Ilustração por Janio Santos

Beatriz acordou com o telefone às seis da manhã: Minha mãe morreu — e levou algum tempo até sintonizar a voz de Bernadete, como que cortada em mil pedaços, uma criança adulta. Você me ajuda? Meus irmãos só chegam amanhã. Sim, é claro, ela disse, conciliando a brutalidade do sono com o imperativo moral da amizade. Aquilo estava se arrastando há meses, ela lembrou sob o chuveiro ainda frio no verão curitibano, com a mesma “frieza mental” (alguém uma vez acusou Beatriz com essas palavras, que soavam como um dedo em riste, mas que Beatriz ouviu com a surpresa de uma revelação precisa, um raro diamante que ela se atribuía no meio de uma vida, assim, quase sem graça, ela havia contado à própria Bernadete, ele disse que eu sofro de frieza mental, mas eu acho que era outra coisa que ele queria dizer, o pecado da carne ao qual não me entrego como devo, e as duas riram, ela amava o riso solto de Bernadete, a cabeça sempre jogada para trás) — a mesma frieza que ela nunca viu em si mesma (apenas uma circunspecção, disse-lhe alguém, a palavra enunciada cirurgicamente, circunspecção, com uma pequena pausa em seguida) mas que aprendeu a cultivar depois da morte de seus pais e de seu único irmão — a solidão tem casca grossa, ela disse à mesma Bernadete, que riu de novo do mesmo jeito, levando também Beatriz ao riso, até que Bernardete disse, séria: Você pode ser tudo, exceto casca grossa.

 

Arrastando-se há meses, ela retomou o fio da meada já no táxi em direção ao hospital: o câncer de dona Selma começou no seio, dali fez metástase, os médicos foram cortando aqui e ali, depois os remédios terríveis, a perda dos cabelos, os fiapos de esperança, pequenas euforias derrubadas no dia seguinte por um novo exame, o tom de voz cada vez mais baixo e a própria vítima deixa de ser protagonista, já é vista do lado de fora, por uma espécie de janela onde espiamos as formas do inexorável. É preciso dar um acabamento ao sopro final, a sua dignidade, o que é possível fazer, porque — suspiro — a vida continua para os outros, é o que todo mundo diz, mas continua diferente.

 

Acordei você, minha querida amiga, e Bernadete desabou sobre Beatriz na portaria do hospital, diante de uma papelada a preencher: Eu estou perdida, e voltou a chorar mansinho como uma criança. Fique tranquila, sussurrou Beatriz abraçando a amiga, sem atinar o absurdo do seu pedido, e quase acrescentou: Eu tenho know-how de morte e seus derivados, pai, mãe e irmão foram-se num único desastre por economia metafísica. Tudo que tenho a fazer, mas isso ela não disse, era acolher carinhosamente a amiga nas primeiras 48 horas, quando as coisas se rompem todas ao mesmo tempo, e alguém precisa ver com clareza — pessoas emocionais se perdem, é preciso ajudá-las, e ela observava Bernadete como se a visse pela primeira vez, alguém que larga pedaços pelo caminho sempre que pensa na brutalidade do tempo presente. Mas Beatriz só sentiu mesmo a cultura real da morte ao encontrar os que vivem em torno dela, e literalmente dela, como o jovem que, erguendo-se do computador atrás de um guichê, compungido mas objetivo, levou as duas meninas (como se, aos 30 anos, eu ainda fosse uma menina, Beatriz teve tempo de responder mentalmente) a uma porta ao fundo que era uma mudança de cenário tão absurda como numa cena de Fellini: de uma repartição pública exemplar — mesinhas, cadeiras, monitores, papéis, guichês, quadro de avisos — a uma exposição sombria de esquifes, com os respectivos preços, do mais indigente, as folhas de compensado mal disfarçadas pela tinta de segunda, até o exuberante, que levaria um papa, com seus pegadores de ouro e seu aconchegante veludo interno, e ela viu o queixo de Bernadete tremer, segurando o choro talvez explosivo, diante daquela escolha estúpida, de modo que ela mesma escolheu pela amiga, o preço razoável, como se fosse apenas uma sugestão, o terceiro de lá para cá, o que você acha?

 

