Ivi1

Ela está bem aqui.
Ela foi cuidadosamente esculpida para você
saída de sua infância
saída dentre seus cem colegas de escola preferidos.

Ela sempre esteve aqui, meu bem.
Ela é de fato extraordinária.
Fogos de artifício no meio do sempre maçante Fevereiro
e tão real como uma panela de ferro fundido.

Vamos ser sinceros, eu fui passageira.
Um artigo de luxo. Um veleiro vermelho-brilhante no cais.
Meu cabelo para fora da janela do carro, esvoaçante como fumaça.
Mariscos fora de época.

Ela é mais do que isso. Ela é o que você tem de ter,
ela semeou seu crescimento prático, tropical.
Ela não é uma experiência. Ela é toda harmonia.
Ela cuida para que no bote salva-vidas haja remos e ganchos,

coloca flores do campo na janela para o café-da-manhã,
ao meio-dia senta-se à roda do oleiro,
criou três filhos sob a lua,
três querubins desenhados por Michelangelo,

fez isso com as pernas abertas
nos terríveis meses na capela.
Se você olhar para cima, as crianças estão lá
como balões delicados que descansam no teto.

Ela também carregou cada uma pelo corredor
depois do jantar, suas cabeças inclinadas,
duas pernas protestando, íntimas, pessoa contra pessoa,
o rosto corado com uma canção e soninho.

Eu devolvo seu coração.
Eu dou meu consentimento –

para o detonador dentro dela, latejando
na lama com raiva, para a sua cadela interior
e o enterro das suas feridas –
para enterrar viva a ferida, pequena e vermelha –

para a pálida tremelicante labareda debaixo de suas costelas,
para o marinheiro bêbado que aguarda em seu pulso esquerdo,
para o joelho materno, para a meia,
para a cinta-liga, para a chamada –

a estranha chamada
você vai se esconder nos braços e nos seios
e puxar a fita cor de laranja do cabelo dela
e atender a chamada, a estranha chamada.

Ela é tão nua e única
Ela é a soma de você mesmo e o seu sonho.
Escale-a como um monumento, passo a passo.
Ela é sólida.

Quanto a mim, sou uma aquarela.
Eu evaporo.

***

Decidi traduzir os Love poems (o quarto livro de Anne Sexton, publicado em 1969) enquanto escrevia eu mesma O martelo. Meu método era simples: traduzir os textos na ordem do original, nos dias em que eu mesma não conseguisse escrever nada que prestasse. Assim, groupie que acha que dublar uma música é o mesmo que saber a partitura, eu esperava ansiosa a hora de traduzir “For my lover returning to his wife”, meu poema preferido. Mas não me dei conta que ele começa com uma frase simples demais para ser traduzida facilmente: “She is all there”.

Em inglês, “be there” significa presença, sim, mas também apoio, mas também existência. E mais: “ela” não está apenas lá, mas esta “toda” lá. Lá, onde? “Toda”, quanto? E como? Mais do que tudo, ainda que seja meio óbvio que “ela” é a esposa, quem é “ela”? Essas perguntas me perseguiram durante meses (ainda me perseguem).

Minha leitura desse poema já mudou muito, e acho que isso só diz como ele é vivo. Antes, achava o texto revolucionário pela sinceridade (como se Anne já fosse pós-pósmoderna nos anos 60!), aquela sinceridade que David Foster Wallace aponta no ensaio “Television and US fiction” como sendo a próxima revolução. Hoje, acho o poema importantíssimo pela honestidade pragmática com que ela olha para seu lugar de “amante e poeta”: com resignação, mas em pé de igualdade com todos os envolvidos e sem esculhambar ninguém. Ela, Anne, é um artigo de luxo, sim, mas a esposa é um de sobrevivência. Não há moralismo na abordagem, porque uma não é mais importante do que a outra.

A palavra “luxury” que Anne usa é muito diferente do uso da mesma palavra que faz sua conterrânea Diane di Prima no livro Recollections of my life as woman (2001, inédito no Brasil), quando esta diz que homens são artigos de luxo. No caso de Anne, não há relação de poder, como há no contexto ao qual Diane se refere. Poderia-se, assim, pela horizontalidade da relação mulher vs amante proposta por Anne, falar de sororidade e redenção: “I give you back your heart/ I give you permission”.

Em tempos do feminismo difícil de “Lemonade” – em que Beyoncé não consegue, apesar dela mesma ser feminista, entender a “outra”, focando toda sua energia em compreender e diminuir os afetos do marido, ratificando uma importância do lugar da esposa que para a cantora parece ser incontestável e, por conseguinte, caindo num jogo de slut shame com “a outra” –, Anne se volta para aquilo que faz a “outra” (sob a perspectiva de Anne: a esposa) especial e imprescindível. Não aponta a arma para a mulher do amante, tampouco para si mesma.

Quanto à tradução: tentei me manter fiel ao vocabulário original, que é bastante alegórico, fazendo pequenas adaptações apenas quando algo tinha muito a ver com cultura norte-americana (por ex.: no quarto verso da primeira estrofe: “aggies” é o nome dos ex-alunos de uma universidade agrícola no Texas; na vida real, a esposa do amante de Anne era texana de San Antonio).

O poema traz algumas metáforas histéricas, barrocas, quase cafonas, bem ao gosto de Anne. Por outro lado, existem uns paralelismos elegantes e fenomenais, que é o jogo do material vs imaterial – representado na metáfora das embarcações. Anne, a amante, é o veleiro vermelho, glamuroso, belo e feito para a distração; a esposa é o bote salva-vidas. Há a uma diferença estética e funcional nesses dois objetos, mas acima de tudo simbólica. Há a solidez e atemporalidade da família (esposa e filhos), representados em imagens da panela de ferro fundido, a roda de oleiro, o monumento e um quadro de Michelangelo.

Para Anne, uma espécie de Madame Bovary dos subúrbios de Boston, fica o que se esvai, a imaterialidade: o vento nos cabelos, a aquarela e o silêncio que é toda despedida.