Todos, vizinhos de porta,de baixo e de cima, haviam se acostumado ao monólogo do toque de telefone de alguns desses todos moradores invisíveis do prédio ao lado. Não tinha hora, nem dia da semana e era um fenômeno com sete meses de aniversário. Tocava sem parar e sem registro de qualquer padrão de hora, dia da semana ou fase da lua. Impressão muitas vezes era de que tocava mesmo porque sabia que ninguém do outro lado atenderia. Tanto para nós, vizinhos, quanto possivelmente para quem discava, era o refrão de uma pergunta que nunca seria respondida. Reconfortante, eu pensava. Até o dia em que — antes de ontem mais precisamente — no meio do terceiro toque, a sinfonia estridente foi interrompida. E como num parto pré-maturo, imaginei ter ouvido a voz do vizinho sair raquítica, com pouco vigor e ainda receosa de estabelecer sua primeira comunicação com o outro lado.
Diante dessa treinada indiferença para o excepcional, deduzi que meus vizinhos tomaram aquele evento por nada demais. A poesia quem cria são nossas lacunas. Presunçoso então de minhas qualidades e absoluta falta do que fazer para detectar naquela ligação o rompimento de um silêncio cheio de rancores, segredos ou falsas expectativas, decidi ir atrás dos sujeitos que, esperando ou evitando o primeiro ou último diálogo, eram protagonistas dessa história. Verdade, lembro pouco do que aconteceu, mas o que ainda resta de memória entre dois dias atrás e agora é mais do que posso e devo oferecer. Espero conseguir chegar até o fim.
Sei que estava na cozinha, preguiçosamente jogando o leite de soja do prato fundo com a granola sem sódio. Era cedo da manhã e na televisão imagens das marginais e das avenidas com trânsito lento, Zona Sul travada, Radial Leste com problemas no sentido centro e a ladainha toda do emperramento turístico da cidade. Recordo que a ligação aconteceu mais ou menos na hora que a moça ia falar da previsão do tempo, porque estava tentando ponderar se num dia com possíveis chuvas fortes após uma semana de clima abafado e seco teria sido acaso ou ironia divina para alguém que decidiu agendar naquela mesma data o oftalmologista a dois ônibus de distância. Enquanto resmungava e o leite de soja respingava na mesa, ouvi o barulho já tão familiar.
A partir daí, a ordem de acontecimentos perde a organização cronológica dos compartimentos da memória. Por recomendação, fui aconselhado a criar parágrafos individuais que dessem conta de cada intervalo de tempo que ainda pendia na beirada do abismo de meu esquecimento. Com um pouco de esforço, eu deveria conseguir criar uma sequência, com sorte lógica, entre esses parágrafos. E assim buscar a gênese do bloqueio que, me disseram, é voluntário. Portanto, a mim mesmo, sem carinho e com um certo receio, o que imagino me vem assim:
> Parágrafo 1
Estou tentando manter a persiana aberta, pois algo na complexa engenharia de cordas de sua base se quebrou há poucas semanas e ela insiste em ficar cerrada para o mundo. Seguro as lâminas horizontais que ensaiam cair sobre minha cabeça enquanto procuro entender onde o vizinho de prédio teria instalado seu telefone na casa. O estreito espaço vazio entre o bloco B, o meu, e o bloco A, o dele, me dá pouco ângulo para ter uma visão panorâmica de seu apartamento, de modo que fico somente com o canto da sala onde se vê parte de um sofá cinza, um cartaz de Bonnie & Clyde, a televisão e, no reflexo de seu monitor 42 polegadas, a bancada da cozinha americana com pratos, uma cafeteira e aquilo que imagino ser um vaso vazio de flor. Nada de aparelho telefônico. A propósito, sei que é um homem porque já ouvi comentários da minha vizinha de porta sobre como pareciam tristes e chatas as músicas que vinham em alto volume do “cara que podia se matar” e que alguém um dia o viu voltando da padaria enquanto falava sozinho e cabisbaixo na rua. No que pensei, diante de tal comentário, que as pessoas reparam nos outros somente a si mesmas.