Na esquina, um intervalo para o café, e na mesinha de fórmica era como se a normalidade voltasse súbita e distraída, as duas conversando como sempre fizeram antes, Bernardete ainda de olhos vermelhos tirando um fiapo do ombro da amiga e dizendo “Esta blusa amarela fica tão bem em você”, “Você gostou? É bonitinha, não? Comprei numa liquidação ali do Mueller”, e as duas ficaram olhando em silêncio para a rua, que brilhava. Ela queria ser cremada, disse Bernardete de repente, como quem se lembra de alguma secreta revelação — e no momento seguinte, conduzidas pelo espírito prático de quem tem tarefas urgentes a resolver, estavam no Crematório a meia quadra dali, a região inteira se alimentava da morte, o cemitério no centro, no ponto mais alto e mais nobre da cidade, como era a norma nos tempos cristãos de antanho (quanto não dariam hoje para espetar ali um prédio de 30 andares?, ela pensou) — e Beatriz puxou Bernadete para trás, que avançava distraída pelo asfalto, antes que um carro também a levasse; e agora se veem no balcão branquíssimo de um hall do que parece uma igreja, ou antes um Teatro Municipal, com escadarias laterais, granito, claridade ofuscante, flores, uma árvore prateada abarrotada de cartões de pêsames, gente que vai e vem falando baixo no intervalo de alguma peça, um sorriso discreto aqui e ali, um breve choro adiante. Deixou a amiga preenchendo um cadastro e deu três passos em direção a uma porta de onde vinha uma luz branca com laivos roxos, atraída pela brancura excessiva de tudo, que antecipava algum paraíso; e Beatriz entrou num corredor ladeado por pequenas prateleiras sobrepostas de um estranho guarda-volumes, até que percebeu enfim que aquilo era um relicário de cinzas — nomes, fotografias, frases soltas (“um anjo que se foi”, “saudades eternas”, “amor infinito”), pequenas lembranças, um escudo de futebol, um brinco, uma caixinha de música, uma carta manuscrita, um soldadinho de chumbo, e só então ela atentou para a música ambiente daquele espaço inteiro clean, um som que lembrava um riacho correndo e sininhos batendo, nada de Bach, soturnos corais de igreja ou algum canto gregoriano — apenas a sugestão de paz e natureza, como se não se tratasse da morte. Estamos mesmo num mundo pós-cristão, ela pensou em dizer à Bernadete, antecipando-se em três meses, a morte já cicatrizada, e não viva no instante mesmo da ausência bruta em que nos deixa. Não conseguia vencer o indefinível desconforto diante daquele espaço de artifício, que parecia negar a morte e simular felicidade onde ela não cabe, o kitsch da morte — mas de onde eu tirei essa volúpia do martírio, logo eu, com minha frieza mental, e foi um modo de sorrir diante dos mortos em caixinhas que —

— Beatriz.

Levou um susto: era uma figura de preto, o blazer exato, o cabelo brilhante, quase um cantor de tango, foi a imagem que surgiu, como ela diria à Bernadete um mês depois (mas não diria do riso nervoso, que segurou mordendo o lábio), faltava-lhe o cravo na lapela, um homem bonito, destacado naquele espaço etéreo —

— É o seu nome, não? — e ela fez sim, atenta; talvez ele a confundisse com Bernardete, e Beatriz já ia desfazer o equívoco, quem morreu foi a mãe daquela moça — Desculpe, mas — e o homem esticou o braço, tímido, para o hall adiante — ela disse que a senhora...

— Você.

— Você. Que você faz revisão de textos! — e o homem sorriu, agora livre da parte mais difícil, enquanto Beatriz tentava entender. O homem arriscou um toque suave no ombro, que ela não pensasse mal: — Desculpe. É que eu escrevo despedidas. — Diante do silêncio, explicou melhor: — Eu trabalho aqui no crematório e escrevo despedidas. — E permaneceu sério, à espera de uma reação qualquer à visível importância de sua confissão..

— Você escreve despedidas.

— Sim. — Ele percebeu que aquilo não estava funcionando, e com um franzir de impaciência conferiu o relógio; tocou de novo o ombro de Beatriz: — Estou atrasado. Venha comigo que eu mostro.

 

Avançou em quatro passadas pelo corredor branco até uma porta oculta — na verdade uma parede que cedeu e que os deixou em outro corredor, este muito escuro, por onde ele seguiu sempre à frente (“Por aqui!”), e em poucos passos estavam na base de uma escada circular de onde vinha um facho de luz (“Cuidado com os degraus!”), e Beatriz imaginou que estava nos bastidores de um teatro secreto, o que era verdade — sempre atrás do homem, emergiu na coxia de um palco, em cujo centro repousava um caixão aberto com uma figura clássica de morto guarnecido por flores multicoloridas e candelabros de prata, a arena ainda oculta do público por uma cortina pesada de veludo vermelho, e alguns operários pareciam cuidar apressados de alguns últimos detalhes, até que cochicharam com alívio ao homem que enfim chegava, “Tudo pronto!” — e ele por sua vez cochichou a Beatriz, acompanhando-a até o limite da cortina, que ele afastou discretamente para ela passar —

— Vai começar agora. Desça à plateia e observe, que eu vou precisar muito de você.

