De natural doentia em corpo de artista ou de ativista, a sensibilidade se torna hipersensível e explosiva frente à derrota de suas ideias e ideais. Basta ler as cartas escritas por Mário de Andrade em fins de 1932 e em 1938, quando decide deixar São Paulo e sair em busca do exílio carioca.

Já o romancista negro Machado de Assis se torna um homem (será “cidadão”?) cético no Brasil monárquico e escravocrata. O ceticismo se torna mais evidente a partir de 1881, quando publica Memórias póstumas de Brás Cubas, e se acentua publicamente em 1888 e em 1889.

José do Patrocínio não consegue compreender o cidadão politizado que esboça em silêncio e artisticamente a obra-prima Esaú e Jacó, que só será escrita e publicada no século seguinte, em 1904. Condena-o sem dó nem piedade: “O país inteiro estremece; um fluido novo e forte, capaz de arrebatar a alma nacional, atravessa os sertões, entra pelas cidades, abala as consciências. Só um homem, em todo o Brasil e fora dele, passa indiferente por todo esse clamor e essa tempestade. Esse homem é o Sr. Machado de Assis. Odeiem-no porque é mau; odeiem-no porque odeia a sua raça, a sua pátria, o seu povo”.

 

 

Machado de Assis, o homem politizado, sempre me intrigou por esse silêncio cético e principalmente por um detalhe demasiadamente humano e contraditório de sua prosa artística. Até há pouco esse detalhe permanecia misterioso para mim.

Intrigava-me a forma literária sorridente e sedutora que o escritor inventa para recobrir o ceticismo dramatizado na trama de suas melhores narrativas. Quando o ceticismo do cidadão descendente de escravizados ganha capítulos inesquecíveis, ele aparece escrito com entusiasmos de alegria interior. Ceticismo e frase literária, embora sejam ambos manifestação de um só corpo, são dois designs tão antípodas quanto, respectivamente, a inteligência e o coração de Joaquim Nabuco.

A disparidade entre o ceticismo tumular da intriga e o sorriso encantador (e até sedutor) da prosa, para simplificar e poder adiantar a análise, sempre me intrigou e eu nunca conseguia encontrar um modo de compreender a incógnita, a não ser que, como muitos críticos nacionais e estrangeiros, espichasse a imaginação crítica — e dou um exemplo possível — até a obra de grandes romancistas ingleses como Henry Fielding, célebre por seu Tom Jones.

Logo descartava as comparações com a ironia dos ingleses e a dos franceses lidos por ele. No design da escrita literária dos britânicos e gauleses eu notava o peso do romance picaresco espanhol. O bem-conceituado estilo ibérico nada tinha a ver com o tom contrastivo do ceticismo que Memórias póstumas de Brás Cubas entrega ao leitor. O ceticismo machadiano não deságua no deboche ou no escárnio, embora esse recurso se encontre num e noutro exemplo de sua obra. O estilo machadiano me parecia uma ousada e estranha forma de espiritualidade, a pairar como nuvem benfazeja acima da miséria terrena que ele experimentava e apreendia literariamente.

Esclareço meu descaso relativo pelo estilo irônico europeu. Não achava justo compreender o sorriso lunático da composição de O alienista pela escrita em estilo de chalaça do conto Teoria do medalhão. Leia-se esse curto trecho da teoria do medalhão, revelador do que é exceção picaresca na melhor prosa de Machado: “a chalaça, a nossa boa chalaça amiga, gorducha, redonda, franca, sem biocos, nem véus, que se mete pela cara dos outros, estala como uma palmada, faz pular o sangue nas veias, e arrebentar de riso os suspensórios”. Nada a ver com a espiritualidade da grande prosa machadiana, a planar sobre o ceticismo da trama.

Há uma incógnita, embora não houvesse dúvida. O ceticismo é a razão de ser do homem, um artista descendente da diáspora africana, praticamente autodidata (no sentido etimológico), encravado num país colonial e escravocrata. Diáspora, catequese, conversão e a escravidão pesam na história de família e na formação artística e cultural de Machado de Assis. Se não for inglês nem espanhol o sorriso que ele sobrepõe à prosa cética, seria ele autenticamente nacional?