> Parágrafo 2
Espero o elevador chegar. E ele sempre demora a alcançar o 11º andar. Penso que troco algumas palavras com o zelador, gente fina, dono de todo o network de chaveiros, encanadores e eletricistas da região, bróder com participação nos lucros. Sei também que ele comenta sobre, claro, a chuva que já aperreava o trânsito e creio que balbuciei algo pretensamente esperto como: “não seria o trânsito que aperreia a chuva?”. Se houve resposta ou sorriso sem graça, não sei, mas tive a rápida impressão de que qualquer comentário meu naquele momento estava sendo pilotado no automático. As palavras se moviam por vontade própria, alforriadas do meu comando. Aliás, talvez tenha sido aí que meu discernimento começou a estacionar. Não recordo de ter perguntado nada sobre o vizinho do Bloco A, mas posso assegurar que cruzei com alguém no hall de entrada do condomínio e que essa pessoa usava uma camisa com a imagem de Warren Beatty e Faye Dunaway apontando suas armas em minha direção. Encurralado por Clyde e Bonnie.
> Parágrafo 3 (ou 4)
Não sei se estou de volta, ou se nunca saí dele, mas aqui dentro de meu apartamento procuro a lista de ramais do condomínio, folheto que naturalmente soquei em algum amontoado de papeis igualmente inúteis na minha coleção de lixo, espólio acumulado ao longo de anos de recusa em arrumar as coisas, jogar fora e finalizá-las. Não acho a lista, mas encontro uma conta de luz perdida no meio das faturas de cartão de crédito. Nela, há um número de telefone anotado a lápis, possivelmente um lápis B4, pois o grafite ainda é forte no papel, se anunciando importante em meio ao aviso de que a “rede elétrica pode matar”. Me chamou atenção não porque era um número de telefone numa conta de luz, até porque o hábito de anotar telefones e protocolos de reclamações no primeiro pedaço de papel ao alcance sempre foi mais do que comum aqui nas minhas cercanias. Mas sim porque não havia sido eu a anotar aquilo. Eu conhecia aquela grafia. E mais importante, conhecia aqueles números, eu sabia. Eu sei.
> Parágrafo 4 (ou 3)
No shuffle do meu iTunes toca a música de abertura de mais um filme sobre amores impossíveis. Gosto dessa faixa porque ela com frequência me faz voar de helicóptero enquanto caminho pela Augusta. As pessoas são bitucas de cigarro no chão, e as janelas que refletem a luz do sol são cacos verdes de long neck da noite anterior. Não há carros aqui de cima, só um amontoado de gente e casas amassadas e quebradas. Aumento o volume da música. Quero me sufocar da ideia de que na trilha do romance câmera lenta eu possa chegar distante daqui. Imploro pro moço do refrão me pegar pelo braço com um sorriso envergonhado e me levar dançando até o final do filme, quando a grua empurra a câmera para cima e nossa imagem abraçada vai ficando menor e menor até desaparecer na premissa de que depois do amor só existem os créditos finais. A música acaba. Caio do helicóptero. Saio do filme.
> Parágrafo 5
Tenho a sensação de ser observado. Não sei mais há quanto tempo ele está ali, mas o leite de soja escureceu e a granola virou uma espécie de papa. Não há mais música e não há ninguém no apartamento vizinho desde que o telefone tocou e foi atendido. No hay banda. Só o silêncio do palco vazio. Me vejo diante do número anotado a lápis B4 na conta de luz. Lembro que era noite quando você escreveu aqueles números. Tantos 9s. Estava prosaicamente tentando tirar uma mancha de azeite do sofá quando de relance observei você puxando o primeiro pedaço de papel que estivesse ao alcance, repetindo um hábito adquirido da minha pessoa. Assim pensei, romanticamente. Mas você não mencionou olhar para trás quando denunciei meu pequeno delito no sofá tão bonito e bacana que você escolheu dois anos atrás. Escreveu os números no papel e voltou a empurrar seus dedos largos pelo teclado do computador. Empurrava com força, mas nunca com grosseria. Escrevia rápido, galvanizado, concentrado. E eu com um pedaço de pano molhado na mão. Apagando minha mancha no seu sofá.
