Ilustração por Janio Santos sobre reprodução

 

1.

O tempo das grandes canções já tinha passado. Aos treze, Neide bebia, fumava e sentia que era profunda na escadaria da praça Ramos. Mortenson não era o seu pai. As colegas também diziam que ele era para ser o seu pai, mas não era. Mortenson era o pai de Marilyn Monroe. Uma vez, a pequena Neide mostrou à mãe a foto de um senhor alto e magro, de terno cinza, bigode fino, e perguntou: É esse? O homem se parecia com Clark Gable, mas elas sabiam que a foto não era de nenhum ator. Aquele era mesmo Mortenson, o pai de Marilyn.

 

No registro do condado de Los Angeles, a mãe da futura atriz americana batizou a filha com o sobrenome de seu segundo marido. Marilyn nunca admitiu a paternidade de Mortenson. De vez em quando ela se assinava com o nome do primeiro marido da mãe: Baker. Neide pode ter apanhado esse detalhe em casa, ouvindo sua própria mãe ler na cama vidas de cantoras e atrizes, até que a menina pegasse no sono. Durante a infância, circulava nos aniversários e festas em família uma história parecida, sobre o pai de Marilyn, às vezes contada pela sua mãe e, outras, pelas amigas de escola.

 

Quase todas as grandes cantoras do rádio nos ensinam a mesma lição. Dirce di Falco, a ídolo de Neide, cujo modelo foram as estrelas da rádio Kosmos e da TV Excelsior, costumava se deixar fotografar apenas de olhos fechados, queixo erguido e boca entreaberta diante de um microfone Zenith, com quatro hastes em forma de diamante. É sabido que na melhor fase a estupenda Neide moldava sua imagem a dedo, escolhendo o ângulo das fotos, um repertório às antigas, os escândalos que ela própria confirmava nas páginas de Sétimo Céu. E embora nem sempre tenha sido uma diva fixada nos ritos do sucesso, houve uma época em que ela se alçou a outro nível e exibiu seu talento na companhia de quem, sem dúvida, havia chegado lá. Todos já ouvimos falar no que os artistas costumam chamar de Momento, quando, tomados pelo desejo de irem além, reinventam quem são. O momento de Neide não foi propriamente um desses. Teve, com certeza, brilho intenso, mas de quilate muitíssimo outro.

 

2.

A respeito da jovem, disse um crítico paulistano: Quem começa magrinha, polindo-se em coro protestante, jamais vai abocanhar um país cuja carne é o carnaval.

 

Antes de chegar à adolescência, ela às vezes era chamada, em família, na Vila Maria Zélia, de menina esquisita. Isso certamente pelos cabelos cor de ferro em volta do rostinho pálido, óculos largos, os cachos despenteados, as pernas finas. Cambitos, sua mãe lhe dizia: Coma, minha filha.

 

Neide crescia comendo o que um salário de balconista no Mappin deixasse a mãe comprar. Na época, quem virasse à esquina da 9 de Julho, rumo à praça leste, e cruzasse por baixo da longa marquise de concreto, ia encontrar, no balcão ao centro do piso térreo, dentro da loja, a ilha com espelhos e frascos ao redor de uma mulher trajando tailleur cinza e blusa de gola verde. Era a mãe de Neide. O estande de maquiagem dava amostras de sombra, rouge e batom. Recém-lotada no setor, aplicando de cortesia os tons da estação, ela reinava das 9h às 18h, num pequeno oásis com promessas de autoestima: Leve, querida, começa por aí o caminho do sucesso. Mas sua mãe tinha vindo grávida do Recife a São Paulo. Neide nasceu na semana prevista, a trigésima nona, de parto natural no Hospital das Clínicas. Naquele tempo, Matt Bo Grady já era um tipo mítico. Foi, sem dúvida, o ídolo da funcionária no ano da barriga.

 

Porém, há duas espécies de iluminados: os de onda e os de gênio. E os que ora se moldam pelos seus ícones (meninos copiando o penteado dos craques, moças que posam para o farol de um espelhinho de bolso) explicam-se uns pelos outros. São frutos do mesmo fenômeno. Querem imitar as estrelas. Quando os olhos pousam na grandeza, as mãos buscam fazer uma cópia. É natural. E a pequena Neide se vestia com modelitos da fase limpa de Matt Bo Grady, embora este não tenha passado, aos olhos da crítica atenta, de um imitador menor de Elvis. Aqui seguia um longo rol, pois já são muitos os duplos do Rei. Assim mesmo, o tal Bo Grady tirou do peito da mãe de Neide (passe a rima) pancadas fortes e, com elas, lágrimas amassadas num lenço rendado, coleção Mappin. E tamanho gesto deveu-se, apenas, àquela famosa balada de um época de tanta dureza: Never your love again.

 

3.

Afinal, vingou o esforço Mappin da mãe, a verve do coro na igreja batista, o molde do pop tosco em Matt Bo Grady. São esses os verdadeiros traços da inconfundível voz de Neide Laet. Mas foi Cidade irresoluta, o maior hit de sua carreira, que lhe rendeu o título de Lady, em matéria consagradora da revista Manchete. Musa e Bandeirante, a publicação carioca estampava em capa com foto.

 

Ora, em fevereiro Los Angeles se parece ainda mais com o mês de junho, em São Paulo. Lady Laet se preparava para vir à Califórnia gravar seu novo álbum, quando o famoso crime do Itaim tirou a diva de uma rota que, para muitos, já parecia escandalosa demais. Passado esse tempo, a grande maioria já se esqueceu dos fanzines daquele ano. Num aceno a outras épocas, o álbum se chamaria Lady canta São Paulo. Mas, então, cidade irresoluta por quê? Nas palavras do próprio hit, vejamos o que irresoluto quer dizer. É o que ainda não foi resolvido, aberto, ansiado, prestes a, solúvel apenas no fim, estado pendente, na ponta da língua, limbo ou eterna espera, retardo que aguça a urgência, bem como, é claro, no vulgo: cruel cemitério dos corações. Eis o irresoluto dessa cidade.

 

Aí está o bairro de Neide, a Vila Maria Zélia, com a casa dos batistas posta diante da capela de São José. Seu hábito de erguer a voz, do queixo baixo, nos graves, até o brilho de olhos ao alto, nos agudos, estilhaçando uma sílaba de palpitar, barbas ou arranha-céu, vem do apreço pelo gospel e da imagem de uma garota Marilyn, malcomportada. Na viagem a Los Angeles ela beijaria, como muitos beijaram, a lápide da loura Monroe no Memorial Park? É provável que sim. Neide sempre acreditou que ambas eram filhas do mesmo pai. Mas não houve tempo para tanto: vox, vanitas et finis. Como diz a canção recente, depois de tanto verbo a pessoa morre. Matamos Lady Laet, nossa mais perfeita intérprete. Ou melhor, a ser justo com a estrela, não há dúvida de que ela própria quis consumir-se, só e exclusivamente, apenas aí, nas grandes vilas e subúrbios de São Paulo.