O texto a seguir é a introdução do livro O sentimento da catástrofe: entre o real e o imaginário, da crítica literária francesa Annie Le Brun, e será publicado no Brasil pela editora Iluminuras.
Em menos de duas décadas, as reflexões sobre a catástrofe, tema cada vez mais privilegiado, se tornaram quase um gênero, passando da deploração às instruções de uso. É bem verdade que a atualidade vem contribuindo para isso, ao renovar prodigamente os exemplos. Estes, por sua vez, não são de pouca monta, já que o leque de nossas desgraças recentes — sejam elas de origem química, alimentar, climática, industrial ou nuclear — se abre entre as catástrofes maiores que foram Chernobyl e Fukushima.
No entanto, se Chernobyl, com seus terríveis efeitos de longo prazo, continua a alimentar a crônica, não deixa de surpreender o tratamento relativamente discreto reservado a Fukushima, ainda mais se comparado ao tsunami tailandês de 26 de dezembro de 2004 ou mesmo à erupção do vulcão islandês Eyjafjöll, de abril de 2010. Sem dúvida, levando-se em conta os perigos evidentes e potenciais ligados às catástrofes de Chernobyl e de Fukushima, as autoridades russas e japonesas fizeram a mesma opção de filtrar a informação a fim de maquiar às pressas a flagrante responsabilidade que lhes cabia.
Assim, com o mesmo objetivo de simular que os estragos estavam sob controle, ambos os desmentidos pretendiam reiterar uma ilusão cada vez mais mentirosa, ao ponto de, nos dois casos, a opinião pública já não mais conseguir distinguir o desmentido da mentira.
Assim, inaugurou-se um processo de indiferença ao pior que ainda hoje caracteriza a recepção de Fukushima, processo induzido pelas sucessivas reclassificações do acidente, ao qual se atribuiu a princípio o nível 4 para, alguns dias mais tarde, ser reavaliado como de nível 5 e depois, enfim, de nível 7. Avaliação de gravidade equivalente àquela de Chernobyl, mas que tampouco teve o efeito tranquilizador de esclarecer aquilo que definitivamente não está esclarecido, dando testemunho de uma nova espécie de anestesia que vai de par com a impossibilidade de se representar o que está se abatendo sobre nós. Fala por si a desproporção entre os comentários sobre Fukushima e todo barulho em torno do tsunami tailandês, ou da erupção do vulcão islandês, da mesma forma como o número de participantes nas manifestações contra a energia nuclear após a explosão de Fukushima foi paradoxalmente proporcional à sua distância do teatro de um acontecimento cuja gravidade pôde passar por incerta, ainda que extrapole tudo o que poderíamos imaginar. Por que, convém perguntar, o tsunami que enlutou as férias de Natal de turistas europeus ou as cinzas do vulcão que interromperam por várias semanas metade do tráfego aéreo terão merecido mais atenção que o tremor no Japão? Não foi este último, então, com o dilaceramento de quatro reatores nucleares, que desencadeou fenômenos imprevisíveis de contaminação, fenômenos estes considerados atualmente ainda mais alarmantes que os de Chernobyl?
A rigor, as catástrofes provocadas pelo tsunami tailandês ou pelo vulcão islandês eram, aparentemente, naturais e não representavam ameaça alguma para a ideologia tecnicista. Não é diferente o que ocorre com o desastre de Chernobyl que, no fim das contas, será implicitamente atribuído à imperícia do antigo sistema soviético, considerado pouco apto para controlar a energia nuclear e surpreendido em sua carência de tecnicidade. Por outro lado, as coisas se passaram de maneira completamente distinta com o desastre de Fukushima que, ao contrário, resultou de um conjunto de fatores indissociáveis das escolhas fundamentais da sociedade pós-industrial e de sua sujeição à potência nuclear, ao ponto de se construírem sobre uma falha sísmica cinquenta e quatro reatores nucleares, num país em que a lembrança das primeiras bombas atômicas jogadas sobre Hiroshima e Nagasaki, em 1945, não podia deixar qualquer dúvida sobre os riscos que estavam em jogo.
Como, então, deixar de interrogar a neutralização imposta a tais acontecimentos que são, na realidade, tão emblemáticos de nossa época quanto foi o terremoto de Lisboa, de 1755, em seu tempo? Não se assiste, como no evento do século XVIII, a uma significativa acumulação de fatores desencadeantes e, por consequência, a uma total revisão dos valores? Passado o pasmo dos primeiros dias, que se pode entender como a base de certa tomada de consciência coletiva, é forçoso constatar que o debate arrefeceu muito rapidamente. E isso não apenas em decorrência das inúmeras promessas de avaliação das centrais nucleares europeias ainda em atividade, mas sobretudo graças à escandalosa alegação, reiteradamente repetida, de um pendor para a fatalidade que se confundiria com o gênio japonês. Questão que nem as mais justas análises ambientalistas puderam se dar conta, mesmo estando no local, pois quando se tornou impossível camuflar certas evidências, governantes e governados viram-se envoltos numa mascarada para aceitar e fazer aceitar o inaceitável.
Espanta ainda o fato de que tal consenso no interior do Japão, que repercute mundo afora, sob o pretexto de reconhecer a dignidade silenciosa de um povo aguerrido frente a toda espécie de cataclismos, não tenha sido percebido como uma nova etapa de submissão à ordem das coisas, correspondendo a um nível inquietante de servilismo que se afere em escala mundial. Tanto que, se as relações entre catástrofe imaginária e catástrofe real me inquietavam em 1989, eu ainda ignorava que Günther Anders havia pressentido desde os anos 1950 a pane do imaginário que eu então descrevia. Partindo da radical novidade da situação atômica, ele realmente conseguiu mostrar como nos encontrávamos cada vez mais subjugados pelo que produzíamos, justamente por não podermos representar nem a extensão nem a natureza dos efeitos da técnica. De fato, era o mesmo fenômeno que eu evocava, mas visto do interior, constatando a que ponto a realidade atômica barrava nossa imaginação, chegando a impor sua força de destruição ao nosso poder de negação capaz de desdobrar o infinito de suas perspectivas imaginárias.
Assim começava o reino de uma miopia geral que nos deixava cada dia mais incapacitados para avaliar as consequências desastrosas, ao ponto de não mais sabermos discernir o que ligava a causa ao efeito. De modo que, em poucas décadas, o imaginário catastrófico ficou reduzido à figuração de acidentes cuja gravidade espetacular servia de pretexto para glorificar uma técnica definitivamente salvadora. Que nos recusemos a enxergar isso constitui em si uma catástrofe inédita, que hoje chega a ultrapassar todas as demais. Ou seja, se coube a René Rissel e a Jaime Semprun mostrar, em 2008, quais “submissões duráveis” induziram os discursos do catastrofismo, quase todos trabalhando, de perto ou de longe, na “administração do desastre”, não se deveria dar a mesma importância à busca de uma perspectiva imaginária que pudesse, como um “capricho de inversão óptica”, nos fazer “ver as coisas onde elas não estão”? Não seria, então, essa perspectiva capaz de nos revelar um ponto de fuga que, invisível, ainda pode representar a garantia de nossa liberdade?