Uma fantasia constante minha — fantasia, esta, que aparecia com frequência em sonhos, geralmente quando eu adormecia no sofá, cedendo à exaustão, sem planejar dormir — envolvia conhecer as pessoas que me contratavam. As vozes que entravam em contato comigo por telefone, vozes femininas e masculinas, vozes grossas ou finas, oscilantes ou seguras, jovens ou anciãs, no início eu pensava que o portador dessa voz era quem encomendava a morte de alguém. Mas quem deseja alguém enterrado para sempre não pede por telefone, nem ao vivo. Nunca se exporia de tal modo. Não quando o vivo que em breve estará falecido é considerado importante por alguém mais do que a ex-mulher ou o ex-marido. De jeito nenhum. Alguém mandava na voz. E talvez alguém mandasse em quem pede para a pessoa da voz fazer o telefonema. E assim por diante, numa escada em espiral rumo a um topo que está acima das nuvens.
Nos meus sonhos e delírios diários não era diferente. Conhecia a pessoa que encomendava mortes, e tinha algo de sagrado nessa pessoa. Não era Deus na representação mais caricata — um velho barbudo nos céus — mas havia um quê divino no ser, uma iluminação.
Isso nos sonhos bons. Nos pesadelos, eram figuras imateriais, alguém que, se eu tentasse tocar, sua carne se revelaria feita de poeira cósmica, sombra e escuridão, pessoas cujas bocas se alargavam na vertical e soltavam ganidos ou urros. Por isso eles precisavam de alguém para telefonar. Súditos para pesquisar o currículo dos assassinos e descobrir quem era ideal para aquele trabalho. E, como aprendi cedo na vida, eu era ideal para boa parte dos trabalhos. Talvez para o caso de Orson Welles eu não fosse a ideal, mas acharam que eu era, e é isso que importa. A história da humanidade é construída com base nesse tipo de equívoco.
E eram as figuras fugazes, feitas de sombra ou de material divino, que comandavam nosso mundo. Em O terceiro homem, filme de Carol Reed estrelando Orson Welles, um filme tão bem dirigido que todos achavam que o cineasta por trás da obra era o próprio Welles, e não Reed, Orson vive um personagem que é esse tipo de figura.
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Os cinéfilos sempre se recordam da cena do passeio na roda gigante, onde o detetive interpretado por Joseph Cotten confronta o vilão Harry Lime, o personagem de Welles. Ali, Welles expõe seu ponto de vista. Do alto da roda gigante, os dois observam as pessoas lá embaixo, pequenos pontinhos, insignificantes como formigas que caminham sobre a toalha de piquenique, facilmente apagáveis. Pessoas que podem morrer e nada irá mudar. A sensação de que você está no alto, acima de todos, e pode encomendar o fim da vida de qualquer um daqueles pontos, pois não passam de pequenos círculos pretos caminhando sem rumo aparente.
Quando descem da roda gigante, Cotten está escandalizado pela visão de mundo do amigo. E Orson Welles — a pessoa, não o personagem — adicionou ao roteiro uma frase que se tornou famosa. O personagem afirma que, durante os trinta anos de guerra e violência sob o reinado dos Bórgias, a Itália produziu grande arte: Michelangelo, Leonardo da Vinci... toda a Renascença. Enquanto isso, em séculos de paz, tudo que os suíços inventaram foi o relógio cuco.
O pensamento do personagem de Orson — que surgiu da cabeça de Orson, como disse — parece cruel, mas se comprova brutalmente no decorrer da história. Quantas obras impressionantes no cinema e na literatura surgiram dos piores conflitos? Até mesmo a Segunda Guerra, que diziam ser a morte da experiência, se revelou uma fonte inesgotável de ficções e não ficções pungentes. De arte, em resumo. A arte parece surgir sempre nos momentos de horror, desespero, ou apenas de privação. Uma mente tranquila não produz arte. E, no entanto, quem, em sã consciência, gostaria que a Segunda Guerra se repetisse? E, no entanto, quem deixará de se emocionar com as imagens de uma Viena arruinada em O terceiro homem?