Canguru
leva o sol do dia quente pra fila do cinema
o cinema pra beira da calçada
repete as frases espirituosas
da primeira vez em que me constrangeu
blusa bordada com janelas abandonadas
é a única que não tem medo de mim
tiramos quinze por cento um do outro
(simples como fazem os irmãos)
e finalmente encosta a cabeça no meu peito
e agradece por eu não ter dito nada
quando me perguntou se queria mesmo brincar
de ser o diagnóstico e as unhas roídas
nas mãos fortes do seu melhor amigo
Como se dentro de mim ainda houvesse bondade
quero morar na página onde morrem os elefantes
quero morar bem perto de você
e na falta de pressa e no abano dos transeuntes
lotear dias de retorno e contracapas ao redor de você
e toda Espanha e Portugal para descaberem
em teus pelos tomados pelo resto de trapézio e palco
a medicina do tempo aguardará o silêncio (você está igual)
: toda variação encontrará a tentativa do amor
e de não tê-lo para adornar este deserto invencível
de mudez coreografada e a pouca memória
das maneiras vulneráveis como renega a fraqueza
na obviedade algoz de fazer o dia seguinte entrar
quero teus frutos ainda que não haja prática
e ignorar que somos tensão na emenda elástica
atados com puberdade ínfima e com o que não se lê
sincronizados e atentos no truque de alguma alegria
enquanto fala dos filhos e minto que virei escritor
Clip-Clop
no fundo dos latidos de uma cadela rottweiler
escutei a água gelada correndo nas torneiras
da casa vazia querendo escuridão e aulas
e se misturar com o cheiro do teu cabelo preto
e com a ferrugem contínua das tuas sardas
precisei de um dia inteiro para encontrar
a enfermidade que me afastasse de ti
e ela veio e se escondeu nos joelhos
para que eu não pudesse te acompanhar
e depois trouxe febre (voracidade e solidão)
entendo que só possa haver uma alegria
esta que se mantém no silêncio do tempo
emparedada na dúvida que nutre as orações
no corpo dos pequenos seres e coisas que
resistem sem saber e precisam tanto de nós
Todas as formas de dizer não
As facilidades e a sorte fortuita de ser apenas alguém estranho
com ideias estranhas há tempos já não são suficientes. Há esse
amontoado de elogios e comentários do tipo “sinceramente,
não pensei que você pudesse ir a tanto”. Parece que as coisas
erradas da sua rua, do seu bairro, da sua cidade dependem única
e exclusivamente de você. Não há como fugir. Você desejou
com todas as forças e agora se tornou uma espécie de monstro.
Aquela câmera que te acompanha desde criança já não existe e
você só está preocupado em sobreviver. O sonho tão elogiado
pelos outros não passa da única possibilidade de sair da cama
de manhã antes que o relógio da cozinha soe meio-dia, por
isso você perdeu aquela empáfia tão charmosa. Os novatos
inventam que beberam com você, que cheiraram com você,
que vararam a noite com você e fizeram várias loucuras sexuais
com você. Mentiras. Então um dia, numa festa com uísque
de graça, uma bonitinha de cabelo preto curto encosta ao seu
lado e diz que sente pena, porque você está se tornando tão patético quanto os personagens
que inventou. O que de tudo isso ficará? Leitura. Literatura. Pra que diabos serve mesmo a
literatura quando se está podre de feliz e se tem amor? Amar é algo que nunca se
completa. Preciso anotar que nunca se está velho demais, preciso reencontrar a
boa-forma. Estamos todos hipnotizados querendo ser djs, radialistas,
dramaturgos, cineastas, convidados especiais. Nós deveríamos ser a droga
da esperança. Corta. É fácil adivinhar a herança da nossa estupidez
daqui a vinte anos (daqui a cinqüenta, ela sequer existirá).
Que geração ridícula esta que jurou jamais prometer o que
não pudesse cumprir. Os pássaros cantam às seis e vinte da
manhã aqui no Rio de Janeiro. Você é o único responsável,
jogue fora os atalhos,
tente não culpar mais ninguém.
Sem Título
Olha, você precisa dizer que estou livre e que já consegue andar de metrô e táxi e passar pelas alfândegas sem que eu tenha de explicar
como ganhamos a vida e como moldei a cerâmica que desentortou suas costas.
Menti quando vociferei que sua tristeza me atrapalhava.
Fumamos por fumar. Alguém cozinha. Amnióticos.
Estamos viciados nesse mal conseguir.