Como uma foto desbotada, a manhã revelou-se em cinza quando me avisaram que ele havia sido baleado:
– Deu na TV, no programa das nove. Cinco tiros, na frente da mãe!
A cidade nem parecia a mesma da véspera à noitinha. Voltara a se mexer, como casa de maribondos: balconistas de lojas, funcionários públicos, donos das bancas plantadas nas calçadas, pivetes em revoada.
Uma notícia de desnorteio e eu ainda a vê-lo no seu jeans desbotados, tênis vermelho, jeito de jogador de time de subúrbio. Quem agora apascentaria minhas horas, aliviaria essa minha pressa em chegar, onde, ninguém sabe? Após a notícia, ignorei o jogo da decisão final, o emaranhado do trânsito, os gritos nas ruas, o borbulhar da cerveja: precisava de um desviar de rota, ir em busca de minha baleia branca em outro lugar da cidade.
Diminuo a marcha, baixo o vidro fumê, essa cortina de desprezo que nos isola da rua. Aumento o volume do rádio. O locutor anuncia uma alta imprevista da taxa do dólar, faz considerações sobre o déficit primário e a balança comercial. Voz fanhosa, trata de economia com a futilidade com que descreve o resultado do futebol.
Fora, o barulho das buzinas e sua dupla função de comemorar a vitória do time que galgou a primeira divisão e a de romper o tédio dos que olham com indiferença seu derredor, sem atentarem que essa sinfonia malsã abriga um tsunami.
Quem substituirá o morto quando for preciso me deslocar, me descolar desse território submerso no desassossego, onde somente o que ele me trazia desenferrujava a rotina?
Movimento-me entre pequenas casas pintadas de cores vivas, entremeadas por bares e um mercadinho, onde as compras são debitadas num caderninho. Perto de uma escadaria, ao lado da barraca de frutas, procuro quem poderá substituir o desaparecido.
Não sei se os cais se movem ou se apenas percebemos o movimento dos navios. Sem norte, dirijo-me à banca de jogo do bicho. Vou insistir na cobra, número 9, dezenas de 33 a 36. Há vários dias é a sugestão que me chega em ondas de sonho. Fixo-me no número inicial da dezena, 33, a idade do Cristo, o Calvário, a grande calva desse morro que tem ares de um lençol negro abatido sobre a cama.
Dirijo-me à menina da banca:
– Uma centena. Você mesma faz o jogo!
Ela sorri, como se não acreditasse no palpite e me diz que o dia está mais para avestruz.
O que me traz essa curva de lábios num beco de morro, esse boteco de esquina, essa luz cristalizada no copo de cachaça, esse número da milhar a sugerir a astúcia de Oxumaré esgueirando-se por entre pernas espalhadas na calçada, essa tatuagem plantada no solstício da coxa?
Dou-lhe duas notas de cinco reais e, sem me olhar, ela me entrega o papelzinho com números do palpite, espécie de passaporte ou atestado de migração de classe.
COBRA!
Subo.
Sigo no rumo de uma colina que se destaca pelos buracos e cercas quebradas e depósitos de lixo.
Aos poucos, vou descortinando os imensos edifícios que me impedem de ver o mar, o suor minando das axilas.
Vislumbro o horizonte com o sentimento do abismo, cercado de paredes sujas e prédios carcomidos.
As barreiras cobertas de plástico negro para impedir desmoronamentos anuviam a paisagem.
Uma brisa murmura um esconjuro.
No centro de uma praça, ergue-se a Academia da Cidade, placa enferrujada soletrando nomes de pretensas autoridades e seus asseclas. Uma pesada viga de concreto erguida em forma de cadafalso serve de suporte ao letreiro que anuncia a obra e a data de inauguração em letras garrafais. Obesos se exercitam numa ginástica de gestos desconjuntados. Crianças descalças correm no cimento escaldante atrás de uma bola: esfera, planeta, planeta que nunca alcançarão. E tudo sob um sol escaldante, que se derrama sobre os corpos como o chumbo da Inquisição, o chumbo arrasador e invisível que a Santa igreja injetou em nossas cabeças. Uma espécie de versão light daquele metal em ebulição que os ibéricos introduziam no ânus dos supliciados para arrancar confissões dos infiéis. Um chumbo que nos obriga a pisar devagar, dar bom-dia ao senhor doutor, aguardar com a paciência do condenado as horas a fio nas filas do desespero.
E a CALAR.
No muro sujo que separa a rua de um despenhadeiro uma inscrição feita com pincel atômico. São garatujas a anunciarem que o território tem dono. Cumprem a função da urina da fera delimitando fronteiras no espólio do Diabo.
Vou me aproximando.
A viatura da polícia passa devagar.
Um dos tiras contraria a lei do trânsito, o braço pendente fora da viatura. Um leve toque da sirene alerta os incautos, previne delinquentes.
De vez em quando, o polícia ao lado do motorista faz pequenos acenos aos rapazes agachados no meio fio ou ao homem que guarda papelotes na gaveta de seu carrinho de pipocas.
Todos estão de sobreaviso.
Detrás dos muros, dos altos batentes, das casas com tetos espetados por antenas de TV, sabe-se o limite entre cumplicidade e temor.
Todos seguem a viatura acinzentada, luzinha vermelha piscando como os olhos do tigre de bengala do Horto de Dois Irmãos: fera ofegante entre barras de ferro, séculos reprimidos, arregimentando forças para o bote.
Ao sinal de um dos policiais, duas curuminhas tatuadas, escoradas na amurada do beco, encaminham-se para o descampado.
Uma grande Árvore serve de abrigo noturno a alguns automóveis e motos e onde se juntam, ajuntam-se:
tiras/meninas,
meninas/tiras,
tiras/delinquentes,
deliquentes/meninas.
E as pessoas em torno acordam e logo se despedem.
Como se um toque de recolher houvesse ecoado
num imenso
OUVIDO INVISÍVEL.
Por quem buzinam os automóveis
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- Categoria: Inéditos
- Escrito por Everardo Norões