Sociologia do Trabalho inédito MatheusMelo maio.23

 

Aqui você lê um trecho de As origens da sociologia do trabalho, de Ricardo Festi (UnB), lançado neste mês pela Boitempo Editorial. As notas de fim são do autor do texto.

 

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Dois fatos que aparentemente poderiam ser considerados banais na vida de alguns intelectuais nos servem de ilustração do espírito que marcou a geração de sociólogos formada na França e no Brasil no mundo pós-Segunda Guerra Mundial. Trata-se de dois momentos particulares, na existência de duas pessoas, ocorridos no final dos anos 1940, quando eles não imaginariam que seus percursos se cruzariam em algum dia e que cada um deles se tornaria a seu modo um dos mais importantes sociólogos de seu país […]. Ambos tiveram papéis fundamentais na direção e na elaboração de programas de estudos e, principalmente, na formação de novas gerações por meio de suas obras, de seus ensinamentos e de sua influência institucional.

No inverno de 1947-1948, na cidade operária de Raismes, região de Valenciennes, na França, próximo à fronteira da Bélgica, Alain Touraine, um jovem normalien, que havia abandonado, no início de 1947, o curso de história em uma das mais prestigiosas e elitistas instituições de Ensino Superior de seu país, descobriu a grande obra de Georges Friedmann, Problèmes humains du machinisme industriel (“Problemas humanos do maquinismo industrial”), publicada pela primeira vez em 1946. Naquele ano, Touraine havia decidido conhecer de perto as experiências “socialistas” do Leste Europeu, passando uma temporada na Hungria e na Iugoslávia. Quando retornou à França, agitada pelas históricas greves de 1947, resolveu trabalhar como operário numa mina de carvão. Foi naquele momento que caiu em suas mãos o livro do velho sociólogo. A importância desse encontro justifica a longa reprodução de suas memórias:

Ele me desconcertou. Publicado em 1946, era uma obra muito nova para a França, pois a universidade francesa não se interessava pelos problemas contemporâneos do trabalho, e sobretudo do trabalho operário, objeto provavelmente muito vulgar para nossos grandes espíritos. Friedmann foi o primeiro a estudar seriamente as fábricas e a produção, a desenvolver críticas contra o taylorismo e suas pretensões científicas. Ele evocou as objeções de fisiologistas, de psicólogos e de sociólogos; tentou dar uma primeira imagem da organização do trabalho por meio das primeiras grandes enquetes americanas, das atitudes coletivas do trabalho. Eu li esse livro com exaltação. Ele falava de tudo aquilo que me interessava. Ele se aventurava longe do mundo escolar, falando de tudo o que ingenuamente eu teria chamado de “a vida”. O mundo operário, ou seja, o trabalho material de produção, uma classe social e o movimento operário tinham irrompido em minha existência. Para mim, jovem burguês hiperescolarizado, a Libertação e o período de 1945-1947 (os comunistas no governo) tinham mudado tudo. Mas a irrupção de minha experiência vivida com a classe operária como realidade e como força foi mais concretamente importante. Se me tivessem pedido para desenhar a sociedade, eu teria feito em seu centro uma fábrica ou uma mina.[nota 1]

Esse relato exemplifica um típico caso em que o encontro entre um indivíduo e uma obra impõe uma inflexão na trajetória pessoal e intelectual. Exemplos como esse não faltam na história das ideias. No entanto, poucos se mostraram tão definidores e capazes de demarcar o início de uma nova tradição de pensamento e de conhecimento, como foi, no caso, a sociologia do trabalho.

A obra de Friedmann presentava uma nova perspectiva de produção do conhecimento que parecia preencher a distância que separava sua formação intelectual e o mundo do trabalho, o Quartier Latin [bairro onde fica a Universidade Sorbonne] e Billancourt [onde Touraine conduziu estudo de campo em uma fábrica da Renault]. “Eu não era conduzido pela teoria ou pelas hipóteses; queria simplesmente refletir sobre o trabalho e não mais somente sobre textos”, escreveu Touraine.[nota 2] Tão logo terminou de devorar o livro, o jovem estudante-operário enviou uma carta a Friedmann, que lhe respondeu calorosamente e recomendou que regressasse de imediato a Paris a fim de terminar o curso de história na École Normale Supérieure e se juntar ao recém-criado Centre d’Études Sociologiques (CES), compondo assim a equipe que levaria frente as primeiras grandes pesquisas empíricas sobre o mundo do trabalho francês. Durante as duas décadas seguintes, Touraine não fez outra coisa senão se dedicar a construir um estilo de pesquisa e uma teoria que fossem capazes de explicar o mundo do trabalho e a consciência operária da sociedade moderna, tendo sua influência ido muito além do mundo acadêmico francês e alcançado, por exemplo, jovens intelectuais da América Latina.

No Brasil, na mesma época em que Touraine descobria Friedmann e dava um passo para a sociologia, Florestan Fernandes, um jovem e brilhante acadêmico, havia acabado de defender sua dissertação de mestrado sobre a organização social dos Tupinambá na Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo (ELSP), instituição de ensino e pesquisa fundada em 1933. Escolhido para ser o orador das turmas de bacharéis e mestres em ciências sociais dessa escola, destacou, em seu discurso pronunciado em 1º de março de 1948, uma passagem de Marx segundo a qual “a humanidade não se propõe nunca aos problemas que ela não pode resolver, pois, aprofundando-se a análise, ver-se-á sempre que o próprio problema só se apresenta quando as condições materiais para resolvê-lo existem ou estão em vias de existir”.[nota 3] Em seguida, complementou que:

