Você lê a seguir um dos contos que integra Gótico Nordestino de Cristhiano Aguiar. O livro sai no começo de fevereiro pelo selo Alfaguara da Companhia das Letras.
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Na margem esquerda da estrada, o esperado e amado incêndio.
A fumaça, a coluna de fumaça, era um verme instável.
As telas dos nossos celulares exibiam o app TPF — Tá Pegando Fogo — a coisa mais importante no entretenimento global desde a criação do primeiro Pokémon. Se o verão carrega o fogo, traz também a febre: aberta a temporada de incêndios, milhares de brasileiros se jogam na caçada, filmando, fotografando, compartilhando nas redes sociais todo tipo de fogo, brasa, incêndio, chama, fogaréu, queimada.
No acostamento, um caminhão da brigada de bombeiros. Nosso comboio estacionou ali perto. Desligamos os faróis dos carros, terminamos de vestir os equipamentos de proteção e iniciamos a procissão. Passava das dez da noite e aquele trecho da estrada, nas imediações de Itabaiana, não tinha iluminação. A noite estava polvilhada de estrelas, mas a mancha da fumaça, fazendo o papel de uma Via Láctea reversa, a rasgava de alto a baixo.
As autoridades constituídas ainda não compreendiam o nosso hobby. Nos boicotavam com bobagens sobre segurança, normas e por aí vai. Alertavam que fogo não se domestica; fogo não tem rosto nem nome, não tem razão nem partido; é, na melhor das hipóteses, um parceiro de trabalho (ou de miséria). Claro, risco, risco mesmo, existe. Há risco ao entrar em um elevador, ao comer uma maçã (Eva e Branca de Neve!), no ar que respiramos.
Nosso grupo fez uma caminhada de uns doze minutos pelo descampado até o fogo. Não era possível enxergar os bombeiros, embora manchas — um contraste entre manchas cinzentas e marrons, movimentos — aos poucos entrassem em nosso campo de visão. Ali no campo, só grama rala. E mais nada. Ou quase nada — esboços de árvores, sugestões de arbustos, acho que uma ou duas casas tristes, semiadormecidas, lembrando as casas das minhas avós.
Que tipo de chamas vamos encontrar, a gente se perguntava aos cochichos.
A brincadeira funciona como qualquer coleção. Como um jogo de cartas colecionáveis, a coleção de selos do seu pai ou o boneco de super-herói protegido por uma redoma e exposto nas Comic Cons.
Tem as chamas frequentes no baralho, pouco elaboradas, crespas, balançando ao som do vento sem nenhum rigor. É um fogo Feijão com Arroz. Um fogo batendo o cartão, sem gozo, sem classe, sem criatividade. Fogo sem chama. Um incêndio é sempre um incêndio, então mesmo um desse tipo vale a pena, só que estamos na estrada pra capturar os coringas — o dragão raríssimo, cromado. O fogo Cocô, por exemplo, já é uma boa aquisição, ele se enrola numa espiral e vai formando uma pontinha no topo; o fogo Palhaço, mais raro, porque tem quase um sorriso no meio, um senso de humor, um olhar psicopata que se volta para nós (o que não deixa de arrepiar, já pensou se o fogo construísse uma civilização, ou pudesse dar umas risadas boas, gostosas, um arroto formado por pedaços incandescentes de carvão?); o fogo Exterminador do Futuro, porque segue uma marcha rápida, imparável, os músculos flamejosos de um Arnold Schwarzenegger soltando balas--faíscas a torto e a direito; o fogo Harry Potter, porque solta umas bufas mágicas pelo vento, umas explosões nascidas de verbetes de dicionário de latim; o fogo Merlin, cujas belezas só um olho mais treinado captura, não o olho desses neófitos e neófitas... Ah, o fogo Merlin... Azulando à medida que passeia movido por um pacifismo destrutivo. O bonito de se ver no fogo Merlin são suas chamas curtas, precisas. Carbonizam passarinhos, flores, plantas, garrafas de plástico, bonecas, dedos, deixando pra trás farelos de grafite. E quanto ao fogo Fênix? Raríssimo, raro; o fogo Afrodite é mais um espelho do que uma presa — é o maior dos incêndios, porque não tem como pendurar nada nele, nenhuma palavra, ele vai esmagando a gente. Dá até um medo.