Antes de ser motivação para a luta diária, o ceticismo machadiano é produto da sensibilidade humana do escritor e, como tal, imobilizador. Requer alguma reflexão. A negação vem arraigada à imagem de caminhante que acaba por sempre dar em beco sem saída. O pícaro se desenvolve bem, é jovem e saudável e tem espírito de trambiqueiro. Sempre encontra uma saída favorável e satisfatória em beco aparentemente sem saída. Para se safar, está sempre a exercitar a esperteza natural ou o jeitinho (para falar brasileiro). Faz das tripas coração e se vira como jacaré para não virar bolsa.

Brás Cubas, de 1881, sabe de antemão que a experiência da doença crônica se soma ao caminhar em beco sem saída. Em sociedade preconceituosa, o corpo do artista — semelhante ao do bêbado — guarda a possibilidade de se exibir em vexame na poltrona da Livraria Garnier ou no banco público do cais Pharoux.

O esperma, que o fecunda, entra no labirinto do corpo e à saída, na maturidade, não fecunda novo corpo. A esterilidade humana. Seu saldo de vida é uma série de negativas. “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”.

O imobilizado associa a escravidão à paralisação de sua personalidade africana pela conversão católica, e reganha a negatividade absoluta com a doença. Refugia-se noutra dimensão. O trabalho da imaginação se impõe e produz os quatro primeiros romances que publica. Não são o suficiente, e, principalmente, não chegam a impressionar o leitor. Há algo de falso na alta qualidade romântica e pós-colonial dos quatro romances. O ceticismo lhe vem da diáspora e do berço. Não vem só da época que vive e do clima sociopolítico dominante. Sua inapetência no tratamento literário da simbologia indígena — autenticamente nacional — é salientada por ele próprio e por todos.

Fecha-se o círculo da mobilidade e da imobilidade humana em momento em que o Estado brasileiro se torna soberano e a ser formatado pelos cidadãos e artistas, embora ainda relegue grande parte de seus habitantes à escravidão. Não há prosa mais desesperançada e brutal que a de Machado à época em que os vitoriosos Gonçalves Dias e José de Alencar se dão as mãos.

 

 

Gonçalves Dias é notável, mas viaja à Europa graças ao favor financeiro do Imperador. Corresponde-se com D. Pedro II. É genuíno ao escrever o poema Canção do exílio, o elogio do lá, o Brasil, se comparado ao cá, Portugal. Ao sair de casa, Gonçalves Dias pensa na viagem de volta. A recente autonomia da nação colonial e o otimismo dominante nos meios políticos e intelectuais clamam pelo talentoso e múltiplo José de Alencar. Ele se volta para o presente e enxerga o futuro. Volta-se também para o passado da colônia e, no Ubirajara, se arrisca na dramatização da ancestralidade indígena da nação.

Cada obra de Alencar recobre ou uma dimensão do tempo ou uma região do jovem país, que é comungada por todas e todos. Para Alencar não há beco sem saída na jovem nação. Ainda hoje, o brasileiro da gema não pode tomar caminho sem ver o pé de Alencar impresso na poeira ou no asfalto. Até nos cartórios sua presença se tornou obrigatória. Inventa prenomes para o povo soberano e só os presidentes norte-americanos e Hollywood lhe disputarão o trono nos cartórios. Iracema e Peri versus Washington e Marlon.

José de Alencar é o nosso escritor que seria cem por cento endossado por Benedict Anderson, autor do livro Comunidades imaginadas. Que belo o trabalho civilizatório dele. Alencar imaginou todas as possibilidades de comunidade no Brasil e as pôs em escrita para todo o sempre. Tem algo de profeta caboclo, sebastianista de boa cepa, como Ariano Suassuna. Machado é cético.

Mas sua prosa é sorridente e pede licença para sair do beco sem saída em que se encontra seu inventor.

