363hrs2

1.
Eu estava sem óculos quando eu vi Johannes pela primeira vez. Esperava começar uma reunião de trabalho com uma dona de galeria que queria olhar minhas coisas — tinha tirado os óculos para olhar um catálogo, enquanto ela não chegava. Quando Johannes passou pelo jardim, não dava nem para ver como ele era, porque eu tenho 3 de miopia, mas eu vi que aquele menino tinha cabelo grande e estava carregando muitas malas. Eu achei que era um assistente de artista; sei lá o que eu achei. Mas um freak logo reconhece outro — Edward Norton logo se ligou que Helena Bonham-Carter era igual a ele — e eu vi ali um igual, uma pessoa em estado caótico, indo ou voltando de um lugar, procurando qualquer coisa na calça, que era santro-peito de hipster (meu Deus, apenas parem), mas eu nem liguei pra isso, foda-se a calça, porque eu estava sem óculos e porque ele era bonito, essa coisas ninguém precisa de óculos para ver.

Eu fiquei olhando para Johannes e perguntei para onde ele, tão lindo, estava indo. Ele disse que não estava indo, que estava chegando. E eu agradeci a Deus que aquele borrão estava ali e ia ficar. “É meu filho”, avisou a mãe dele, se aproximando, a dona da galeria. “É meu filho, acabou de chegar de Argel.” Ela riu, ele riu, eu quis morrer.

Johannes.
Quando a reunião acabou eu dei um jeito de anotar meu telefone no verso de qualquer trapo que achei na minha bolsa, que vinha a ser uma nota fiscal de correio. Escrevi: “Me ligue pro que der e vier”. Fiquei orgulhosa, achei bonito meu bilhete, “me ligue pro que der e vier”, parece uma promessa, Ashton Kutcher fazendo serenata para Amanda Peet — Johannes, I’ll be there for you. Enfiei o bilhete no bolso da camisa velha dele, ao nos despedirmos na porta da galeria com um “xau” bem normal, sem dois beijinhos, sem nada. A mãe dele ligou mais rápido para fechar negócio, já Johannes demorou exatos sete dias e quando me ligou, dia 12 de junho (nunca vou me esquecer) foi me chamando para tomar um sorvete.

Como eu não sou mulher de tomar sorvete, levei para o date duas cervejas. E apareci cedo, para ver Johannes chegando, porque não tem nada mais bonito do que ver o um menino com cabelos longos voando (os cabelos). E Johannes chegou, e os cabelos voavam, e ele acenou, depois de me esperar 20 minutos no lugar certo. Eu, que tinha ido parar no lugar errado do parque, vi Johannes vindo com a mesma calça santro-peito do outro dia e um pulôver daqueles que tem duas rodelas de couro costuradas nos cotovelos, porque Johannes é hipster e pensa que isso é bonito. Eu penso que Johannes é mais bonito que tudo, apesar dos cotovelos.

Eu, que mal tinha ouvido a voz de Johannes, faço muitas perguntas, só para ouvir a voz dele, e a voz de Johannes é bonita e eu gosto muito de olhar para ele enquanto ele fala a voz bonita dele; os dentes de Johannes são todos tortos e bonitos e quando ele sorri os lábios somem, já que, quando sério, tampouco têm muita carne. Johannes coloca os cabelos atrás da orelha usando as costas dos dedos. Johannes gosta de Chico Buarque e cita Hölderlin para mim. Johannes me pede para que eu leia meus poemas, e eu leio, e ele diz que é bonito. Antes de eu me mudar para a Catalunha, juntos Johannes e eu tomamos 4 cafés, 2 cervejas, comemos 2 fatias de bolo (maçã e cheese cake) e 4 bolas de sorvete (kiwi e avelã; baunilha e chocolate), em vários dates diurnos.

