Abaixo você lê o conto Correspondências, da escritora e crítica literária Vilma Arêas. A ficção integra o livro de inéditos Tigrão, publicado dentro da publicação que reúne a obra completa de Vilma, intitulada Todos juntos, lançada pela Fósforo Editora neste mês. Todos juntos foi organizado por Samuel Titan Jr.
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CORRESPONDÊNCIAS
(A)
Anteontem nasceu Luana, minha sobrinha-neta e primeira neta do meu irmão Vicente. Ele, preso no leito da UTI, estava ansioso para recebê-la. Achava que se fosse homem seria também Vicente. Achou maravilhosa a ideia de Luana em breve fazer parte da família.
Infelizmente não houve tempo para nada. Chorei quando recebi a notícia, a cabeça cheia de dor e coisas vagas, sem contornos. Eram insuportáveis as duas sensações, fortes e opostas: a alegria pela chegada de Luana e a dor da perda de meu irmão.
Fui então às seis horas da manhã tomar café com Gisa, que sai às sete e meia para o trabalho. Voltei para casa meio às cegas, com o coração apertado e muito comovida.
Foi então que levei o maior tombo da paróquia. Caí e não procurei me levantar. Fiquei no chão, cara afundada na poeira das pedras, chorando.
Pessoas correram, me levantaram apesar de meus protestos, me sentaram numa calçadinha, me deram água com açúcar, perguntaram se eu queria chamar alguém, se eu estava tonta, se a dor era muita, se eu queria que me levassem para casa. Quem sabe para o hospital. Só faltaram me dar um leitinho e mudar minhas fraldas. Foi pena não terem me oferecido colo. É disso que precisamos em situações de humilhação. Cair é quase tão vexaminoso quanto apanhar na rua.
Mas eu não quis nada, calei o grito, tratei de me afastar mancando. Passei o dia botando gelo na mão e na perna. Hoje estou bem melhor.
Me lembro de Vicente falando em várias ocasiões, com sua risadinha trocista, que eu sou uma vaca premiada, de tanta saúde. E eu respondia chateada, achando que era mais injúria que elogio:
— Vaca pode ser, mas premiada é outra coisa. Ele ficava irritado, afirmando que eu não tinha senso de humor.
E eu sempre dizia:
— Você é que começou.
Irmãos não envelhecem um para o outro. Ficam crianças para sempre.
É isso aí. Acho que por essa porta do tombo vou sair dessa dor de perder Vicente. Sair também do remorso. De quê? Não sei. Talvez de continuar viva.
Entrou pela perna do pato, saiu pela perna do pinto. Quem quiser que conte cinco.
(B)
Enquanto tricota e o novelo de lã vai dando saltinhos, Betinha conversa com o marido morto, assim que ele aparece na televisão. Por isso não perde o Jornal Nacional por nada deste mundo.
— Olha que voz linda ele tem. Aliás, sempre teve. Risadinha.
— Desde mocinho, quando nos conhecemos.
Também interpreta o celular do neto como a caixinha de rapé do pai, e procura inutilmente os fósforos para acender o fogão.
— Esta casa não tem mais fósforos? Como querem que eu fique calma?
Aponta um retrato recente.
— Quem é essa aí?
— Você, mamãe.
— Eu não, está louca?
Vai ao quarto, volta com o retrato de casamento, os noivos abraçados e sorridentes, ela com o cabelo ruivo embrulhado no véu.
— Eu sou esta aqui.
Passado um tempo, pergunta à filha.
— Quem é a senhora?
— Sou Roberta.
O rosto se ilumina.
— Ah, conheci uma Roberta tempos atrás.
A filha abraça a mãe, às lágrimas.
— Mas sou eu, mamãe, sou Roberta, sua filha.
Ela olha a mulher soluçando com um risinho disfarçado, como se pensasse:
— Essa aí está louca de pedra.
Não adianta insistir. Betinha só se entende mesmo com Janete, amiga da mesma idade, que por sua vez conversa com o falecido na praia, ouvindo a voz que se mistura ao som das ondas, batendo na areia.
(C)
quinta-feira, 5 de agosto de 2010, 17h45
Querida Vilma,
Li e reli os contos — muito bons! Excepcionais. Excepcional “Encontro”.
Então era pura neura sua dificuldade. As histórias estão saindo certeiras de seu bojo.
Não há nada desnecessário e vieram sopradas por um ventinho de poesia. Viva! Sobre o título “Butique Espiritual”, te confesso que continuo incapaz de uma afirmação. Acho que não gosto muito, mas a opinião sai sem convicção. O beijo mais carinhoso.
Clara
Que bom, Clara, fico mais animada. Pra frente, cambada! Oba!
Quanto ao título também vou pensar mais, mas acho muito engraçado. Era como eu me referia ao cemitério onde tia Marinela adorava passear e... surrupiava qualquer trocinho quebrado nas sepulturas. Me deu até uma cabeça de anjo que estava caída e que guardo até hoje. Tia Isabel dizia: “Marinela, você é uma cristã. São coisas dos mortos”.
Ao que ela respondia: “Os mortos não se incomodam. Eles não ligam mais pra nada”.
Que tal?
Beijinho.
Você sabe que parece que ligam sim? Sempre gostei dos cemitérios no fundo dos adros das igrejas de Ouro Preto, e sempre me preveniram que não tirasse nada de lá.
Pois quando filmava O Aleijadinho, em Sabará, com Pedrinho de Moraes como fotógrafo, Joaquim e ele deram uma volta no cemiterinho da Igreja do Ó. Pedro viu e gostou de uma imagem pequena, depositada em cima de um túmulo e pegou pra levar.
Daí a pouco foram filmar o teto da igreja, pintado, creio que pelo Ataíde, os dois no alto de uma grua, sentados numa tábua e equilibrados cada um de seu lado. Pedro, com a máquina fotográfica na mão, se inclina, pergunta a Joaquim se o ângulo estava bom e os dois desabam de altura vertiginosa. Não morreram e Pedrinho foi, no dia seguinte, devolver a santinha pra dona, no cemitério.
Histórias mineiras.