Para retomar a terminologia de Anderson, a “comunidade imaginada” pelo primeiro grande romance de Machado de Assis é corpo estéril e é túmulo no cemitério. É cadáver a ser roído pelos vermes, a quem o romance é dedicado. Capistrano de Abreu é certeiro na resenha do romance de 1881: “O autor é o primeiro a reconhecer a filosofia triste, e por isso põe-na nas elucubrações de um defunto, que nada tendo a perder, nada tendo a ganhar, pode despejar até as fezes tudo quanto se contém nas suas recordações”. Lembro a definição de Renan para nação: “Ora a essência de uma nação é que todos os indivíduos tenham muitas coisas em comum, e que todos também tenham esquecido muitas coisas”. Embora nada esqueça, Machado pouco ou nada tem em comum com todos os indivíduos.

Há um capítulo de Brás Cubas, Notas, que poderia ter sido escrito por Graciliano Ramos quando na prisão. A prisão política não merece escrita literária, tampouco a sensação de beco sem saída no país em que se nasce. O capítulo Notas é um mero inventário de situações diferentes, que se sucedem. Ele termina por esta frase: “Isto que parece um simples inventário, eram notas que eu havia tomado para um capítulo triste e vulgar que não escrevo”. Não existe esse capítulo triste e vulgar nas Memórias póstumas de Brás Cubas, como não existe a prosa de noticiarista vagabundo nas Memórias do cárcere, do escritor alagoano.

Permanece a incógnita: o sorriso malicioso e sedutor da prosa cética machadiana.

Algo sobre ele me foi revelado há anos. Assistia às apresentações do geógrafo Milton Santos na TVE (Rio de Janeiro). Na época, o canal contava com bons intelectuais. Artur da Távola e Cláudio Bojunga, por exemplo. Milton não trazia no rosto a seriedade do tópico desenvolvido em fala e imagem, e me lembrava a leitura da prosa machadiana pelo crítico José Veríssimo. Veríssimo cita o Eclesiastes para se compreender Machado: “A vida é boa, mas com a condição de não a tomarmos muito a sério”. Ao discorrer sobre o medo que toma a todos, Milton inchava as bochechas. Achinesava os olhos. Seus lábios se abriam em sorriso.

E o que dizia o sorriso de Milton Santos? Eis um exemplo: “Jamais houve na história um período em que o medo fosse tão generalizado e alcançasse todas as áreas da nossa vida: medo do desemprego, medo da fome, medo da violência, medo do outro”.

O rosto na telinha cativa. Em atitude de espera, guarda o sorriso que se expandirá em fala. Seria a produção e difusão do saber a razão de ser da alegria que derruba o medo sofrido nas entranhas do corpo e até na pele? Admito que é mais fácil sorrir ao falar da elegância de um teorema resolvido, que o diga a imagem de Einstein apropriada pelos Rolling Stones. É muito mais difícil sorrir ao descrever as atrocidades cometidas em nome do que há de pior na raça e no mundo ditos humanos. O geógrafo estava de bem com a vida? Ou com o saber que ministrava?

Qohélet, o homem que sabe. A incógnita que a prosa machadiana esconde escapa às minhas noções parcas de docência e reencontra o homem que se sabe bíblico na cabeceira de sua cama. Quem sabe se aquele que carrega as nações e os povos do mundo às costas não deve se distanciar espiritualmente delas e deles para dispensar maior eficiência à cura do medo que toma a todos?

 

 

Algo de mais fascinante e complementar me foi revelado no mês de maio passado. Assisti simultaneamente a dois documentários sobre rock. O primeiro deles: 1971: The year that music changed everything, produção da Apple TV+. O segundo: “What’s Going On”: Marvin Gaye’s Anthem for the Ages, produção do canal CNN Internacional, dirigido pelo âncora Don Lemon.

O primeiro vídeo quer inserir o LP What’s Going On, de Marvin Gaye, no contexto de época dominada pela questão racial, pela política de gender, pelo uso generalizado de drogas e pela Guerra do Vietnã. O segundo documentário aprecia a gravação de 1971 em seu cinquentenário. É peça fundamental no alicerce em movimento político atual, o Black Lives Matter. Em suas canções, Marvin Gaye dramatiza admiravelmente os graves problemas por que a sociedade norte-americana e o mundo ocidental passam nas décadas de 1970 e hoje.