 

Ilustração por Janio Santos

 

E Beatriz obedeceu intranquila sob um sentimento confuso de ultraje, terror e curiosidade, o que exatamente estou fazendo aqui? Para onde foi Bernadete? E quando desceu a escadinha de três degraus viu-se mesmo diante de uma plateia que, quase enchendo as dez fileiras de cadeiras em círculo, aguardava o início (de quê? do espetáculo?, ofendeu-se ela) em soluços reprimidos, sussurros, ali uma criança dormindo, ao fundo uma roda discreta na mesinha do café, e súbito apagou-se a luz e soou uma música soturna, acompanhando a abertura triunfal da cortina. À vista do homem morto, iluminado como um recorte no espaço (alguém que o mágico vai serrar em dois, ocorreu a ideia absurda na cabeça de Beatriz), explodiu o choro de uma mulher idosa, imediatamente consolada por cinco jovens que se aproximaram dela como pétalas que se fecham, e Beatriz viu surgir o homem de preto no palco, movendo-se com um microfone diante do caixão como um pastor televisivo. No ciclorama ao fundo, surgiu a imagem imensa de um céu amanhecendo.

 

— Queridos amigos, hoje talvez seja o dia mais difícil de suas vidas. Todos aqueles que orbitaram, ao longo de anos e décadas em torno de (ele consultou um papel que tirou do bolso) Mário Zócalo de Souza terão de enfrentar e suportar uma vida sem o avô, o pai, o irmão, o amigo que hoje se despede. Temos de pensar profundamente em tudo que ele significou para nós, em tudo que ele criou, e aquilo que só ele criou, que não existiria sem ele, para nossas vidas. — O homem fez uma pausa de 30 segundos, que foi acompanhada por um silêncio total na plateia. E voltou a falar, agora quase apenas um sussurro íntimo: — Mas não pensemos na perda, na ausência dolorosa; o Criador estará com ele; aqui na Terra, pensemos em tudo que permanece para sempre em nossos corações, cada detalhe de lembrança, tudo que ele deixou em cada um de nossos gestos...

 

Alguém chorou alto — e quando Beatriz tentava se concentrar no que o homem dizia, um tanto surpreendida pelo relativo talento daquela fala (já transformada em revisora de textos, ela esperava algo bem pior), uma senhora com óculos espessos aproximou-se, os olhos imensos injetados atrás das lentes, Você não é a prima Dorinha, de Ponta Grossa?, e antes que respondesse recebeu um abraço apertado e soluçante. Ele era uma pessoa tão boa!, a mulher dizia, e Beatriz concordava, querendo sair dali e reencontrar Bernadete. À porta de saída, decidiu ainda tomar um café, enquanto ouvia pedaços da despedida, que parecia inspirada (“a nossa solidão terá sempre companhia”, dizia o homem, parecendo olhar para ela): o que ele afinal quer de mim? Não é um homem feio, ela avaliou, vendo-o mover-se no palco — mas aquele gel no cabelo, tem alguma coisa inapelavelmente antiga nele, e imaginou-se rindo com Bernadete, um mês depois, veja só onde fui parar, revisora de despedidas!... À sua mesa de trabalho, os textos da semana, com a classificação dos mortos: este é criança, aqui um avô, depois tem essa mulher, essa é importante, foi uma ativista de relevo, a casa vai lotar; ah, Beatriz, esse aqui era budista, tem alguns tópicos que podem ser reforçados; e o que podemos dizer na despedida desse deputado corrupto? Sim, o de sempre — e o homem daria um sorriso embevecido ao lado dela, definitivamente apaixonado pela sua mulher, capaz de escrever as mais belas despedidas do mundo, a palavra precisa, elegante, ao mesmo tempo sem mentira e sem pieguice, com o exato sentido da vida. Isso é possível? Caiu enfim das nuvens e do teatro para encontrar a amiga, preocupada com a demora — desceu uma escada imponente e reencontrou-a no balcão do hall, assinando documentos. Parecia calma agora.

— Eu estava te procurando, Beatriz. Você sumiu.

— Eu... desculpe. É uma longa história. Depois eu conto. Tudo certo?

— Sim, sim. Escolhi uma cerimônia breve hoje no final da tarde. Uma coisa simples. — A voz sumindo: — Minha mãe iria gostar.

Ouviram uma salva de palmas que parecia vir do alto, e ficaram momentaneamente em silêncio, como que ponderando o que seria aquilo. Sempre em silêncio, Bernardete recolheu o envelope que o funcionário lhe passou, reconfortando-a:

— Fique tranquila, nós cuidamos de tudo.

Na calçada, o sol feria os olhos. Antes que atravessassem a rua o mestre de cerimônias reapareceu ofegante:

— Beatriz! O meu cartão. Aceite, por favor. Tenho de voltar. Aguardo um contato seu. Não deixe de me telefonar.

Paulo Lopez Zimbro cerimonial de despedidas, Beatriz leu. Ao levantar a cabeça, ele não estava mais ali.

— Quem é? — perguntou Bernardete. Beatriz se sobressaltou:

— Você não conhece?! Ele... — e ela olhou de novo para o hall de entrada, confusa. — Não foi você que — e diante do olhar perplexo da amiga, suspirou: — Esqueça. Estou ficando louca.

Percebeu que Bernadete reprimia a explosão iminente de um choro, o queixo trêmulo, alguém que não está mais suportando o peso do dia, e Beatriz abraçou-a carinhosamente, demoradamente. Balançavam-se suaves como duas crianças.

 

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