A cada novo incêndio que encontramos, recordo emocionado do primeiro. É uma lembrança da infância, claro. Marcante como encontrar, no quintal, o primeiro pássaro morto, ou quando o gato de estimação, o Miau-Miau, deixa no tapete da entrada algum bicho destroçado. Foram uns livros, transformados em fogueira no terreno baldio da rua onde passei minha infância, em Recife. Não faço ideia do motivo de queimarem, mas aprendi o que é um livro. É um troço meio pesado, bruto, feito de eixos verticais e horizontais. Um livro é um dinossauro que o meteoro esqueceu de exterminar. A gente abre um livro e encontra um mistério dentro, a cascata de linhas-frases. Mas tem a decepção. “Só isso?”, a gente pergunta pro livro, porque ao redor dele se formam umas promessas, mas daí, quando a gente abre... Um livro em chamas é uma concha se fechando. E, de tanto se fechar, a concha se anula largando uma pérola de cinzas, que graças a Deus é varrida pelo vento. Tudo vira espírito. Se espalha pelo ar — tosse, tosse.
Os bombeiros formavam uma meia-lua ao redor das chamas. Usavam terra, pás e leques como armas contra o fogo. Não identificamos mangueiras nem água.
Hoje em dia, com a moda de perseguir incêndios, os bombeiros, se bem que a contragosto, estão treinados para lidar com colecionadores como nós. Uma bombeira logo nos percebeu e se afastou do seu grupo. Correu na nossa direção, gritando e sacudindo os braços acima da própria cabeça. Nem eu nem ninguém do nosso pequeno e seleto grupo entendeu o que ela dizia. A representante dos bombeiros gesticulou; gesticulamos de volta, sacudindo nossos aparelhos celulares; braços dela pra lá, braços nossos pra cá. Informamos o quanto tínhamos viajado e que estávamos preparados. Usávamos máscaras e viseiras adequadas; nossa internet era 7G.
As chamas ocupavam uma área circular razoável. A luz, porém, não escaldava mais. Morna, ficava submissa ao chão. Nosso grupo acabou se entendendo com a bombeira. Ao chegarmos a um acordo, ela nos conduziu mais próximo às chamas e nos integramos aos seus colegas, que tinham cruzado os braços e pareciam relaxados, ou entediados.
Perguntei aos bombeiros se continuariam a agir.
— Acho que tá tranquilo, moço — disse um.
— Melhor nem incomodar mais — falou uma outra.
— Deixa assim — concluíram.
Alguém riu. Estalos e estrelinhas de fogo pegavam carona no vento pesado. Os bombeiros lançaram um último olhar na direção do incêndio, depois deram as costas, seguiram rumo ao acostamento e foram embora.
Ao contrário dos bombeiros, juramos fidelidade ao incêndio. Nos sentamos no chão, comemos batatinhas, abrimos cervejas. Tiramos fotos, fizemos vídeos. Compartilhamos. Nossos celulares, brilhando na noite quente, também nasciam do incêndio, do rosto frio, rouco, do incêndio.
A força da chama diminuiu com o passar do tempo. Ficamos matutando. Eu fiquei admirando as colunas espessa e subindo pros céus, colunas de sacríficos... Sim, é verdade que existe prazer na fumaça. Risco e morte. O coração da gente nessas horas de caçada vai explodindo. Começamos a cantar. Eu canto a fumaça: em 1986, uma aldeia africana, localizada perto de um vulcão e de um lago, acordou morta. Não apenas os homens e mulheres e crianças da aldeia. Pelo chão, em todo o perímetro da aldeia, um tapete de vacas e milhares de moscas, defuntas. Poucos sobreviveram à morte. Os sobreviventes relataram que, horas antes da tragédia, o imenso lago explodira. Suas águas furiosas subiram aos céus no formato de uma água-viva; em seguida, tremores foram sentidos — algo tinha explodido no coração do lago, algo de fogo e lava tinha escapado por debaixo da terra, vazado, hoje sabem os investigadores, os cientistas, dos incêndios interiores do vulcão. Como uma serpente, a fumaça, invisível, carbônica, se esgueirou pelo chão, pelas frestas, balançou lanternas. E sufocou.
As notificações pipocaram nas nossas telinhas. O app avisou: havia um outro incêndio — dos grandes! — perto dali. Arrumamos nossas coisas (o lixo ficou pra trás) e corremos para as vans. Inserimos as instruções de localização no painel dos pilotos automáticos e fomos embora. Pouco depois de partirmos, um outro grupo de caçadores de incêndios acabava de chegar. Chegaram tarde, seus trouxas! Perderam o melhor do espetáculo.
