Gustave Flaubert,em 1857, enfrentava um processo jurídico contra seu romance Madame Bovary. Para quem o acusava, não havia dúvidas de que sua ficção tinha cometido um crime. Quase um século e meio depois, o escritor Salman Rushdie recebia sua Fatwavia Versos satânicos, sendo condenado à morte pelo Aiatolá Khomeini. Entre eles, houve a caça ao O amante de Lady Chatterley, que teve em sua defesa, por exemplo, o argumento que dizia que “um livro não é obsceno apenas por tratar, em parte, de uma ligação entre pessoas não casadas ou casadas com outros. Se isso bastasse para definir um livro como obsceno, imagino que noventa por cento da literatura inglesa seria obscena.” Adorei o “casadas com outros”. Pois é, dos três livros já citados aqui, dois têm em comum o adultério no primeiro plano de suas narrativas. Aliás, a história de amor proibido é um tema velho, acomodado, desgastado por tanta repetição, chegando ao início do século 21 sem ofender mais ninguém, sem deslocar pontos de vista, sem causar qualquer problema no concerto dos discursos no mundo.
Hoje, o conjunto de textos que chamamos de literatura funciona como uma verdadeira “organização das Nações Unidas”, na morna paz do que já conhecemos e aceitamos, tornando verdadeira a mentira do entendimento entre os homens, fazendo do cinismo, sempre natural em tal proposta, uma peça rara. A literatura, infelizmente, tornou-se o lugar para os homens se encontrarem em paz. Se Emma Bovary e Lady Chatterley foram processadas, perseguidas, proibidas, hoje uma personagem infiel ganha prêmios e pode lucrar sem qualquer contratempo com a rentabilidade da sua franquia. Ficcionalizar a traição conjugal tornou-se um assunto ameno aceito em qualquer esquema social. Algo que poderia ser publicado com a narração da Fátima Bernardes.
Nessas últimas décadas e em boa parte do Ocidente, nenhum escritor será preso, excomungado ou morto se representar literariamente um caso extraconjugal. Este não passa mais do que uma picuinha de casal. Nenhum escritor será execrado, temido ou ridicularizado se descrever piruetas ou perversões sexuais. Estas restam apenas como frustrações dos amantes. Aliás, inúmeras representações e enredos antes proibidos conseguiram trânsito despreocupado e complacente, como o sorriso de um idiota. Gosto de pensar o que seria agora uma escrita pervertida, um jogo verbal que se forja obsceno. Outro castelo de Sade feito de texto e de sua circulação. Uma escrita que testa a todo o momento os limites da sua interdição, que não quer cumprir o seu lugar na economia dos discursos. E não me refiro apenas a um regime de representação narrativa em que observamos e consideramos as encenações que vêm pela palavra. A questão aqui é menos de temas e seus desdobramentos. Mais me interessa pensar como uma ficção torna-se um elemento estranho entre nós, combina um modo de dizer e de ver que seríamos incapazes de propor por covardia. É nisso, para mim, que está a obscenidade de um texto.
Um arranjo de palavras que nos constrange, no mínimo, novas diferenciações, como a experiência que há cinco séculos fez da separação entre o corpo que fala e o que se cala a mitologia do sentido, a crença num destino para uma partida, a busca do significado em outro lugar. A história moderna fundada também numa “diferenciação entre o presente e o passado”. Isso é pensar a palavra como política, como artimanha e relações de poder. Não porque serve ou fala do poder, mas porque estabelece posições, correspondências e lógicas para o que é dito. Não existe escrita inocente. Não existe a palavra pura. Também não é o caso de pensá-la como inspiração ou trabalho. O que pode haver são subserviência, irrelevância, radicalidade, irreverência, coragem. Ela pode ser previsível ou imprevisível. Tudo isso não na escrita em si nem no que ela refere, mas no que ela produz como possibilidades de justaposição e distribuições das letras. E essas escolhas ou contingências, claro, configuram-se e medem-se nas transações e nos valores de troca com outros ditos e imagens mais ou menos esfumaçadas por esses ditos.
O problema é que a “opção” feita (como consequência) pelo posicionamento da maior parte da chamada literatura de ficção em relação a outras formas e conteúdos em circulação faz dela uma espécie de esposa incapaz de trair o marido. Não só porque não quer, mas também porque não pode. E nada pior do que não representar perigo. É disso que falo, do desejo do adultério, não mais como tema e personagem, mas como lugar proibido da palavra. Falo contra o excesso da palavra lírica e pelo aumento de uma palavra mafiosa. Falo pelo fim de uma escrita amorosa e ressentida e pelo início de uma escrita “narcotraficante”. Uma escrita que faça das fronteiras com outras ordens um motivo de ilegalidade. Uma ficção que saiba levar ao paroxismo sua própria condição de ficção. Um discurso menos parecido com outros, estranho aos outros. A palavra que circula por onde não está autorizada.
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