> Parágrafo 6
Escuto barulhos no apartamento do misterioso vizinho. Empurro as persianas quebradas para tentar achá-lo na sala. Nada. Sei que ele chegou porque a TV está ligada. Tenho ciência agora de que não estou bem e tento registrar com a turva precisão que for possível o que imagino ter vivido. Minhas mãos tremem, assim como as paredes. As paredes estão infiltradas, assim como minhas mãos. A presença do vizinho já me excita mais do que o interesse em saber seu diálogo com a pessoa do outro lado da linha. Não quero mais suas conversas e palavras, porém necessito urgente de sua presença e, por favor, de sua identidade, rosto e relevo. Algo me diz que só ele não irá me julgar e só ele poderá me salvar do que estou prestes a fazer. E estou ali na pontinha do precipício. Olhando as bitucas de cigarro caminhando em direção ao trabalho, à escola, aos encontros. Olhando o número de telefone anotado na conta de luz. O número de outra pessoa. Que sem querer, ou não, você deixou pra trás. Sua displicência em ter anotado isso num papel que me deixaria de herança começa a falar alto e me provocar. O vizinho não mostra sua cara. O número de telefone também não revela seu dono. E agora o processo se desencadeia em modo irreversível. Opto em usar o telefone fixo, não apenas porque ele irá me salvaguardar de expor meu celular, como porque com ele usufruo de todas as etapas artesanais entre retirar o gancho do lugar, escutar a linha sonora e afundar as teclas que não funcionam no sistema touchscreen. Aperto lentamente os números. Verdade, são muitos 9s. Um segundo de silêncio. E do outro lado do escuro, o telefone começa a chamar. Também do outro lado da parede, Bloco A, 11º andar, o telefone começa a tocar. Involuntariamente deixo o gancho cair sobre a mesa e caminho sem muita pressa em direção à janela. Levanto as persianas, abro o vidro e exatamente como nesses últimos sete meses, escuto o familiar e até então reconfortante barulho estridente das chamadas nunca atendidas. Volto a fechar o vidro da janela e meu reflexo nele me diz que estou impassível e descrente que já é noite. Não sei dizer até que horas repeti esse processo. Liguei várias vezes, muitas vezes, sem parar. E escutei cada um e todos os meus chamados serem ignorados. Até que, em algum momento, ele atendeu. Mudo.
> Último parágrafo. Porque agora eu sabia e sei.
Perdi completamente a noção do tempo. E imagino que alguns vizinhos devam ter perdido também o sono nesse processo. A luz do outro lado estava acesa. Mas como se provou em inúmeras ocasiões anteriores, ele que agora não mais era meu vizinho, mas certamente meu nêmesis, era insensível ao som de seu aparelho e da minha voz. Escolhi uma camisa, troquei de roupa, coloquei a antiga conta de luz no bolso, abri a porta e chamei o elevador. Cumprimentei o vigia da vez, peguei o corredor à esquerda, e entrei no elevador do Bloco A. 11º andar. O percurso foi longo e silencioso. Mas a essa altura eu já sabia o que me esperava. Apertei a campainha do 111A e, como se estivesse à minha espera desde sempre, e eu tinha certeza que estava, ele abriu a porta quase instantaneamente. Nos olhamos sem surpresa e sem estranhamento e ele me convidou a entrar. A conversa foi longa e a princípio muito tumultuosa. Eu não queria entender. Ainda que soubesse que já era hora disso acontecer. E do conflito da negação fomos aos poucos chegando a acordos mais tranquilos. Falamos sobre nós, mas sobretudo falamos bastante sobre você. E foi então que choramos. Um choro guardado por sete meses desde que você nos deixou sós naquele claustrofóbico quarto de hospital, após tantos dias de sorrisos e consolos que todos sabíamos ser inúteis. Em determinado momento, tirei do bolso o pedaço de papel com a sua letra, a grafia firme do lápis firme. Ele sorriu ao olhar para os números. Tantos 6s. O número do médico que te recebeu cheio de sorrisos e que, por fim, nos informou, cheio de dedos e dentes trincados, sobre sua morte. Meu vizinho e eu, recolhendo os cacos de vidro que até então nos separavam da única pessoa que somos, nos olhamos pela última vez como indivíduos distintos e nos despedimos finalmente como um só.
Chamei o elevador e, como de costume, ele custou a chegar. Abri a porta e no reflexo do espelho vi minha camisa de Bonnie & Clyde. Idêntica ao cartaz que você emoldurou e pendurou na nossa sala. Logo atrás do nosso sofá manchado de azeite.
Confira a segunda matéria de Inéditos desse mês, clicando aqui