A sinagoga dos iconoclastas1

O argentino J. Rodolfo Wilcock (1919- 1978) encerra a série Otra Língua, da Editora Rocco, um dos melhores projetos editoriais recentes do Brasil. Nosso editor, Schneider Carpeggiani, fala sobre o título que chega às livrarias em abril:

“Wilcock era do ciclo de amizade de Bioy Casares e Borges. E, tal qual Borges em História universal da infâmia, fez um bestiário humano impressionante nesse A sinagoga dos iconoclastas, das obras mais estranhas e fulminantes da literatura hispano-americana no século passado. É fácil ver a influência que ele teve em nomes como Roberto Bolaño e Enrique Vila Matas. A sinagoga dos iconoclastas, para usar a definição do seu próprio autor, é um daqueles 'dicionários' nascidos com o sinal da epopeia sobre a testa”.

Separamos o verbete que conta a vida do utopista Aaron Rosenblum, que não se preocupou em gerar tragédias para erguer sua utopia. Um texto que diz muito sobre o momento que vivemos:

"Aaron Rosenblum

Os utopistas não se preocupam com os meios; mesmo para tornar o homem feliz, estão prontos para matá-lo, torturá-lo, incinerá-lo, exilá-lo, esterilizá-lo, esquartejá-lo, lobotomizá-lo, eletrocutá-lo, mandá-lo para guerra, bombardeá-lo et cetera: depende do plano. Conforta pensar que mesmo sem plano os homens estão e sempre estarão prontos para matar, torturar, incinerar, exilar, esterilizar, esquartejar, bombardear et cetera.

Aaron Rosenblum, nascido em Danzig, crescido em Birmingham, também havia decidido fazer a humanidade feliz; os danos que provocou não foram imediatos: publicou um livro sobre o tema, mas ficou por muito tempo ignorado e não teve muitos seguidores. Se os tivesse conquistado, não existiria talvez agora uma única batata na Europa, nem um lampião pela estrada, nem uma caneta de metal, tampouco um piano.

A ideia de Aaron Rosenblum era demasiadamente simples; não foi o primeiro a pensá-la, porém foi o primeiro a levá-la até as últimas consequências. Apenas sobre o papel, porque a humanidade nem sempre tem vontade de fazer aquilo que deve fazer para ser feliz, ou para sê-lo prefere escolher seus próprios meios, que em todo caso, como os melhores planos globais, também provocam mortes, torturas, prisões, exílios, esquartejamentos, guerras.

Cronologicamente, a utopia de Rosenblum não teve sorte: o livro que devia torná-la conhecida, Back to Happiness or On to Hell (Atrás da felicidade ou diante do inferno), foi publicado em 1940, precisamente quando o mundo pensante estava muito empenhado em se defender de outro plano, igualmente utopista, de reforma social e de reforma total.

Rosenblum, antes, havia se questionado: qual foi o período mais feliz da história mundial? Acreditando-se inglês, e como tal depositário de uma tradição bem definida, decidiu que o período mais feliz da história havia sido o reino de Elisabete, sob o sábio comando de Lord Burghley. Não por acaso, havia produzido Shakespeare; não por acaso, naquele período a Inglaterra havia descoberto a América; não por acaso, naquele mesmo período a Igreja Católica havia sido para sempre derrotada e forçada a se refugiar no distante Mediterrâneo. Há muitos anos Rosenblum era membro da Alta Igreja protestante anglicana.

O plano de Back to Happiness era, portanto, o seguinte: transportar o mundo para o ano 1580. Abolir o carvão, os carros, os motores, a luz elétrica, o milho, o petróleo, o cinematógrafo, as estradas asfaltadas, os jornais, os Estados Unidos, os aviões, o voto, o gás, os papagaios, as motocicletas, os Direitos Humanos, os tomates, os piróscafos, a indústria siderúrgica, a indústria farmacêutica, Newton e a gravitação, Milton e Dickens, os perus, a cirurgia, as ferrovias, o alumínio, os museus, as anilinas, o guano, a celuloide, a Bélgica, a dinamite, o fim de semana, os séculos XVII, XVIII, XIX e XX, a escolaridade obrigatória, as pontes de ferro, o bonde, a artilharia leve, os desinfetantes e o café. O tabaco podia permanecer, visto que Raleigh fumava.

Reciprocamente, era necessário restabelecer: o manicômio para os devedores; a forca para os ladrões; a escravidão para os negros; a fogueira para as bruxas; os dez anos de serviço militar obrigatório; o costume de abandonar os recém-nascidos pela rua no mesmo dia do nascimento; as tochas e as velas; o hábito de comer com o chapéu e com a navalha; o uso da espada, do espadim e do punhal; a caça com arco; o latrocínio nos bosques; a perseguição aos judeus; o estudo de latim; a proibição às mulheres de reduzir as cenas; os ataques dos piratas aos galeões espanhóis; o uso do cavalo como meio de transporte e do boi como força motora; a instituição dos morgados; os cavaleiros de Malta a Malta; a lógica escolástica; a peste, a varíola e a febre tifoide como meio de controle populacional; o respeito à nobreza; a lama e os charcos nas ruas do centro; as construções de madeira; a criação de cisnes no Tâmisa e de falcões nos castelos; a alquimia como passatempo; a astrologia como ciência; a instituição da vassalagem; o ordálio nos tribunais; o alaúde nas casas e as trombetas nas ruas; os torneios, as armaduras damasquinadas e a cozedura de armas; em suma, o passado.

