Carregava em si o mesmo cheiro amarelado. Odor fresco, inebriante, de fezes de gato recém-pisadas. O tampão de excrementos quase adormecidos revirado, revelando bosta fresca, purulenta, vibrante como geleia. Era o cheiro dos velhos parentes: a infância vivida entre gatos.
A avó era obcecada pelos felinos domésticos. No velho casarão de faxina constante, interminável, havia dezenas. Uns cinza, outros amarelados – quase tão amarelos quanto as fezes depositadas entre as palmeiras anãs do quintal onde os meninos reproduziam personagens já proscritos da TV ou das revistas mofadas nas bancas no interior.
As fezes lhe traziam o tempo perdido. O avô à mesa, barba feita, cabelos tingidos, fio a fio, acaju escuro, antes do caldo da carne guisada ser vertida no prato fundo, vidro leitoso, para receber golpes de farinha grosseira antes de virar um pirão de última hora sorvido pontualmente às 12h15.
Por minutos, esquecia-se do exílio diário. Cólicas constantes, a coceirinha suave e meio irritante no ânus, o gosto metálico na boca. Vermes lhe comiam por dentro. Mas não tinha paciência alguma de vestir a cara com alguma dignidade para carregar um potinho com as fezes virgens da manhã até um laboratório de onde conseguiria um documento oficial informando que, sim, seu corpo era um condomínio de parasitas.
Sua disposição para a dignidade limitava-se a descer com o cachorro pelo elevador de serviço – o mesmo pelo qual o rapaz da quitanda subia com as frutas e verduras dos vizinhos. Inclusive os maracujás com os quais ele, finalmente, obtinha algum sono.
Quando menino, ia às procissões da cidade, inocência estampada nas roupas alvas, carregando velas amparadas pelas cascas secas de maracujá. Em casa, depois de ajudar o padre a guardar os ostensórios e cálices ao troco de um beijo perene na testa, tomava um suco bem-concentrado de maracujá. A avó sabia. O líquido lhe ajudava a perder as vontades. A não querer descer a rua até a praia onde as moças das ruas de trás abriam as pernas para barbudos de bigodes ostensivos dentro de fuscas cor de caramelo. Ou café com leite. Já nem existem mais fuscas dessa cor pelas ruas. Buscava uma caderneta antiga na gaveta dos paninhos de bandeja quando encontrou um maracujá enrugado. Grandes estrias na bola disforme. Fundas. Sulcadas. Rasgou a casca, atravessou sua pectina, a fita esbranquiçada, com um gesto. Teve um rápido prenúncio, um lampejo de ereção sob a calça cinza. Era o cheiro amarelado. O mais de dentro dos gatos. Nunca mais guardou maracujás na gaveta.
SOBRE O AUTOR
Bruno Albertim é jornalista e autor de O Recife – Guia prático, histórico e sentimental da cozinha de tradição
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