A estrada continuou para nós — linda.
Volta e meia, nossos faróis capturavam o vislumbre de alguma família, ou de duplas ou trios de homens, caminhando pelas beiras da estrada, talvez de volta para casa. Eram feitos de carvão, eram feitos de salitre. Vestiam roupinhas humildes. Carregavam enxadas e objetos enrolados em trouxas de pano. São diferentes de nós, que temos nossas vitaminas, nossos cremes, nossos apps, nossos robôs, nossos 7Gs e ares-condicionados. A temporada, rá!, realmente estava quente! A prova? Dezenas de focos incandescentes nas trevas. Por todos os lados, que beleza!, a paisagem ondulante queimava, porém ao longe. Desviar da estrada e invadir as brenhas e propriedades alheias podia contar vários pontos no app, mas nosso grupo buscava mais o espetáculo do que a competição. E, o app prometia, havia um espetáculo de fácil acesso poucos quilômetros mais à frente.
Tantos incêndios deixavam o ar mais denso, enrolado para dentro de si. Insetos voavam em disparada, se espatifando em nossos para-brisas; animais corriam pela pista e pelo acostamento — as luzes das vans obrigavam seus olhos a brilhar. Alguns de nós aproveitaram para tirar um cochilo antes de chegar à presa principal. Não eu. Meu corpo se agitava, as pernas tremiam. Forcei meus olhos ao máximo. Contemplei as luzes alaranjadas em combustão. Apreciava uma por uma, tentava não esquecer nenhuma delas. Se adormecesse agora, sem dúvida eu sonharia com incêndios. Era uma ideia bonita, não era? Cada um dos meus companheiros adormecidos, que lindo seria se tivessem sonhos incendiários! Porque existe o fogo invisível também. Ser invisível não é privilégio apenas da fumaça. Anos atrás, tive uma namorada em Brasília e, numa das minhas visitas, ela me levou a uma construção abandonada, um teatro na Asa Norte. Faltou dinheiro, ou o dinheiro escorregou para bolsos alheios, ela explicou.
Não, não. Não era isso.
Contemplando a carcaça do teatro, o que eu tinha visto ali? O que eu tinha visto, senhoras e senhores, bem ali? Uma escultura. Uma escultura feita menos por mãos humanas e mais por uma desvontade. Ninguém usou cinzel. Que nada. Usaram chamas. Sim. Chamas transparentes. Viradas pelo avesso por cima das nossas cabeças, por cima do teto e do bom gosto — gás vulcânico. Chamas de lagos se abrindo como cabeças partidas de águas-vivas... Que estilo, que estilo aquelas chamas tinham?
— Chegamos — alguém falou.
A freada brusca me acordou. Eu tinha escorregado num sonho, sem perceber quem era, ainda, real.
Descemos das vans. O incêndio à nossa frente — as asas de dragão abertas — iluminava toda a terra e todo o céu. Um antigo engenho, transformado em hotel de beira de estrada e museu, queimava: a casa-grande, a capela, as casinhas, o curral, a moenda, as casas de caldeira e fornalha, os jardins, o mato rasteiro, as cercas... Tudo que pudesse existir, tudo, tudo que ainda pudesse ter vida, queimava.
As autoridades — polícia, bombeiros — ainda não tinham chegado, mas dois ou três dos seus drones já sobrevoavam tudo. Um grupo de caçadores tinha chegado antes de nós. Filmavam, tiravam fotos, compartilhavam. Outras pessoas se aglomeravam, quem sabe fossem trabalhadores ou moradores das redondezas: crianças, mulheres, homens, todos com o rosto esfumaçado.
Nosso grupo batia palmas. Enquanto isso, ao fundo, as criancinhas choravam e a madeira crepitava.
Os grupos debatiam como classificar. Primeiro, achamos que se tratava de um grandioso fogo Akira, mas eu defendi, e todos me seguiram, a ideia de que o espetáculo era ainda maior, mais precioso. O engenho tinha se transformado num raríssimo fogo Fênix. Seu calor retorcia a pele das plantas, das paredes, das nossas caras. Para além dali, nada mais existia. Não existiam palavras, internet, fome, retorno.
Como, como aguentar tanta beleza, a gente comentava.
Como suportar um lago de fogo que é um deus que passeia?
Excitados, abalados, apaixonados, nos sacudimos e dançamos.
E, na noite final do mundo, começamos a ser devolvidos ao fogo.