Pois bem, era óbvio até mesmo aos olhos de Rosenblum que a planejada e ordenada realização de tal utopia, em 1940, teria requerido tempo e paciência, além da colaboração entusiasmada por parte da mais influente opinião pública. Adolf Hitler, é verdade, parecia disposto a facilitar um pouco a obtenção de alguns entre os pontos mais trabalhosos do projeto, sobretudo no que dizia respeito às eliminações; mas como bom cristão Aaron Rosenblum não podia não se dar conta de que o chefe de Estado alemão estava se deixando levar por tarefas totalmente secundárias, como a extinção dos judeus, em vez de se ocupar seriamente em conter o avanço dos turcos, por exemplo, ou de organizar torneios, ou de difundir a sífilis, ou de ornar com miniaturas os missais.

Aliás, por mais que estivesse continuamente estendendo sua mão, Hitler parecia nutrir ocultamente certa hostilidade em relação aos ingleses. Rosenblum entendeu que deveria fazer tudo sozinho; mobilizar sozinho a opinião pública, recolher assinaturas e adesões de cientistas, sociólogos, ecologistas, escritores, artistas, amantes em geral do passado. Infelizmente, três meses depois da publicação do livro, o autor foi recrutado pelo Serviço Civil de Guerra como vigia de um armazém sem nenhuma importância na zona mais desabitada da costa do Yorkshire. Nem mesmo um telefone tinha à sua disposição: sua utopia corria o risco de acabar na areia.

Ao contrário, ele que caiu na areia, e de modo insólito: enquanto passeava pela praia colhendo telinas e outros seres quinhentistas para o café da manhã, no decorrer de um ataque aéreo evidentemente realizado a título de treino, desapareceu dilacerado num buraco e seus fragmentos foram imediatamente cobertos pela água do mar.

Já falamos da vocação mortal dos utopistas; mesmo a bomba que o matou respondia a uma utopia, não muito diferente da sua, embora aparentemente mais violenta. Essencialmente, o plano de Rosenblum se fundava na rarefação progressiva do presente. Partindo não de Birmingham, que estava muito preta e que iria solicitar, pelo menos, um século para sua limpeza, mas, sim, de um pequeno centro periférico como Penzance, em Cornualha; se tratava simplesmente de delimitar uma zona – talvez a adquirindo com os fundos da Sixteenth Century Society, que ainda seria fundada – para depois proceder à exclusão, através da área de beneficiamento, com coragem minuciosa, de todo e qualquer objeto, costume, forma, música ou vocábulo referentes aos séculos acusados, ou seja, os séculos XVII, XVIII, XIX e XX. A lista bastante completa de objetos, conceitos, manifestações e fenômenos preenche quatro capítulos do livro de Rosenblum.

Ao mesmo tempo, a sociedade e instituição patrocinadora, a Sixteenth Century Society, teria providenciado a inserção de tudo aquilo que já foi dito – salteadores, velas, espadas, burros de carga e assim por diante nos outros quatro capítulos do livro – o que teria sido suficiente para converter a colônia nascente num paraíso. De Londres as pessoas teriam corrido em grupo para mergulhar no século XVI; a sujeira resultante logo teria começado a operar uma primeira seleção natural, necessária para levar a população aos níveis do ano 1580.

Com a entrada dos visitantes e dos novos inscritos, a Sixteenth Century Society teria sido, portanto, capaz de ampliar aos poucos seu campo de ação, expandindo-se para o alto, até chegar a Londres. Voltar a limpar Londres de quatro séculos de casas e de manufaturados de ferro era um problema a ser resolvido separadamente, talvez publicando o edital de um concurso de projetos aberto para todos os jovens amantes do passado. Mas algo nesse sentido parecia já ter em mente o outro utopista, aquele para o outro lado do Canal da Mancha; na dúvida, Rosenblum optava pelo cerco: talvez um mero cinturão do século XVI ao redor da capital seria suficiente para fazer tudo desabar.

O plano procedia depois rapidamente até cobrir toda a Inglaterra, e da Inglaterra, toda a Europa. Na realidade, os dois utopistas tendiam por vários caminhos à mesma meta: assegurar a felicidade do gênero humano. A utopia de Hitler, nesse ínterim, caiu em total descrédito, conhecido por todos. A de Rosenblum, ao contrário, renasce periodicamente sob inúmeros disfarces: há quem esteja propenso à Idade Média, quem ao Império Romano, outros ainda ao Estado de Natureza, e Grünblatt é partidário até mesmo do retorno ao Macaco. Se se subtrai da população atual do mundo a população presumida do período pré-escolhido, se tem o número de bilhões de pessoas, ou de hominídeos, condenados a desaparecer, de acordo com o plano. Tais propostas prosperam; o espírito de Rosenblum ainda perambula pela Europa."