Ilustração por Janio Santos

 

Confira a segunda matéria: Gestrude Stein

 

A intraduzibilidade tornou-se quase um valor literário a partir do século 20, especialmente com os experimentos do Alto Modernismo e das vanguardas históricas. Chamar de intraduzível a um autor ou autora é dar-lhe um selo de qualidade, uma aura de autoridade. Em geral, o epíteto é reservado aos escritores que se dedicaram a complexas experimentações semanticas e sintáticas em seus textos, criando verdadeiros geradores de palavras, em neologismos, recursos a expressões arcaicas, mesclas de diferentes registros e tons, fazendo da leitura um ato de decifração e arqueologia. Pensamos em James Joyce na língua inglesa, Carlo Emilio Gadda na italiana, Robert Musil na alemã, José Lezama Lima na espanhola, João Guimarães Rosa em portugues. São autores barroquizantes, desbordados, unindo à densidade textual ainda uma qualidade quase fluvial aos seus livros, épicos, catataus, calhamaços, como Finnegans Wake ou Grande sertão: Veredas. Nestes trabalhos, a função poética, como teorizou Roman Jakobson, a linguagem que constantemente demanda a atenção para si, faz com que chamemos estes prosadores, com frequencia, de poetas. É nesse aspecto que nos referimos à palavra em um poema como resistente à transparencia do signo. O nome da coisa não está lá para nos fazer pensar na coisa, mas em seu nome. E só então na coisa. Não o nome da coisa, mas a coisa do nome.

 

Há um outro tipo de texto que apresenta uma grande dificuldade ao tradutor, ainda que escondida sob uma máscara de aparente simplicidade. São justamente os textos que se mostram de maneira tão direta e comunicável, dependendo de tal forma de seu registro oral, de uma quase fala, que sua reprodução em outra língua e cultura raramente consegue reproduzir os mesmos efeitos. Sempre me pareceu que o adágio de que “a poesia é o que se perde na tradução” se referia mais a estes textos que aos experimentos de semantica. Por vezes, o tom é tudo. Basta pensarmos em poemas como “O porquinho-da-índia”, de Manuel Bandeira, ou “This is just to say”, de William Carlos Williams.

 

Pensando nestes termos e nestes dois polos, uma das grandes provas da originalidade de Gertrude Stein reside em unir em si parte destas duas dificuldades. Não há neologismos em Stein. Suas palavras são aquelas do dia a dia, usadas em parar, já quase invisíveis aos nossos olhos. Sua citação mais famosa, seu cartão de visitas, pode nos dar um exemplo perfeito aqui: Rose is a rose is a rose is a rose.Formado por algumas das palavras mais comuns da língua inglesa, o estranhamento reside todo na combinação. Em uma de suas palestras, Stein disse: “Escuta aqui. Eu não sou nenhuma idiota. Eu sei que na nossa vida diária ninguém sai por aí dizendo é uma... é uma... é uma. É, eu não sou nenhuma idiota; mas eu acredito que neste verso a rosa ficou mais uma vez vermelha na poesia inglesa em cem anos”. O que havia se tornado completamente gasto na poesia, fazendo da rosa um clichê, assume vida nova não pela criação de alguma palavra-valise, como em Joyce, mas pela simples justaposição do nome da coisa ao nome da coisa, impedindo que o leitor simplesmente decodifique o nome-rosa pela coisa-rosa. O leitor é obrigado a parar e olhar não a rosa em si, mas a palavra rosa.

 

Mas mesmo a declaração de Stein pode ser enganosa. Sim, ninguém sai por aí falando desta maneira. No entanto, há uma força rítmica que é muito própria da fala em certos textos de Stein. Isso se torna muito claro em trabalhos em prosa como A autobiografia de Alice B. Toklas, que ganha muito ao ser lido em voz alta. Ou, nos exemplos traduzidos aqui, em um de seus mais belos poemas, o longo e amoroso Lifting Belly, aqui vertido como “Erguer Barriga”. Escrito no início da década de 1930, ele se assemelha a uma corrente de declarações ditas entre beijos ofegantes por amantes na cama. É o texto mais erótico de Stein. Com uma descrição apenas levemente velada do que se passa entre mulheres na cama, o texto é pontuado também pelo que parecem fragmentos de conversa entre as duas mulheres apaixonadas. As repetições não estão distantes da fala, das reiterações de sentido: “Kiss my lips. She did. / Kiss my lips again she did./ Kiss my lips over and over and over again she did”. Assumem uma função de estruturação por som, sempre muito forte nos textos de Stein, mas também descrevem a maneira como nos repetimos em nossos pedidos algo obsessivos, as exigências de provas de amor que fazemos para namorados. Há sempre um jogo entre familiaridade e estranheza nos textos da americana.

 

O poema extraído de sua série Before the flowers of friendship faded friendship faded é outro bom exemplo disso. O desafio começa no título, com sua estruturação sonora em torno da letra F. Com línguas tão distintas como o inglês e o português em sua organização gramatical, criando relações mais fixas entre as palavras e suas funções na frase, é muito difícil recriar os jogos sonoros de Stein e ainda assim manter os jogos sintáticos. Minha opção, ao traduzí-la, é sempre o de respeitar som e ritmo acima de significado. Porque a lógica dos seus textos é mais uma lógica de audição que de raciocínio.

 

Já se falou sobre o aspecto político desta prática de Stein. Já se chamou sua escrita até mesmo de democrática. Mas como, se tantos a têm como incompreensível? É aqui que se torna importante chamar a atenção mais uma vez para o fato de que o poeta, antes de dizer, faz. Ao concentrar-se na sintaxe mais que na semantica, Stein põe em jogo constantemente a relação das coisas e das palavras. Em um texto seu, não há hierarquia entre um substantivo, um pronome, um verbo e uma preposição. Mesmo a mais comum das palavras, um artigo, por exemplo, assume tanto valor de significado quanto um substantivo. Não há palavra concreta e palavra abstrata para ela. Apenas palavras, e todas com o mesmo peso em si, já que tudo se definirá pela sua relação com as outras palavras. Se pensarmos em palavras como indivíduos, veremos o que há nisso de politicamente revolucionário.

 

 

Confira a segunda matéria: Gestrude Stein