Sim, seria um livro escrito ao som de gemidos e de soluços. Ou uma narrativa sóbria, técnica, glacial? Ponderei muito antes de escrever O senhor agora vai mudar de corpo, meu romance em que trato do AVC que sofri em 2010. Afinal, sou um escritor que se dedica muito ao estudo estratégico da narrativa e me distancio cada vez mais do emocional, do lírico e do romântico, para evitar as lágrimas de moçoilas em flor.
Mas não posso negar, quase, quase e por muito pouco não caio na tentação e me transformo num personagem piedoso que se lança às mãos do destino para lamentar a carreira interrompida, o tombo da madrugada cheia de lamentações, o corpo torto que geme e treme a cada tentativa de movimento. Cheguei a investir num livro assim, quando escrevi as primeiras palavras daquele que seria "Às vésperas do sol" – primeiro título do livro – perguntando se era justo que um homem cheio de projetos e de esperanças fosse dormir à noite para acordar cedo da manhã transformado num traste, sem forças para se levantar da cama. Falaria então deste escritor que vivia a glória – e existe mesmo esta glória do romance Minha alma é irmã de Deus, lançado meses antes e com o qual eu conquistara dois grandes prêmios, o Machado de Assis, da Biblioteca Nacional, e o Prêmio São Paulo de Literatura.
O livro estava programado desde o instante em que acordei no hospital, consciente de que tivera um AVC isquêmico, perguntando: “Será que ainda vou escrever?” Então me debati, mentalmente, com as primeiras palavras. Foi aí que essas palavras iniciais ficaram emocionais, fracas, imbecis. Esperei ser liberado do hospital para começar o trabalho – meus dedos ficaram com os tendões pesados, sem movimentos e, assim, tornou-se impossível usar o teclado do computador.
Já em casa, dias depois, procurei usar o micro, mas meu corpo não se sustentava sentado durante muito tempo e caía. Minha mulher, Marilena, comprou um laptop e consegui, com esforço, escrever as primeiras palavras. Algo profundamente doloroso e sem agilidade: uma palavra a cada meia hora. Minha fisioterapeuta, Elaine Vasconcelos, sugeriu então que eu ditasse. As primeiras palavras foram escritas assim, no grito, literalmente. A mente, porém, estava me iludindo: percebi logo que não estava escrevendo O senhor agora vai mudar de corpo, mas o romance Tangolomango, a história de Tia Guilhermina e Matheus, programado mesmo para ser lançado depois de Minha alma, concluindo o quarteto programado desde que escrevi Maçã agreste, seguido de Somos pedras que se consomem e O amor não tem bons sentimentos. Compreendi que não fora iludido pela minha mente, mas seguia apenas o que ela mesma havia programado. Tangolomango, aliás, não se chamaria Tangolomango, mas "Ritual das paixões deste mundo", que passou a subtítulo. Naquele momento, entendi que precisava de uma só palavra que revelasse todo o romance. Como falava de um desfile do bloco Galo da Madrugada, no Recife, entendi que os vários cordões fantasiados contavam 1. a história do Brasil, e 2. a inquietação erótica da sociedade. Fiz isso optando por um narrador onisciente que pudesse circular livremente pelas histórias, revelando o presente e o passado. Enfim, escrevi um romance pensando que estava escrevendo outros. E, depois das primeiras 20 páginas, desisti de gritar e escrevia tudo com um dedo só da mão direita – como estou fazendo agora – porque precisava sentir o pensamento que sai da mente para sentir o tato no teclado.
Tempos depois, recomecei O senhor agora vai mudar de corpo insistindo na narrativa emocional. Mas não era aquilo que eu queria: um escritor atingido no auge da carreira por um terrível AVC, que deixa o corpo envelhecido torto e a mão esquerda imprestável. Um inútil guerreiro que vence o dragão da maldade com exercícios de fisioterapia e uma inquebrantável força de vontade, chorando as dores da noite e acordando com a espada na mão para decapitar os malvados. Nada disso. Sou apenas um escritor e um escritor que não suporta romances chorosos que narram óbvias histórias de cura.
Optei pela técnica das imagens, das metáforas e dos símbolos. O romance começa, justamente, com um falso monólogo interior e assim mesmo – por incrível que pareça – por um desfile carnavalesco em terceira pessoa. Que significa “voltar a viver é um carnaval”. Mas o que é isso? Monólogo em terceira pessoa? O desfile mostra um grupo de foliões composto por um homem gordo, um homem magro, um velho, um anão e uma mulher grávida. Tudo porque a cuidadora me disse antes: o senhor agora vai mudar de corpo. E de repente fiquei pensando: Que corpo? Como será meu corpo? Dessa forma começa o monólogo. Mas em terceira pessoa? Sim, em terceira pessoa, porque decidi não ser lacrimoso nem emocional, do tipo: “Vejam que desgraça aconteceu comigo. O AVC foi tão cruel, que agora vou mudar de corpo”. E falaria em dor, em pânico, em desgraça. Sempre emocionando, emocionando. Está escrito na página 11: “Atônito, confuso, inquieto: Que corpo? Perguntaria, arrumando a roupa”. Para quebrar a dramaticidade idiota, usei o que antigamente chamaríamos de condicional: “Perguntaria”. O presente do indicativo – pergunta – ou o pretérito perfeito – perguntou – devolveria a dramaticidade ao texto, pela voz imperiosa.
Mais tarde, usei metáforas e símbolos – sombras, para as dificuldades, fezes para a vida cheia de odores e de lamaçais, morcegos para a angústia e o desespero. No final do romance, voltei a usar um desfile circense com um transformista gordo e chapliniano fazendo um discurso sobre cinema, Carlitos e a revolução dos pobres, em meio a um dilúvio, o que significa dizer que é assim que a vida se transforma. A água é sempre o símbolo da purificação. Tudo muda, tudo se transforma. Recorri a essa imagem felliniana mesmo assim, por uma questão de honra e de sinceridade, devo revelar que me defini pelo título por sugestão do meu amigo Schneider Carpeggiani. Contei a ele que estava querendo mudar o título, mesmo enquanto escrevi e ele me disse: “A cuidadora já encontrou o título, você não percebeu?”. A cuidadora, que se chama Dione e que ouvia nossa conversa ali pertinho, riu com os cantos da boca e seus olhos brilharam.
Com amor, mas sem lágrimas e gemidos
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- Categoria: Inéditos
- Escrito por Raimundo Carrero