Atenho-me à busca de sentido para a incógnita machadiana. O compositor e intérprete norte-americano se senta no piano. Está impecavelmente bem-vestido e tranquilo. Mais a letra da canção caminha pelos ouvidos dos espectadores e ganha seus corpos dançarinos e mais se despe o lamento fraterno expresso pela canção. O intérprete se mostra nu diante do público e seu sorriso, no entanto, cresce. O rosto se se ilumina e a boca se abre em saber e espiritualidade pura. Qohélet.

Marvin Gaye é legítimo herdeiro da alegria esfuziante e contagiosa que as palavras sofridas do negro spiritual incorporam ao ganhar intérpretes múltiplos e ambientação comunitária. Os terríveis ensinamentos bíblicos se espiritualizam em corações fogosos e em corpos inebriados e inebriantes. Na letra da canção What’s going on, dolorida e tristíssima, Marvin lamenta a perda do irmão na Guerra do Vietnã. Eis a principal motivação para o LP. Lamenta também suas irmãs e seus irmãos em piquetes, a carregar cartazes que clamam por liberdade. Não punam a eles e a mim com brutalidade, diz a canção.

Cito dois versos: “Picket lines and picket signs/ Don’t punish me with brutality”.

Arrisco-me a uma hipótese que muitos julgarão absurda. Não há por que trair minha memória crítica. Sinto necessidade de expô-la na medida em que traduz a solução (artificial, ou não) a que cheguei ao refletir sobre o mistério da prosa sorridente de um grande e sensível escritor negro brasileiro que nasce e vive em nação colonial, de regime escravocrata. O jovem Machado de Assis não cursou Faculdade e não tem diploma. Somos todos autodidatas em matéria artística, mas muitos são formados numa das Faculdades tradicionais brasileiras — Direito, Medicina e Engenharia. Há no introspectivo, morador do Morro do Livramento, uma vontade ingênua de saber que os pequeno-burgueses desconhecemos. Sabemos que, na idade madura, ele tem o Eclesiastes como livro de cabeceira.

Sempre se corre um risco ao falar de e sobre o arisco Machado de Assis. Ao querer aproximar sua prosa da spiritual song, produto dos escravizados negros norte-americanos convertidos ao protestantismo, de que o cantor Marvin Gaye dá um belo exemplo em LP de 1971, tenho algumas salvaguardas. A principal dela é que Machado, nos anos de sua formação, não foi sensível à ancestralidade indígena que tocava Gonçalves Dias e José de Alencar e tocaria, depois de 1924, ao Mário de Andrade de Macunaíma e ao Oswald de Andrade do Manifesto antropófago. Insensível à ancestralidade indígena, como atesta o Instinto de nacionalidade (1873), Machado foi sempre sensível à ancestralidade judaico-cristã, e já lembramos o romance Esaú e Jacó e seu livro de cabeceira.

Numa primeira definição, Ancestralidade seria um princípio identitário remoto no tempo. Coletivo e impessoal, se instituído por sistema pedagógico-escolar. Pessoal e íntimo, se eleito exclusivamente pelo indivíduo. Na forma pessoal e impessoal, a Ancestralidade é sempre passível de ser transferida a um grupo de indivíduos ou transplantada a uma comunidade, desde que os tempos sejam democráticos. (A atual presidência da Fundação Palmares evidencia a necessidade de liberdade democrática para a discussão de Ancestralidade no Brasil. O que fazer numa biblioteca que sofre o expurgo de livros essenciais, as ferramentas de trabalho e de reflexão?)

O princípio de Ancestralidade na condição de parte negligenciada da formação pedagógica-escolar da cidadã e do cidadão brasileiro me ocorreu pela primeira vez nos anos 1980. Aparecia em conversas com Lélia Gonzalez, nossa colega e amiga na PUC-RJ. Anos depois, pude citá-la extensivamente no ensaio A democratização no Brasil: 1979–1981, publicado em 1998 e hoje no livro O cosmopolitismo do pobre. Tinha à mão a entrevista que Lélia concede a Heloísa Buarque de Hollanda e a Carlos Alberto Messeder Pereira, incluída no livro Patrulhas ideológicas, de 1980.

