Ilustração por Janio Santos

 

— Me dá uma esmola, filho. Tenho frio e ando doentinha, disse a mão esticada da velhinha. De fato, não tinha os trajes apropriados para aqueles dias gelados.

— Não tenho nenhum dinheiro, agora, minha velha — respondi, me apiedando.

Estava tão convicto disto que retirei a carteira do bolso do casaco e, surpreso, encontrei ali duas notas. Envergonhado, ajeitei as cédulas entre as tiras da carteira.

— Não comi nada hoje. Pague uma sopa para mim — a voz repetiu.

Tudo aquilo me obrigou a separar a nota menor e entregar à velhota.

— Agora tem o dinheiro — falei. Senti meu coração se aquecer e ela sorriu.

— Você ainda terá muito, meu filho. Vá com Deus.

Segui em frente.

Horas depois, ao consultar o saldo no banco, meu dinheiro se multiplicara. Antigos devedores se apresentaram para pagar com juros dívidas já prescritas e perdidas. Imóveis meus, que economias de servidor público medíocre me permitiram, bangalôs sem nenhum valor, de uma hora para outra foram parar nas áreas mais valorizadas da cidade. Herdei de parentes que não conhecia boa fortuna, e não pude deixar de exclamar:

A velhinha, a santa velhinha.

Então, certo dia, voltei às imediações decidido a encontrá-la, quem sabe, pudesse ajudá-la em algo. De tanto procurar e descrevê-la, os comerciantes terminaram por me contar a história toda.

A velha estava nas ruas há muitas décadas. Era pedinte profissional. Nunca quis nada com trabalho. Perdeu todas as oportunidades por preguiça. Sempre lhe deram, então sempre pediu. Era uma golpista, dessas de chorar lágrimas da pilantragem, arriada nas paredes de mármore dos bancos, até alguém lhe perguntar o que ocorria e ela desfilar vicissitudes de uma vida falsa, cheia de netos malvados que lhe batiam se não chegasse com um boa quantia em casa; e logo agora, quando encontrara tantos bons cristãos num dia que a bondade divina jamais repetirá, voltando para os seus algozes, acabava de ser assaltada, oh, valham-na etc, etc.

“Que golpe ela aplicou em você?”, perguntaram.

“Nenhum. Pelo contrário: a rigor, só me fez o bem,” e pensei: “mas, visto ter sacaneado com tantos, vou-me embora, não preciso vê-la outra vez”.

Atravessei a avenida, alinhei-me na calçada, quando ouvi o chiado de uma voz:

— Psiu, filho, psiu: ajuda-me: tenho frio e ando doentinha.

Reconheci o rosto murcho.

— Senhora, que decepção. Não é mais que uma golpista vulgar. E eu, tão bondoso, lhe ajudei, de coração, com quase tudo que eu tinha naquele dia.

Ela me olhou, viu as roupas bem passadas, o reluzente colar de ouro, as chaves fazendo volume nos bolsos.

— Parece que também te ajudei. Falei que irias ganhar bastante dinheiro, não falei?

— Afaste-se, sua farsante. — a mão cambaleante vinha na direção do meu peito — Foi tudo só grande coincidência. Onde estão os outros milionários a quem disseste o mesmo, hem? Ora, adeus.

— Escute, filho, cometes agora o segundo erro: desdenhar da pobre velha. Não sabes quem sou, ou sabes o que dizem, mas nunca se fala a verdade sobre pessoas, não é mesmo? E, agora, se não tiveres de mão generosa o tanto para me pagar um bom jantar, sequer lamentarei tua desgraça.

— Ora, foda-se, pilantra.

E fui embora.

 

***

 

Tempos depois, por todas as razões críveis e incríveis, acordei falido. Estava metido em escândalos, apostei nos cavalos errados, e agora puxava uma longa cadeia. Perdera o resto com advogados e policiais corruptos, enfim, não tinha mais nada, nada, nada, a não ser a memória acesa dia e noite, clareando a bruxuleante figura da velha. Estava decidido a vê-la, se um dia saísse da prisão. Saí. E isso cumpri, alguns duros anos depois, numa outra manhã gelada.

— Me reconhece, velha?

— Sim, filho.

Olhou-me e viu minha imagem alquebrada e torta. Afastou-se um pouco.

— Não tenha medo. Não vou fazer mal. Pensei bastante e entendi tudo. Minha merda de vida vai virar conto de autoajuda, ok, mas uma coisa não entendo, e só você pode explicar.

— Talvez eu possa, ela disse, sem descuidar do movimento das ruas, a mão estirada para a mulher com o cachorrinho, o estudante com o celular ao ouvido, o cadeirante esnobe na cadeirinha elétrica.

— Você falou de eu ter cometido o segundo erro: ter lhe negado um simples jantar. Ok. Mas e...

Ela interrompeu, mas com calma:

— Filho, o primeiro erro, o mais grave, foi ter voltado naquele dia — e continuou, a voz raspada a ferros da garganta — Não cometa agora o terceiro, que seria ir embora. Senta aqui, a velha vai te ensinar todos os golpes.

Então, não discuti. Sentei.

Já se vão anos sem conta disso.

Ao terminar de ouvir sua história, dei a ela todo o dinheiro da minha carteira. E mudei de cidade.