Para sair à noite era mais difícil. Nossa presença nos bares da cidade nunca coincidiu, porque eu tenho 33 anos e Johannes tem 21, e eu gosto de Bloody Mary e Johannes é hipster, vai pra outros cantos. Decidi abrir mão de procurar festas que servissem para as duas faixas etárias e me deixei levar, geriátrica, para os clubs que o povo que nasceu nos anos 90 frequenta. Johannes se entupia de coca-cola, e eu ficava pensando no poema de Frank O’Hara (“having a coke with you/is even more fun than going to San Sebastian (…)/partly because of my love for you, partly because of your love for yoghurt”), e recitava esse poema em pensamento, ao mesmo tempo que fingia conhecer e tentava dublar as canções que tocam na pista de uma festa para pessoas que nasceram nos anos 90. Johannes, que não sabe dançar, gosta de ficar olhando as festas e se eu perguntasse “Tás de mau humor?” ele sorria tão animado, “Claro que não”; Johannes como é que tu consegue curtir as festas tomando coca-cola a noite toda, sentado na escada?

Johannes me levava para passear nos lugares que ele gostava de passear, dentro e fora da cidade, e Johannes se movia nos lugares como se tivesse nascido em todos eles. Se estivéssemos subindo uma montanha, Johannes parecia uma cabra-montês e se fosse o caso de andar de patinete, Johannes sabia também, e ele me explicava o nome e para que servia cada planta nos jardins públicos e nos canteiros da cidade, porque Johannes gostava de botânica. E sabia onde ficava leste e oeste e os nomes dos ventos — bóreas, zéfiro, euro e noto. Johannes gostava de sentar no balanço dos parquinhos de praça e se balançar até bem alto, para se jogar quando o balanço atingisse o ponto mais alto que possivelmente pudesse. Era a única aventura de Johannes que eu achava meio besta, simulacro de 10 coisas que eu odeio em você, que ele acha cool imitar, porque para ele os anos 90 são vintage (quando Kurt Cobain morreu eu fui pra escola de preto; Johannes tinha 3 meses).

E quando a gente se olhava nos olhos, e quando ele sorria das coisas que eu dizia, e quando ele sorria de aprovação quando me ensinava alguma coisa do dialeto austríaco (e eu entendia), era como se fosse um troféu; eu sentia uma ternura tão grande, uma vontade de sei lá o quê. Como é o nome disso?

Johannes me contou que quando ele era criança no interior, um cachorro comeu a galinha branca dele, e que ele viu tudo, e ficou muito triste. E o pai dele espantou o cachorro com um pau.

Em “On the bound”, Fiona Apple repete “you’re all I need” 14 vezes em 5 minutos e 23 segundos. Eu fico repetindo esse nome: Johannes, Johannes. Quando cheguei em Aguiló era esse nome que eu estava falando, parecia um Humbert, se Humbert usasse vestido de viscose, pronta para levar um tiro.

2.
Antes de calçar esses sapatos decidir voltar para a cidade fosse como fosse, Johannes, eu passava minhas manhãs observando os gatos de Aguiló e lendo pela 14ª vez as obras completas de Adília Lopes. Não sei quantas vezes já as li — tem gente que é analfabeta, eu nesse sentido sou “monofabeta”, o que também diz muito sobre a meu jeito de ser. Eu gosto muito das coisas que gosto.

Eu, “que já fui do pequeno-almoço à loucura”, e que já peguei aviões São Paulo-Colônia em nome de um leonino com quem vim a me casar e corri atrás do último ônibus para Leipizig porque queria ver um ariano e que fazia um desvio enorme com a bicicleta só para passar pela Berlim Oriental de um taurino; eu agora passo na frente dos playgrounds e parquinhos públicos, fazendo esse papel psicopata, para ver se você está saltando tardio de algum balanço. Existem impostos que comprem meu direito de ver você pulando do balanço no parquinho, Johannes?