Esse trecho foi extraído de uma obra de Marx e indica claramente que a função da ciência consiste em obter um conhecimento preciso das condições em que os problemas sociais emergem e podem ser resolvidos. De acordo com tal ponto de vista, as fronteiras entre o conhecimento teórico e o conhecimento aplicado só se evidenciam em relação ao próprio processo social, sendo as afirmações de outra categoria meras especulações “acadêmicas”.[nota 4]

Para assegurar que sua tese não fosse deturpada ou má recebida num meio social construído pelas elites culturais paulistas e para elas, ou mesmo que fosse tachada de intervenção política –, Fernandes cita, logo em seguida, o funcionalista Bronislaw Malinowski, afirmando ser um erro enorme compreender a antropologia prática diferentemente da antropologia teórica ou acadêmica. “A verdade, diz Malinowski, é que a ciência começa com as aplicações. À medida em que uma ciência é verdade, ela é também ‘aplicada’ no sentido que é experimentalmente confirmada”.[nota 5] Fernandes manifestava, prematuramente, uma concepção de ciência e de sociologia que viria a desenvolver e concretizar nas duas décadas seguintes, após substituir o francês Roger Bastide na direção da cadeira de Sociologia I da FFCL-USP.

O discurso de Fernandes sobre o papel da ciência e o entusiasmo de Touraine com o livro de Friedmann ilustram a preocupação que marcou todos aqueles que trabalharam em seus entornos, ao longo das décadas de 1950 e 1960, ou seja, a produção de um conhecimento capaz de intervir na realidade em plena transformação. Em outras palavras, esses estudiosos tinham a preocupação não apenas de compreender o processo de modernização das sociedades, mas também de influenciar seus desdobramentos, tornando-se, eles próprios, sujeitos e não meros espectadores.

Os tempos acelerados vividos por esses dois homens exigiam deles, como cientistas sociais, respostas rápidas que fossem muito além de uma compreensão contemplativa da realidade. A vontade política e a vocação intelectual, presentes nesses dois jovens, encontraram os meios acadêmicos necessários para o desenvolvimento de suas aspirações intelectuais. No entanto, as questões colocadas e as respostas dadas por eles expressavam uma visão de mundo que acompanhava e refletia os embates dos anos 1950 e 1960.

O projeto de modernização formulado e buscado nas três décadas seguintes ao término da Segunda Guerra Mundial acabou por se tornar uma utopia que alimentou o engajamento de toda uma geração de políticos e intelectuais. Sua efetivação dependia do engajamento dos diversos sujeitos, não apenas no terreno da política, representados por seus movimentos sociais e pelos aparatos de poder, mas no cumprimento de suas funções no interior da complexa divisão do trabalho. A base de sustentação desse projeto estava, portanto, no desenvolvimento das forças produtivas, ou seja, na consolidação e na hegemonização daquilo que se entendia ser o mais eficaz modelo de produção, o taylorismo-fordismo. Por conta disso, as implicações das transformações tecnológicas e organizacionais no trabalho e na sociedade foram o primeiro grande tema abordado pela sociologia da modernização – gênese temática para a criação e o desenvolvimento da sociologia industrial e, posteriormente, da sociologia do trabalho.

Também foi objeto de investigação e reflexão o que se considerava serem as razões para a resistência à modernização da sociedade. Abordar a desintegração do tradicional, assim como a sobrevivência do arcaico no moderno, foi uma das perspectivas de análise das sociologias francesa e brasileira das décadas de 1950 e 1960. Nesse contexto, a emergência da América Latina como nova região da aceleração da industrialização e da urbanização, com suas singularidades tão marcantes, colocou novos desafios para pensar a modernização e o papel dos sujeitos políticos nesse processo.

Touraine trabalhou com Georges Friedmann, ao lado de Jean-Daniel Reynaud e Michel Crozier. Eles compuseram a geração que reorganizou a sociologia após a libertação da França da ocupação nazista. Nesse processo, novas instituições de ensino e pesquisa foram criadas, onde a sociologia do trabalho pôde florescer, tais como o Centre d’Études Sociologiques, a VIe Section de l’École Pratique des Hautes Études, que abrigou o Laboratoire de Sociologie Industrielle, e, por fim, o Institut des Sciences Sociales du Travail.

No Brasil dos anos 1950/60, vários sociólogos da USP se voltaram aos estudos sobre o mundo do labor e da indústria. O conjunto de suas investigações e publicações ajudou a fundar a sociologia do trabalho, entendida aqui de uma forma ampla e não apenas como uma especialização das ciências sociais. Foi um empreendimento que envolveu acadêmicos muito distintos e de cátedras diferentes, como Wagner Vieira da Cunha, Juarez Brandão Lopes, Azis Simão e Fernando Henrique Cardoso, entre outros. Nesse processo, Fernandes, ao lado de Fernando de Azevedo, exerceu importante papel político, como no caso da criação do Centro de Sociologia Industrial e do Trabalho (Cesit), em 1961.

Foi no final dos anos 1950, que os percursos de Fernandes e Touraine – e daqueles que estavam aos seus redores – se cruzaram e deram origem à relações políticas, pessoais e intelectuais que se desdobraram em diálogos teóricos e agendas de pesquisas em comum, reforçando uma antiga relação franco-brasileira e, sobretudo, contribuindo para moldar uma nova tradição de sociologia, a sociologia do trabalho.

 

NOTAS

[nota 1] Alain Touraine, Un désir d’histoire (Paris, Stock, 1977; coleção Les Grands Auteurs), p. 44-45.

[nota 2] Idem, ibidem, p. 46.

[nota 3] Karl Marx, citado em: Florestan Fernandes, A sociologia no Brasil: Contribuição para o estudo de sua formação e desenvolvimento (Petrópolis: Vozes, 1977), p. 80.

[nota 4] Idem.

[nota 5] Bronislaw Malinowski, citado em: Florestan Fernandes, A sociologia no Brasil, p. 81.

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