Permitam-me que busque a citação de Lélia naquele ensaio. De início, ela denuncia o processo de embranquecimento por que passa o negro quando submisso ao sistema pedagógico-escolar brasileiro, anunciando a futura batalha do multiculturalismo contra o cânone ocidental. Continuo a usar as palavras dela, agora reproduzindo-as ipsis litteris: “e passei por aquele processo que eu chamo de lavagem cerebral dado pelo discurso pedagógico-brasileiro, porque na medida em que eu aprofundava meus conhecimentos, eu rejeitava cada vez mais a minha condição de negra’”.

Em década de democratização no Brasil, Lélia continua com sorriso machadiano. Cito-a: “Veja, por exemplo, a noção de Democracia. Se você chegar num Candomblé, aonde você vai pra falar com a Mãe de Santo tem de botar o joelho no chão e beijar a mão dela e pedir licença, você vai falar em Democracia!? Dança tudo.”

Seria exagerado dizer que Machado tivesse sido mais sensível à ancestralidade judaico-cristã que à tradição pedagógico-escolar que nos torna afim à identidade oferecida pelos princípios identitários greco-romanos? Talvez exagere na pergunta, mas ela não é de todo injustificada. Em matéria restrita à literatura, uma preferência é detalhe definitivo e Machado a compartilha com Voltaire. Os dois mais famosos poemas épicos da tradição ocidental não são do agrado deles. Machado prefere os enredos domésticos e os grandes dramas comunitários que enriquecem a narrativa bíblica. O ser humano conhece e reconhece sua dimensão escorregadia e faltosa, algo que Samuel Beckett dignificará na peça Fim de jogo. Nenhum dos dois, nenhum dos três se enreda na arrogância (hubris).
A vaidade, levantada pelo Eclesiastes, tem sido a boa vacina.

Novo exemplo. Esaú e Jacó teria sido intitulado originalmente Ab ovo, em alusão à Poética, de Horácio, e à mitologia grega. No prefácio do romance, é o próprio autor, Machado, que afirma ter mudado o título original para se referir aos gêmeos do Pentateuco. Voltaire não esconde seu enfado com Homero no capítulo 25 do conto Cândido, ou o Otimismo. Cito Voltaire: “Cândido, ao ver um Homero magnificamente encadernado, louvou o ilustríssimo por seu bom gosto. ‘Aí está um livro’, disse ele, ‘que fazia as delícias do grande Pangloss, o melhor filósofo da Alemanha. […] fizeram-me acreditar outrora que eu teria prazer em lê-lo; mas essa repetição contínua de combates que são todos parecidos, esses dois que agem sempre para nada fazer de decisivo, essa Helena que é um motivo de guerra e que é apenas uma atriz da peça; essa Troia que se assedia e que não se toma, tudo isso me causava o mais mortal dos tédios’”.

A discrepância entre o ceticismo machadiano e sua prosa sorridente e sedutora tem como par uma ancestralidade comum à spiritual song — canção em tom melódico, com passagem bíblica como tema. Se cantada em ambiente coletivo, a spitirual song contamina o ouvinte e a plateia. Ganha um tom alegre, que anuncia felicidade futura no presente. Em auditório e em templo, a expressão comunitária é a de júbilo que se entremeia com a temeridade proposta à meditação de todos. A canção de lamento pessoal ou coletivo, cuja Ancestralidade passa por caracterização judaico-cristã, é motivo para a reflexão e a alegria espiritual.

Ou a discrepância em pauta teria como futuro par a Canção de amor de Albert J. Prufrock, de T. S. Eliot: “Tempo haverá, tempo haverá/ Para moldar um rosto com que enfrentar/ Os rostos que encontrares;/ Tempo para matar e criar,/ E tempo para todos os trabalhos e os dias em que mãos/ Sobre teu prato erguem, mas depois deixam cair uma questão;/ Tempo para ti e tempo para mim,/ E tempo ainda para uma centena de indecisões,/ E uma centena de visões e revisões, / Antes do chá com torradas” (tradução de Ivan Junqueira).

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