Será que você já leu Maiakovski tantas vezes quanto eu reconheço, quando leio os 2 e-mails que você mandou para mim desde que fui embora da cidade, dia 30 de junho? Será que existe alguma relação Fibonacci entre os 18 e-mails que mandei desde então e os 2 que você me escreveu? Sei que Fibonacci está muito em alta entre os jovens, então fiquei pensando.

Antes de calçar esse sapatos e vir andando até aqui, Johannes, eu olhava muito as redes sociais. Eu fiz um print screen da única vez que houve uma atualização sua, porque me pareceu bonito que estivéssemos online ao mesmo tempo. Você não falou comigo e atualização não se referia a nada que pudesse ter a ver conosco, mas eu gostei de acompanhar você existindo. Toda notificação de atualização que não é sua é um insulto, e todas as vezes que o telefone não tocou, sei que era você. Johannes, se para cada vez que eu aperto o “refresh” morresse uma pessoa na Terra, não sobraria nenhum ser humano vivo. Eu encontrei uma foto sua no Facebook, bem escura, você no contraluz, que clareei no Photoshop até poder ver seu rosto. Foi lindo o que o Photoshop revelou: você estava com um pote de mel na mão e uma colherinha, que antes devia estar no pote de mel, na boca. Johannes, por que você não me responde?

No seu segundo e-mail você falou de La Fontaine, e fui pesquisar La Fontaine e cheguei na amante de Luis 14 que tentou envenena-lo com uma poção fabricada pela bruxa Catherine Deshayes, que foi queimada viva ao ser julgada por uma “câmera ardente”, que era uma comissão especial de julgamento de casos sem apelação em que as pessoas ou eram condenadas à morte ou às galés, mas a amante foi perdoada, assim como Racine foi perdoado, e Racine era muito amigo e La Fontaine, e quando La Fontaine foi citado na biografia de Racine eu lembrei de você, porque você gosta de La Fontaine e porque todas as coisas no fim das contas me levam a você; é o destino. Por isso é que eu vim andando.

Na França tem uma cidade chamada Pau, é perto de Lourdes, vi no mapa, mas ficava muito fora da minha rota para eu passar lá, assim, como não quer nada. Eu queria muito morar lá, só pra pode dizer isso. “Moro em Pau”. “Tô voltando hoje pra Pau”. Sei que pra você, que não fala brasileiro, isso não tem a menor graça, mas sei lá, o importante é dizer as coisas, não é? Será que seu pau herdou esse inexplicável tom de ruivo-divino que tem as suas sobrancelhas?

Rimbaud também chegou andando em Paris, Johannes, como eu chego hoje até aqui, e é engraçado lembrar de Rimbaud agora, porque era assim que eu te chamava, porque você parece com Leonardo di Caprio quando ele era jovem e se ele fosse ruivo, e porque você morou na África e porque eu e Paul Verlaine temos você em comum. Johannes, você abriu minhas cartas?

Sabia que depois de 15 dias sem dormir uma pessoa não sabe mais contar de trás pra frente? Os ratos que ficam 15 dias sem dormir morrem. A sua memória é de mais ou menos 50 segundos. Sabia, Johannes, que a mulher que passou mais tempo sem dormir se chamava Maureen Weston, passou 449 horas acordada e ela estava todo esse tempo numa cadeira de balanço? 363 horas são 15 dias, quantos dias são 449 horas e onde chegaria se andasse tudo isso?

Eu não sei se você sabe que estou aqui embaixo. Bom não exatamente embaixo da sua janela, porque tenho medo de você sair pra comprar cigarro e me ver assim. Estou limpando os pés no café com os janelões, esse onde a gente se encontrava e que a gente chamava de aquário, na esquina da sua casa. Vim tirar a terra de cima de mim, trocar de blusa, me fazer apresentável. Não é porque andei 363 horas até aqui que aceito ser vista por você de qualquer jeito. Não quero você pense que estou desesperada.

Eu espero que você me perdoe a personalidade, Johannes, andei 1761 km até aqui e admito que não é apropriado, chegar assim sem avisar.

Johannes, por que você nunca mais me respondeu?